domingo, 22 de outubro de 2006

Sei Miguel - The Tone Gardens

Apreciação final: 8/10
Edição: Creative Sources, Setembro 2006
Género: Jazz Vanguardista
Sítio Oficial: http://rt2.planetaclix.pt/seimiguel








Sei Miguel é um cidadão da vanguarda do jazz. Artífice de singular competência com o trompete, mestre na extravagante investigação dos limites do espectro tonal, Sei Miguel tornou-se uma das mais expressivas entidades da moderna música lusa. O culto do risco e das ciências fragmentárias do som, a proporção entre a omissão e o discurso mínimo, a álgebra binária e a sugestão plural do trompete, são alguns dos conceitos emblemáticos dos itinerários errantes do trompetista português. O novel opus, The Tone Gardens, espia os mesmíssimos silogismos, aqui inscritos em três peças conceptuais, amostras férteis de incertos jardins de tensões movediças. A dedicação a esses sons de contingência, como se fossem o senso guia da expressão tonal do disco, é matéria não estranha a Sei Miguel e seus pares. O silêncio não é inimigo, antes é acatado como fragmento importante dos exercícios de improviso grupal. Ao trompete de bolso de Miguel, substância liderante de cada episódio, fazem contraponto o trombone alto - filamento indispensável ao ânimo coloquial do disco - de Fala Mariam, as partículas percussoras de César Burago e a electrónica avulsa de Rafael Toral, interposições úteis ao embalo incerto das composições. Estes músicos são comparsas de longa data de Sei Miguel, conhecem-lhe os truques e praxes e isso é perceptível nas três suites de The Tone Gardens, pela harmonia e intimidade na arrumação dos sons, pela convergências nas construções e pela coerência.

Como em qualquer produto de Sei Miguel, a música de The Tone Gardens não é gorda nem se enche de cores desnecessárias. O recheio é de uma sobriedade superlativa, quase espartano, mesmo que se perceba, nas orações despojadas de cada jardim, um cuidado acrescido na produção, por comparação com outros títulos de Sei Miguel. A delicadeza das peças, agora com arestas limadas, não lhes perturba a precisão e o sentido estético, a confluência de energias e a estruturação complexa. Ainda assim, The Tone Gardens não é jazz clássico e, por isso, pode não ser tão eficaz a convencer tímpanos menos preparados para o vanguardismo. De qualquer jeito, Sei Miguel é nome maiúsculo da música lusa e The Tone Gardens um documento supremo do novo jazz, desta e doutras eras. Na sua época, o mítico Miles Davis, cuja magna silhueta é plano referencial de Sei Miguel (e de qualquer trompetista que se preze), disse que o músico genuíno não teme o erro porque ele não existe. The Tone Gardens, corroborando esse ensinamento do mestre, não teme os riscos da incursão em órbitas futuristas e da integração de elementos instrumentais incomuns. E do erro, nem vestígio...

sexta-feira, 20 de outubro de 2006

Chad VanGaalen - Skelliconnection

Apreciação final: 6/10
Edição: SubPop/Musicactiva, Setembro 2006
Género: Indie Pop-Rock
Sítio Oficial: www.flemisheye.com








A música não é uma prioridade para o canadiano Chad VanGaalen. Operário e amante das artes visuais e da pintura, foi quase fortuita a sua chegada ao orbe das canções. A perseverança de um amigo convenceu-o a dar voz às inúmeras composições instrumentais que, ao longo de cerca de cinco anos, juntou despretensiosamente na intimidade do quarto, sem prever que as voltas do destino as tornariam notícia pública. Daí a ganhar a simpatia da SubPop, bastou a publicação de Infiniheart (2004), pela minúscula Flemish Eye, selo de Calgary (terra natal de VanGaalen). O registo era uma selecção daquelas gravações caseiras e seria re-editado no ano seguinte, no mercado americano, pela SubPop. A sequela está aí, chama-se Skelliconnection e segue símil padrão: as canções aqui combinadas provêm da mesma lavra doméstica do antecessor. Sem que a revelação de Infiniheart tenha sido um feito magno para o mundo indie, embora mostrando um compositor de muito razoável esmero melódico e com uma tendência curiosa para a divagação instrumental, faz-se questão sobre a oportunidade de tão expedito zelo (da SubPop) em repetir a sondagem às gravações casuais de VanGaalen. Por certo, o julgamento de que, por entre dezenas de peças, alguma coisa haveria de valer uma segunda edição, terá conduzido a Sub Pop a um lançamento que, não sendo despiciendo, pouco acrescenta a Infiniheart. Não quer isto dizer que VanGaalen seja um músico estéril, mas, em boa verdade, ainda que a sua música denote um senso estético assinalável, em torno de uma ordem de essências pop, nada cresce além da competente mediania. O que até nem é inesperado de um músico de ocasião, como o próprio não raras vezes manifestou.

Na comparação com Infiniheart, quiçá se deva denunciar o ajuste de uma toada menos uníssona, numa relação de trechos que ganha em atalhar por outros princípios harmónicos, mormente na afinidade (não percebida no antecessor) com a ciência rock e/ou com instrumentalizações menos triviais. Assim se entendem mais pacificamente o desvio de guitarras acres de "Flower Gardens" ou o mimo electrónico de "Red Hot Drops", instante mais feliz do disco. É certo que nem sempre a arte eremita de VanGaalen se aguenta no maneio de tais artefactos, em prejuízo da congruência harmónica do álbum, mas há em Skelliconnection vestígios de um artesão que, ao jeito de um Beck vadio, tem faculdades para inventar vidas para o som. Assim ele largue o lápis de carvão, se torne músico a tempo inteiro e empregue tempo a sublimá-las.

quinta-feira, 19 de outubro de 2006

Sunn O))) & Boris - Altar

Apreciação final: 8/10
Edição: Southern Lord, Outubro 2006
Género: Drone Metal/Doom/Pós-Rock
Sítio Oficial: www.southernlord.com








Os americanos Sunn O))) fizeram do drone monocórdico e de baixa frequência um proveito gregário, estendendo os seus tardos compassos a públicos mais latos e provando, com sabedoria religiosa (de culto negro, entenda-se), que a música lenta é também degustável. E que, acima disso, o metal não é refém de galopes rápidos. Afinal, um acorde áspero repetido vezes sem conta, na cadência demorada dos passos de um lúgubre gigante, pode ter usos além do mero esqueleto criativo e, nesse minimal sacerdócio, os Sunn O))) são uma das mais aptas conjecturas de sombras e ambientes espectrais. As cirurgias do par americano não são meigas, a distorção amplificada é subsídio certo, a palavra é silenciada e cede lugar a colossais missas negras, de matérias sinistras e inquietantes. É rigorosamente nesses timbres fantasmáticos que se acham porções de identidade com os argumentos dos nipónicos Boris, mormente com as primeiras obras, mais próximas dos compêndios drone. Só que, na inversa dos Sunn O))), os Boris não fecham as suas frequências aí, antes disputam substâncias de outras escolas rock, ora abeirando-se do stoner maciço ora dos padrões punk, mas com orifícios experimentalistas o suficiente para evasões oportunas com o nervo do psicadelismo ou a prudência minimalista. Com ruído, muito ruído. Inscrever o nome Boris num catálogo musical não é coisa simples, tão monolítica e destra é a mescla de géneros, normalmente apurados num delírio colectivo, frenesim típico do desassossegado colectivo japonês. Bipolaridade maníaco-depressiva é a patologia deles, diagnóstico comprovado pelo confronto entre o ruidoso Vein, lunático lançamento para 2006 e o seu antecessor, Pink (2005).

Feito o obséquio introdutório, dêmos o ouvido à meia dúzia de peças de Altar, título que regista a primeira cooperação em estúdio dos dois projectos. "Etna", faixa de abertura e o mais tradicional dos trechos, é uma massa de estratos drone, componente idiossincrático dos Sunn O))) a que, paulatinamente, se junta uma bateria alucinada, que ao invés de parecer uma intrusão ao protocolo, acrescenta a dose certa de improvisação. Da surpresa, depois completada com outras guitarras em rapina do espaço remanescente, sobram razões para ponderar o acerto de um futuro com bateria nos Sunn O))). Contas de outro rosário. Segue-se a curta hipnose de "N. L. T.", labirinto sonoro feito de dissonâncias e agudos, de feedbacks e reverberações gravitantes, ao jeito de uma quadrilha de corvos fantasma à cata do assalto aos últimos fragmentos de silêncio. Depois da quietude vencer os corvos, o acontecimento majestoso de Altar: "The Sinking Belle (Blue Sheep)". Jesse Sykes, voz que antes se ouvira apenas no romantismo country, é o sublime canto de anjo negro de uma imprevista composição pós-rock. Belíssimas sinergias instrumentais entre ecos de guitarra (sem o peso drone) e esparsas gotas de piano formam um corpo musical extático e que cuida de tentar a catarse na evocação da placidez, autenticando uma bem conseguida evolução dos músicos para um registo distante do usual. Prova de talento. Como no feitiço de "Akuma No Kuma". Cheia de pingentes e cosméticos experimentais, a composição recreia-se num ápice de suspense, volvendo-o repetidamente do avesso, devolvendo-o à forma original depois de lhe somar estímulos sensoriais e fantasias de bateria. O ilustre Joe Preston (Melvins, Earth, High on Fire, Thrones) é a voz robotizada. A quinta peça, "Fried Eagle Mind", é uma oração de caverna, de humidade fria e arrepiante, de sustos e avantesmas errantes. Resta "Blood Swamp, segmento terminal do disco, coda em crescendo rumo a um remoto apocalipse drone, com a guitarra cicerone (e indecifrável) do saudoso Kim Thayil (ex-Soundgarden) a pontuar o código de negritude Sunn O))), dando-lhe ângulos de um idioma agudo.

Não obstante a prodigiosa natureza da colaboração - impulso que há-de obrigar os adeptos da etiquetagem a uma redefinição do género drone - há em Altar um ou outro rasgo necessitado de uma detonação mais forte. Minudência essa que, todavia, não impede que o disco, menos recomendado a tímpanos convencionais, se torne uma escuta imprescindível e um dos auges criativos do ano musical.

terça-feira, 17 de outubro de 2006

Bonnie "Prince" Billy - The Letting Go

Apreciação final: 8/10
Edição: Drag City/Domino, Setembro 2006
Género: Indie Folk/Lo-Fi
Sítio Oficial: www.bonnieprincebilly.com








Não é que se deva esperar de Will Oldham qualquer espécie de rebuliço, esse não é o padrão do autor, mas os primeiros acordes de The Letting Go são prenúncio de um disco de aconchegante intimismo, com violinos em suspensão romântica, a dar o mote (e o timbre) para o quinto registo de Oldham como Bonnie "Prince" Billy. Com pezinhos de lã, ele fez-se ícone de uma folk tradicionalista, como estampa de uma América pessimista e vigilante das calendas antigas, de semblante opaco e taciturno, sorrisos ocos de esguelha e olhares sumidos nas vastas campinas. Assim errante e incorpórea é a música de Oldham, com estilhaços apocalípticos, necessariamente estreita na ousadia instrumental (as guitarras tímidas são o coração e a alma), como convém ao fraseado confessional das harmonias do disco. Nesse recato, The Letting Go não destoa da remanescente obra de Oldham. Notícia original é o apuro dos arranjos, destacando-se a entrada de orquestrações apetrechadas com outras cordas (os violinos e violoncelos arranjados por Nico Muhly), o adiantamento da percussão a escalas maiores (pela mão do percussionista dos Dirty Three, Jim White) e, last but not least, o canto feiticeiro de Dawn McCarthy, belíssima tiple dos Faun Fables, adição mais do que oportuna às fábulas tântricas de Oldham. As substâncias são arrumadas com elegância ímpar graças à produção do islandês Valgeir Sigurosson, engenheiro predilecto dos Múm e cúmplice ocasional de Björk, que, sem beliscar o temperamento americano das composições, lhes soma bálsamos únicos, ora nos enxertos instrumentais que amiudadamente adornam o esqueleto das composições, ora na conformidade que vincula os diversos elementos das peças. Além do intuitivo ganho dimensional da música, a inscrição vocal de Oldham é mais límpida do que antes, lucro da bipolarização com McCarthy, dando um pulso novo ao fatalismo claustrofóbico das histórias de Oldham.

The Letting Go é da melhor filigrana Oldham, disso não sobram dúvidas. A fragilidade das composições é a costumeira e, mesmo merecendo um revestimento orquestral mais ambicioso (até há reflexos glaciares à Sigur Rós em "God's Small Song"), as estruturas harmónicas retêm o disfarce da simplicidade quase acidental e a profundidade contemplativa do cancioneiro Oldham. Tonalmente diverso, The Letting Go é, seguidamente às silhuetas deprimidas do notável I See A Darkness (1999), o melhor fascículo de Oldham e da ciência trémula de um surrealismo lírico que, como poucos, encontra na estação outonal o seu porto seguro.

domingo, 15 de outubro de 2006

Dani Siciliano - Slappers

Apreciação final: 7/10
Edição: !K7, Setembro 2006
Género: Electrónica/Pop Alternativa
Sítio Oficial: http://www.dani-siciliano.com








Já não é inconfidência para ninguém dizer-se que Dani Siciliano tem sido a substância vocal de Matthew Herbert. Além do vínculo conjugal que os une, a associação criativa que nos deu Around the House (1998) ou Bodily Functions (2001) foi o testemunho acabado de uma certa interdependência artística cujos proventos assumiam um duplo juízo. É incontestável o mérito da parceria na multiplicação da simbiose de processos, permitindo a combinação certa entre uma electrónica iconoclasta (a de Herbert), de timbre minimalista mas cheia de soberba na resistência aos cânones, e o ímpeto vocal e sensualidade de Siciliano, suplemento infalível para somar traços de laconismo à orbe onírica de Herbert. Ao flanco frio e maquinal de Herbert, mestre nos malabarismos técnicos com as medidas temporãs de um protótipo funk mínimo e futurista, se juntava o revestimento orgânico versátil e contemporâneo da voz que, sem restringir os seus ângulos vanguardistas, puxava a música para uma geometria de excesso contido. Pontos de equilíbrio, assim se diriam as intersecções conceptuais de Herbert e Siciliano. Ao mesmo tempo, de tão ajustada combinação se presumem ecos sobre a individualidade artística das partes, ilação particularmente evidente no percurso individual de Siciliano; se Herbert não se impediu de lançar discos sem os préstimos da mulher, sublimando a condição exploratória do seu som, Siciliano chegava, na antecâmara do segundo exercício do trajecto em nome próprio, a uma encruzilhada determinante. Em Likes... (2004), registo de debute, a candeia de Herbert alumiava ainda alguns dos trechos e sentia-se, mesmo que nesse remoto estatuto de co-autoria, que a insígnia do marido estava presente. A bem da emancipação artística de Siciliano, ela própria possuidora de recursos nobres o bastante para lhe valerem independência de per si, talvez se impusesse uma afirmação de personalidade que Slappers não dá.

É certo que as síncopes de Slappers mostram algumas hábeis supressões da assinatura costumeira de Herbert, distanciando a vibração das faixas da primeira expectativa do ouvinte, mesmo que não fique camuflado o cardápio de maquinações Herbert (ele é co-autor de todas as peças do alinhamento). Nesse capítulo, de resto, Slappers é de um requinte a toda a prova, vem munido de talhas das várias propensões electrónicas e serve-as na dosagem perfeita. Com a ajuda de um amigo digital cheio de vantagens, o sampler. Slappers talvez não suplante os alvitres da estreia, tampouco se isenta da sombra de Scale (exercício sublime de Herbert previamente lançado neste ano) e, a despeito de alguns instantes plenos de inspiração, mostra-se experimental demais para chegar à voga pop e menos coeso para se fazer obra-prima técnica. Ainda assim, mesmo que não seja possível escrever sobre um disco de Siciliano sem lançar mão do nome de Herbert, o álbum traz um jogo de manobras suficientemente atraentes para valer uma boa escuta e ser um produto interessante.

sexta-feira, 13 de outubro de 2006

Dr. Octagon - The Return of Dr. Octagon

Apreciação final: 6/10
Edição: OCD International, Junho 2006
Género: Underground Rap/Hip Hop Alternativo
Sítio Oficial: www.thereturnofdroctagon.com








Kool Keith é, independentemente da afeição que se tribute ao seu trabalho, um dos nomes seminais do rap do Bronx. Ele foi o guia dos Ultramagnetic MC's, grupo nova-iorquino ainda hoje venerado como um dos ensembles responsáveis pela revitalização do género e a quem se atribui, entre outras felizes circunstâncias, o chamamento à esfera do underground rap de recursos pouco em voga na segunda metade da década de oitenta e anos noventa, em especial os progressos na incursão pelas instrumentalizações reais, em detrimento dos padrões sintéticos dominantes. O tope dessa controversa causa foi The Four Horsemen, produto nascido em 1993 e último registo de estúdio do quarteto, pouco apoiado pela crítica. Para trás, o lendário debute dos Ultramagnetic MC's (Critical Breakdown, 1988), tomo que serviu de cartão de visita à personalidade pitoresca de um ícone da cultura de gueto, Kool Keith, e de um prometedor agrupamento que encerraria actividades em 1994. De entre inúmeras assinaturas (Dr. Dooom, Rhythm X., Mr. Gerbik), side-projects e trabalhos em comum com terceiros, seria sob o alter-ego Dr. Octagon que Kool Keith ressuscitaria para os palcos mediáticos, colhendo, com Dr. Octagonecologyst (1996), o espanto e o respeito da crítica. Com essa edição, Keith matou dois coelhos com uma cajadada: reorientou as probabilidades do underground rap crescer para o amparo de uma base sonora electrónica pautada pelo vanguardismo, germinando uma corrente rap alternativa, e, para esse efeito, recrutou um valor emergente na ocasião, Dan "The Automator" Nakamura, violinista de formação e o inventor dos contraste espaciais e futurismo sonoro do disco. Além do pomposo redimensionamento das escalas rap, a colecção de composições do par Keith/Nakamura estava armada num binómio ímpar: o humor de tangência pornográfica e escatológica dos escritos de Keith encontrava ajuste infalível na produção fecunda de ideias e na vocação para a surpresa de Nakamura. Conceptual e impressivo, o título firmou trilhos novos, esticando o imaginário do rap a outras orbes e protagonistas, especialmente a figura bizarra de Dr. Octagon, protagonista fulcral do enredo, um alegado ginecologista de origem duvidosa (alienígena?) envolvido em inúmeras chicanas, mormente na demanda dos obséquios sexuais das suas pacientes.

Preposta ao lançamento de The Return of Dr. Octagon uma série de oito tiras de desenhos, uma por cada semana das oito anteriores à edição do disco, adiantaram o enredo. Dez anos depois da alegada morte de Dr. Octagon, as suas réplicas clonadas sem autorização, e comandadas por um gorila gigante e lunático, pululam pela galáxia com o propósito de exterminar os astros. Na Terra, acham uma civilização em auto-destruição, consequência das horas sucessivas de exposição a má música, a suspirar por um salvador. A despeito da iconografia juvenil, a matriz conceptual de The Return of Dr. Octagon é mais universal, já não se prende com o mero conserto dos desequilíbrios de líbido das fêmeas da espécie, antes com a condição da humanidade. Neste retorno do pseudo-ginecologista, o trio germânico One Watt Sun produz e não faz a coisa por menos: importam-se sons de vários vectores, emprestando aos ambientes do disco um fausto sónico contemporâneo e moderno mas que, em razão do intuitivo cotejo com a sublime interferência de Dan Nakamura no disco de há uma década, soa a festival desproporcionado - as mais das vezes por excesso - na maior parte dos trechos. Na lírica, o descrédito alarga-se. A temática gasta moralismos cliché (a inquietação com o ambiente e o conformismo da civilização corrente), o humor é frouxo e a prosa perdeu pedigree. Melhor fora que Dr. Octagon tivesse morrido em 1996. Nem ele teria de enfrentar o símio titânico, nem nós assistiríamos, graças a um sucedâneo menor, ao desabamento de uma das mais esplêndidas marcas do underground.

Posto de escutaTreesAntsAl Green

quarta-feira, 11 de outubro de 2006

The Thermals - The Body The Blood The Machine

Apreciação final: 7/10
Edição: Sub Pop, Agosto 2006
Género: Indie Rock
Sítio Oficial: www.thethermals.com








Embora tentem descolar do tosco rótulo punk a que, de resto, a arquitectura harmónica e a urgência das suas canções os atou com propriedade, os norte-americanos The Thermals avançam, ao terceiro fascículo de um percurso de quatro anos, um enunciado de maturação. A despeito de algumas convulsões internas que culminaram na deserção do baterista (e membro-fundador) Jordan Hudson, facto que deixou Kathy Foster e Hutch Harris orfãos no desdobramento da missão instrumental das gravações de The Body The Blood The Machine, os dotes punk-por-um-triz dos The Thermals foram conservados. Mais do que isso, sem abdicar da ingenuidade estrutural que tão bem se consagra nestas canções, o novo trabalho reproduz uma escrita mais fluente e composições melodicamente mais simpáticas. Dito assim, o obséquio musical de The Body The Blood The Machine brinda-nos com passagens tão expeditas a grudar no tímpano que parecem fabricadas para os auditórios largos do mainstream. Não se entenda semelhante constatação como uma perversão criativa ou qualquer cedência mercantil dos The Thermals. Nada de mais errado. A dezena de composições do álbum não tem sofisma: os argumentos técnicos são os mesmos de sempre e, uma vez diminuída a porção de impurezas, foi depurado o processo melódico, sem cedências a clichés.

Os textos de The Body The Blood The Machine, ainda que errantes, politizam o exorcismo de uma América dominada pela tensão militarista e pelo paradoxo dos expedientes bélicos. Hutch Harry é um entre muitos. Políticas à parte, o pecadilho técnico do disco é o resvalo formulista que enrola as composições num invólucro comum e do qual, em última análise, se livram "An Ear For Baby", "Test Pattern" e "St. Rosa and the Swallows", objectos superlativos (numa lógica poppy) de um rol de trechos suficientes. Contestatário e impetuoso, The Body The Blood The Machine é um manifesto próprio de uma banda de garagem ciente dos palatos punk e do feitio que melhor convém ao seu acatamento. Só falta um bocadinho de química própria.

segunda-feira, 9 de outubro de 2006

Junior Boys - So This Is Goodbye

Apreciação final: 8/10
Edição: Domino, Setembro 2006
Género: Electrónica Alternativa/Synth-Pop
Sítio Oficial: www.juniorboys.net








Denunciar uma propensão declaradamente 80's e não descambar para a cópia imbecil é o respeitável mérito dos Junior Boys. De uma doutrina com tal roteiro temporal espera-se primazia dos sons sintetizados e das beats processadas, de resto a seiva dominante do seminal trabalho de estreia (Last Exit), lançado há um par de anos. Embora esse pendor se mantenha no segundo tomo, o som dos Junior Boys ressente-se da deserção de Johnny Dark, obreiro das destras manobras percussivas do disco de estreia, aqui substituído pelo produtor Matt Didemus. Com outro sócio para Jeremy Greenspan, a urbanidade do som dos Junior Boys acerca-se mais da credulidade pop, propiciando outro enfoque vocal - púlpito da emancipação ultimada de Greenspan - e métodos mais estruturados. A novel identidade da dupla dissipa dúvidas: a adjacência à pop modificou regulamentos. Dissipada a veemência dançante que Dark tão bem imprimiu no antecessor, So This Is Goodbye refreia a pujança rítmica, baixa a luz e encontra aconchego na meditação - ciência certa para o abaixamento de ritmos - e no garbo da redução da electrónica às cláusulas de mínima excentricidade. Dir-se-ia que, do polimento das fracturas beat de Last Exist, nasceu o embrião de um romantismo pop clássico (nada que os Orchestral Manoeuvres in the Dark não tenham feito antes), de melancolia redobrada que, todavia, não deixa dormir o músculo e, se não prestar bom ofício nas pistas de dança, há-de musicar umas piruetas na sala de estar. Ou danças incertas pós-ressaca. O nutrimento vem de arpejos harmónicos sublimes do sintetizador, a substância vital de So This Is Goodbye, o mecanismo quente de feitura do magnetismo imediato do disco.

Mais conciso e focado do que o predecessor, So This Is Goodbye é um disco de canções. Synth-pop com noção de espaço que, sem ter a volubilidade de cadência, o experimentalismo ou a diversidade de arranjos de Last Exist, por isso se tornando mais unânime e estável, busca o talismã de um discurso mais imediato. Aí, como poucas edições do corrente ano, So This Is Goodbye é um prémio para os ouvidos, com eufonias palpitante e fecundas, de arestas limadas e a fórmula de engenharia de som certa. Mesmo quando aproveitam, em tom sonâmbulo, "When No One Cares", trecho celebrizado por Sinatra. Só faltou um ou outro acidente de irreverência para desencaminhar o álbum das rotas pré-calculadas e da precisão maquinal que o tornam excessivamente contido. Contudo, censurar operários da electrónica deste quilate por criarem um álbum com virtudes muito certinhas, deve ser considerado, face à casta de So This Is Goodbye, um exercício de mera admoestação de algibeira. Pero que las hay, hay...

domingo, 8 de outubro de 2006

Rafael Toral - Space

Apreciação final: 7/10
Edição: Staubgold/Flur, Setembro 2006
Género: Electrónica Experimental/Vanguardista
Sítio Oficial: www.rafaeltoral.net








Embora ainda seja uma incógnita para a generalidade do público melómano luso, Rafael Toral é um dos expoentes da arte experimental portuguesa. Dotado de um espírito desassombrado e de um interesse vigilante pelas múltiplas dimensões virgens da música, Toral consagrou as suas jornadas criativas à distensão dos limites do improviso, também à sondagem de novos valores intrínsecos a cada partícula sonora, seja ela ingénita de um instrumento, seja obra de manigâncias digitais ou ainda, recurso peculiarmente incluído na música de Toral, seja inferência de especulações com a estática e o feedback. Especulativo é certamente um adjectivo próprio da música de Toral, como bem se instrui neste Space, primeiro tomo de um ciclo novo do músico dedicado à pesquisa das contingências do som. A tal ofício é incumbido, no papel de agente primaz que fora da guitarra noutros trabalhos, o discurso de um amplificador portátil alterado, cerne gravitante do disco, cuja posição relativa face ao microfone produz uma gama de sons inconstantes, vagabundos do vácuo que talham o silêncio à medida dos gestos periciais de Toral. Não se espera de Toral a lealdade a máximas teóricas; ele é fundamentalmente um artesão do empírico à procura do futuro. Sente-se isso na gestão prudente dos cromas de Space, ora poluídos de irradiações energéticas vibrantes e de feedback processado, ora deixados ao acaso dos contrastes bipolares som/silêncio, sempre vanguardistas e em ambivalência oportuna para o reforço da compleição hipnótica do álbum. O jazz é, como não poderia deixar de ser, uma alusão imponderável, sem formalismos estéticos, poligonal como o de Alvin Lucier ou David Toop, lapidado como o de Fennesz ou Fullerton Whitman, enigmático e fértil como o do austríaco Pita ou dos Jazzkammer. O futuro do jazz diz-se nestes códigos electrónicos.

Space não é tomo para ouvidos preguiçosos ou mentes amestradas. Sem música de cânone, tampouco música em sentido estrito, o novo exercício de Toral transcende qualquer definição de álbum. Não há aqui canções ou estruturas tipificadas, o limite é o espaço sideral. Space é uma viragem cósmica de Toral, depois de uma década e meia a fundir guitarras e electrónica. Agora o sci-fi é a luminária dominante da anfibologia harmónica do disco, sem remates vincados. Esse instinto tantalizador, a par da parcimónia estética do disco, marcam uma consciência diferente de Toral e, em última análise, uma intimidade acrescida entre som e espaço, homem e circunstância, como escreveu Ortega y Gasset. Com Space, Toral somou outra refracção inexorável à máxima do filósofo espanhol: tal como o Homem, a música, ou o som (por extensão conveniente), também se faz de circunstância.

Posto de escutaPart IPart IIPart III

sexta-feira, 6 de outubro de 2006

Mastodon - Blood Mountain

Apreciação final: 8/10
Edição: Reprise/WEA, Setembro 2006
Género: Metal Alternativo/Progressivo/Power Metal
Sítio Oficial: www.mastodonrocks.com








De um álbum com um título tão imponente e sanguinolento não pode esperar-se música para um conto de fadas. Se a tal certeza juntarmos a circunstância de ter sido escrito por um dos mais revolvedores agrupamentos do metal americano, é seguro que a audição de Blood Mountain se torne uma experiência nada estéril. Aqueles que, por esta altura, ainda não tiveram um primeiro contacto com o som dos Mastodon, ícone essencial do cosmos metaleiro actual, devem antecipar um débito impressionante de descargas eléctricas sucessivas, edifícios harmónicos que se desmoronam a si mesmos desfigurando a estrutura convencional de canção, toneladas de distorção em volumes tonitruantes e metamorfoses vocais inverosímeis (o duo de vocalistas é munição poderosa). Os Mastodon são um auto de demolição de clichés e nessa demanda derribadora não há como eles, é ímpar a autoridade e a potência de um som pejado de insinuações de três décadas de hard rock mas que, em inequívoco testemunho de originalidade, não reproduz fielmente nenhum género particular do metal, antes acrescenta uma entidade nova (e superior) à família. A assinatura Mastodon é única e impôs-se paulatinamente trazendo-os, ao terceiro disco, a um patamar de excelência que poucas bandas metal atingem. Blood Mountain herdou dos antecessores, especialmente do portentoso Leviathan (2004), a dinâmica propulsiva, o combustível de convulsões e as variações melódicas inesperadas, sublimando a dinâmica do conjunto em favor de um discurso tecnicamente irrepreensível e de complexidade acrescida. A produção é novamente de Matt Bayles e também expandiu medidas para acondicionar um som mais denso, somando-lhe substratos que, quase passando inaudíveis, são utilíssimos, mormente na ductilidade tonal da voz (geniais as suspensões quase sonâmbulas da voz em alguns refrões) e nas transições melódicas dos trechos.

Se o clássico Moby Dick havia servido de inspiração a Leviathan, desta vez os Mastodon investiram em novo álbum conceptual, mas reintroduzindo o simbolismo do fantástico do metal clássico. Aqui, a fábula é em torno de um herói que deve ascender a uma montanha viva para resgatar uma caveira de cristal. Para tal, tem que sobreviver a uma expedição num universo de criaturas mitológicas, gigantes dormentes, árvores semi-humanas, ciclopes, florestas mágicas, deusas do gelo e canibais. Supostamente (ou não) a metaforizar sobre o percurso dos Mastodon até ao compromisso com uma major, a alegoria encontra um aliado perfeito na cadência progressiva do som de Blood Mountain, sinónimo de crescimento de uma banda que, depois de Leviathan, se julgava ter tocado o zénite. Mas, vistas (e ouvidas) bem as coisas, para artesãos da igualha dos Mastodon (o efeito colateral dos convidados Josh Homme (QOTSA), Cedric Zavala (The Mars Volta) e Scott Kelly (Neurosis) não é despiciendo), a transcendência é apenas uma circunstância e até o céu não parece um limite que baste para esta máquina inquietante e arrasadora.

quarta-feira, 4 de outubro de 2006

Ratatat - Classics

Apreciação final: 6/10
Edição: XL, Agosto 2006
Género: Electrónica/Rock Lo-Fi Instrumental
Sítio Oficial: www.ratatatmusic.com








Chegar ao segundo álbum e ter o atrevimento (petulância?) de o apelidar de Classics não é para todos. A tal se arrojou a dupla norte-americana Ratatat, campo criativo dividido por Evan Mast, programador e multi-instrumentalista, e Mike Stroud, guitarrista. O argumento destes clássicos segue o rasto de Ratatat, debute editado há um par de anos, uma estável emboscada electrónica ao rock isento de estrutura. Em boa verdade, o tecido harmónico de Classics circunscreve-se a ambientes bem próximos da órbita do pós-rock, ainda que com compassos mais expansivos. A essa amplitude não é estranha a autoridade da porção digital do som a matizar os trechos, enchendo o corpo sónico do disco de ornatos vários, nem sempre com a mesma propriedade, é certo, mas servindo de garante às desmultiplicações das composições. Nesse sentido, Classics é um álbum de ascendente electrónico e onde as alusões acústicas (essencialmente guitarras) se mesclam sobriamente com o tom dominante, acrescentando outros pretextos melódicos e insinuando o galanteio com um jogo de contrastes que, se fora tacteado com mais profundidade, facultaria uma aritmética mais espessa ao disco. E isso sem o despir do fôlego optimista. Ao mesmo tempo, a largueza conceptual de Classics consome-lhe subitamente o oxigénio em diversos ápices, arriscando o desabono de alguns recursos estilísticos sublimes em favor do pontual (e incómodo) amontoamento de conceitos, e consequente desordem auditiva, que enferma algumas faixas do alinhamento. Dir-se-ia que Classics tem lances incongruentes, mormente quando exorbita as competências da guitarra sobre a intimidade digital das peças, algo particularmente notório no single "Wildcat" que, embora imponha com destreza o contraste digital/acústico, perde o norte a partir do meio da faixa. Tal desarranjo, por outro lado, não faz eco em "Swisha", um dos zénites do disco, onde a guitarra não ofusca o minimalismo da electrónica e, mais do que isso, as variações rítmicas (ou desconstruções) desviam a peça da vulgaridade.

Classics é um daqueles tomos que reclamam várias audições para que se descortine a miríade de detalhes electrónicos que abrangem. Aí, depois de desmontada a camada superficial de sons, chega-se a um conclusão de duplo sentido: é inegável que a essência do álbum é armada num minúsculo circo da melhor electrónica que se ouviu este ano mas falta-lhe redimensionar o vínculo entre matérias acústicas e sintéticas para trazer mais pragmatismo à excelente colecção de ideias de Mast e Stroud. Classics é, por conseguinte, um produto ambivalente, no sentido de nos trazer recompensas auditivas cheias de encantos ("Lex", "Montanita" e "Swisha") e outros trechos que nos deixam água na boca por não confinarem com a eminência que se adivinhava, à primeira escuta, nas suas entranhas.

Posto de escutaMontanitaLexSwisha

terça-feira, 3 de outubro de 2006

O último filme que vi - A Senhora da Água

O solitário e bonacheirão Cleveland Heep (Paul Giamatti), supervisor do pacato complexo residencial The Cove, avista uma desconhecida na piscina do condomínio. Story (Bryce Dallas Howard), a bela estranha, é afinal uma narf perseguida por medonhas entidades, uma ninfa desencaminhada do mundo de um conto para crianças, em demanda do retorno a casa. Este é o enredo central da mais fresca proposta de suspense de M. Night Shyamalan, o desembaraçado e talentoso cineasta que nos deu O Sexto Sentido (1999), reconhecidamente considerada a sua obra maior. A Senhora da Água, quinto trabalho do realizador indiano, baseado numa história do próprio Shyamalan originalmente destinada a mera edição livreira, não é mais do que uma fábula infantil redimensionada ao estatuto de thriller clássico, condimentado com uma atmosfera próxima do cinema fantástico.

Para servir o interesse a franqueza na construção dos diversos caracteres do filme, Shyamalan justapõe o universo real e a fantasia, arquitectando um mosaico de personalidades pacatas (cada uma com traços idiossincráticos propícios ao remate do enredo, como é regra em Shyamalan), as certezas da sua vivência efectiva, as respectivas aspirações e frustrações, a conformação com as vicissitudes da ordem universal e a esfera prometida do sonho. E de ambições contingentes se fazem as pitorecas personagens do filme, como se todos aguardassem uma marca do destino que lhes servisse de rumo. Essa solenidade de oráculo é projectada gradualmente em Story, a fada da água que, com a candura e fragilidade do seu pedido de ajuda, se tornará a salvadora das gentes daquele bloco de apartamentos. Da briosa união de esforços para remir Story, há-de abrolhar a recompensa de cada um deles, como se aquele tranquilo complexo habitacional subitamente se tornasse o centro do mundo, ou um retrato de fragmentos dele. Talvez, por isso, se possa dizer que esta fita de Shyamalan consegue o feito improvável de, sendo o mais fantasioso dos seus exercícios, nos remeter para uma mensagem plena de mundanidade. Nisso, a aposta do realizador é sustentada, a despeito da necessária inverosimilhança dos factos, como teria de convir a uma história para crianças.

Tecnicamente, A Senhora da Água deixa imensas pontas soltas, mormente na ligeireza na definição das personagens e na pouca fluidez narrativa, fonte assídua de dúvidas à medida que os sofismas (ou reflexos menos ponderados) do enredo se tentam explicar a si mesmos, fechando repetidamente o espaço ao suspense e frustrando o ensaio de parodiar as convenções hollywoodianas para produtos deste género. O desempenho de Giamatti, emblema magno da arte de representação por estes dias, livra o filme da derrocada mas não é avanço suficiente para contornar a convicção de que se trata do filme menos conseguido de Shyamalan. Aparentemente, os decisores da Disney que rejeitaram esta película, conduzindo o cineasta a um compromisso com a Warner, acertaram na prognose de que este seria um recurso dispensável da sétima arte. Agora que chegou até nós, A Senhora da Água ratifica claramente os trambolhões criativos e o desgoverno do ego inflado de um escritor-realizador-produtor-actor que, há um punhado de anos, prometia lançar novas aragens na atmosfera de Hollywood.

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segunda-feira, 2 de outubro de 2006

Yo La Tengo - I Am Not Affraid of You and I Will Beat Your Ass

Apreciação final: 7/10
Edição: Matador, Setembro 2006
Género: Indie Pop-Rock
Sítio Oficial: www.yolatengo.com








Tentar resumir aquilo que os norte-americanos Yo La Tengo simbolizam para o rock alternativo americano obriga-nos a olhar uma vintena de anos para trás e a julgar cerca de uma dúzia de longa-durações. Eclectismo é o termo consentâneo para caracterizar um percurso de deliciosas discrepâncias que, com idêntico esplendor, deram à estampa álbuns bem construídos, ora com o frémito do noise rock estridente, ora com a placidez da pop açucarada. A personalidade musical dos Yo La Tengo faz-se de indeterminação estética, sinónimo maior de talento elástico, e isso é particularmente sensível em I Am Not Affraid of You and I Will Beat Your Ass. Com efeito, na primeira gravação de estúdio em três anos, Kaplan e seus pares revalidam essa propensão ecléctica numa dezena e meia de canções que compõem binómios de contraste: preto e branco, urgência e apatia, melodia e feedback, doce e acre. O cardápio completo dos sabores Yo La Tengo. Todavia, a diversidade rítmica do tomo não estorva a sua integridade e coesão, antes a reforça, por força da capacidade deste trio de músicos em acomodar conceitos dissemelhantes a um fio de prumo comum. É precisamente por acção desse diapasão virtual e abstracto que os Yo La Tengo não têm um disco mau e, pela mesma causa, também não têm uma gravação transcendente. Talvez por isso, decorridos vinte anos de carreira, I Am Not Afraid of You and I Will Beat Your Ass soe a compilação...mas com canções novas. Cristalização ou consistência, chame-se-lhe o que mais convier, a verdade é que revoluções sónicas não subordinam os Yo La Tengo, o som deles é esta matéria avessa a mudanças e nenhuma outra, não há ensejos reformadores. Mas deve pedir-se tal coisa a um dos mais afoitos assinantes do eclectismo da música americana?

O carisma abstracto deste trio de New Jersey está intacto em I Am Not Afraid of You and I Will Beat Your Ass. Não é a toa que eles atraem o culto de uma trupe ampla de seguidores, gente saudosa dos Velvet Underground e de fragmentos dos Sonic Youth. E a reverência a essas cátedras continua a ditar normas aos Yo La Tengo, mormente na estruturação das melodias, no detalhismo técnico dos fraseados instrumentais e no capricho orgânico das canções. Pode dizer-se que, depois do algo tedioso Summer Sun (2003), o trio americano retoma a semântica melódica e os contrastes da sua pièce de résistance (I Can Hear The Heart Beating As One (1997)), mas o efeito acaso estranho está esgotado: eles já não são esquisitos, nem soam a notícia imprevista. Mas isso podem ser os contornos do destino, com canções como "Sometimes I Don't Get You", "Mr. Tough" ou "Pass the Hatchet, I Think I'm Goodkind", a dizer-nos que eles são bons.

sábado, 30 de setembro de 2006

Spank Rock - Yo Yo Yo Yo Yo

Apreciação final: 8/10
Edição: Big Dada/Ninja Tune, Abril 2006
Género: Hip Hop/Underground Rap/Fusão
Sítio Oficial: www.bigdada.com








Apesar de ser uma estirpe sonora que amiudadamente nos brinda com produtos renovadores e que certificam a sua dinâmica expansiva e alargadora de fronteiras, o universo hip hop nem sempre se cruza meritoriamente com outras famílias. A primeira edição do projecto Spank Rock, em que o MC Naeem Juwam faz equipa com o expert de beats Chris Rockswell e o renomado produtor XXXchange, é um desses discos em demanda por ares híbridos das sínteses electrónicas e do underground rap. Escutar Yo Yo Yo Yo Yo é fazer, de uma assentada, um curso de hip-hop hedonista (as divagações sexuais estão por todo o disco), uma vezes próximo dos registos vocais tradicionais da oldskool, noutros ápices mais próximo da ciência de vanguarda, de electrónica precisa e oportuna (mesmo quando parece saída de um vídeo jogo dos anos 80), de baixo sintético sempre em riste, de tentativas techno bem sucedidas com embalos soul, de insinuações sonoras sem freio mas conjugadas no tempo certo. O axioma é a sedição contra regras, ao jeito patrocinado por Diplo, o preconceito não encaixa em tamanho estoiro de criatividade e visão ecléctica. A produção não tem mácula, é da melhor filigrana deste ano, sublinha a lascívia da lírica e soma impurezas à sonoridade do álbum, inventando um registo com a electricidade contagiante e o caos (des)controlado de um clube no prelúdio da madrugada. Depois de precipitada a diversão, o circo dos Spank Rock denuncia claramente o seu propósito maior: agitar cinturas e fervilhar hormonas ("Touch Me" até faz de metrónomo para os mais audazes!).

Dêmos graças aos Spank Rock por mesclarem temperamento recreativo com originalidade e, ao mesmo tempo, conseguirem a façanha de tocar a modernidade e manter um senso retro (herança das fusões electro dos dinossauros Afrika Bambataa e Kool Herc). A premissa para fazer um disco como Yo Yo Yo Yo Yo sem cair no natural impulso de exagero que aflige outros híbridos do hip hop é o engenho. E essa faculdade é inscrita a traço resoluto neste álbum, não deixando espaço para dúvidas: a despeito da insistência quase intempestiva no teor sexual das letras, coisa algo descomedida, Yo Yo Yo Yo Yo é um debute impressionante de uma nova matéria na comunidade hip hop. E uma das mais talentosas e eficazes cápsulas anti-tédio do ano.

sexta-feira, 29 de setembro de 2006

Bruno Duarte + Old Jerusalem + Puny - Splitted

Apreciação final: 6/10
Edição: Bor Land, Setembro 2006
Género: Split CD/Lo-Fi
Sítio Oficial: http://bor-land.com








A editora matosinhense Bor Land tornou-se, em meia dúzia de anos de uma existência atenta, um cicerone peculiar do que de melhor se faz na periferia da música lusa. Com um punhado de lançamentos distantes do mediatismo das grandes edições, a etiqueta projectou alguns dos conceitos musicais mais isentos do underground português (Alla Pollaca, Old Jerusalem, Kafka, Ölga, Complicado), reconhecendo-se-lhe o condão de, com astúcia rara, tirar o véu a factos musicais relevantes de uma cena musical cada vez mais congestionada de produtos estéreis. Desta vez, a proposta é uma colecção de canções assinadas por três projectos da nossa praça. A saber: o já mais mediático e apreciado Old Jerusalem (espaço de invenção do portuense Francisco Silva), o estreante a solo Bruno Duarte (guitarrista dos München) e o trio viseense Puny, nas primeiras gravações para uma etiqueta, depois de alguns lançamentos a título próprio. Rústico da abertura ao remate, Splitted traz sons sujos e experimentais, em predilecção pela familiaridade (e franqueza) de gravações quase domésticas, de produção mínima e pouca mediação da mesa de misturas. A guitarra é prescrição comum à tríade de artesãos, reinvindicando o destaque estrutural das peças aqui inscritas, ora mais espessa e consistente, ora mais contingente e utópica.

Bruno Duarte, autor de sete trechos (integralmente instrumentais) do alinhamento, assina o registo mais experimental do disco, sem renunciar a um fino timbre pastoral (chame-se-lhe lo-fi), algo que é conjugado superiormente com esporádicas (e superficiais) pinceladas de psicadelismo, revérberos pontuais e incursões tímidas pelo noise plácido (cacofonia até?) ou pela deriva dos ventos pós-rock. Acontecem, depois, os três momentos Old Jerusalem, com o ânimo quebrantado do costume, de graciosa melancolia e notas cândidas que se atam em princípios de incerteza. Essa aparente fragilidade, vestígio inconfundível de Francisco Silva, sustenta odes desarmantes, como na extensa serenata (quase nove minutos!) de "Up North in Convoy", única peça cantada de Old Jerusalem e ápice magno da compilação. Cerrado o mundo de purgação e fantasia de Old Jerusalem, os Puny tomam conta do estaminé. Em curiosa fusão free-folk-rock-psico-qualquer-coisa, os argumentos dos Puny separam-nos de Bruno Duarte e Old Jerusalem. As distorções e a percussão deixam de ser um esqueleto no armário, pulam para o arrojo da primeira fila e o volume sobe. Leva com ele o ruído, trazido a estratos quase nocivos. O pagode alucinado assenta arraiais. Pena é que, no cerne de tamanha parafernália de tralhas sónicas e esboços de ideias, não chegue a perceber-se tacto para ultimar um dos imensos bosquejos. E, mesmo percebendo que não era esse o fim de Splitted, registo necessariamente mais perto do simbolismo da gravação caseira, urge produzir o som dos Puny e, com a régua certa, está aqui o gérmen de um ensemble promissor. Em suma, Splitted tem mais lances de arranque do que matérias acabadas e põe em voga protagonistas modernos e cujos recursos são revalidados (a consagração de Old Jerusalem não depende deste álbum), mostrados noutro tom (Bruno Duarte a solo é bem diferente dos seus München) ou abrem os pórticos para um futuro risonho (Puny).

quarta-feira, 27 de setembro de 2006

The Rapture - Pieces of People We Love

Apreciação final: 7/10
Edição: Universal Motown, Setembro 2006
Género: Indie Rock/Dance-Punk
Sítio Oficial: www.therapturemusic.com








Esta coisa de fundir, com proveitos, o pós-punk e saracoteios próprios de uma pista de dança não é missão para qualquer um. Assunto sondado regularmente por alguns dos vectores menos contestados da cena underground norte-americana (LCD Soundsystem, !!!, Radio 4, Hot Chip), trata-se de um ramal da família rock que mereceu o consentimento e a aprovação de públicos mais amplos, conquistando gradualmente a extensão mediática proporcional. Echoes (2003), segundo trabalho dos The Rapture, foi esteio fundamental dessa reafirmação das sonoridades mais dançáveis do indie - o património dos Gang of Four como pedra de toque - atestando a vitalidade de um género enfermo de languidez. Neste contexto, os The Rapture somaram pergaminhos e juntaram-se à galeria de notáveis do motim, mormente depois do reconhecimento da crítica à generosidade de Echoes. Directo ao assunto: o sucessor, Pieces of People We Love, está aí e retém a veemência do antecessor (com defeitos e virtudes símeis), talvez suavizando a pressão punk da fórmula, mas guardando a doutrina e os compassos dançáveis, ainda que não haja no alinhamento nenhum êxito imediato como "I Need Your Love". As guitarras encontram outro recato, em soberbo convívio com o saxofone, par de suporte de estruturas mais funk e pautadas por convergências de boa casta entre percussões reais e sintéticas, sublinhados mais do que úteis para o groove inegável de "Get Myself Into It" (uma aposta como vão aparecer por aí um punhado de remixes enquanto o diabo esfrega um olho?).

Sem a produção da parelha The DFA, para muitos uma das substâncias essenciais de Echoes, o som dos The Rapture não perdeu exuberância. Convidados para governar a engenharia de som de Pieces of People We Love dois ilustres: Paul Epworth, produtor de Silent Alarm (disco de estreia dos britânicos Bloc Party), e Ewan Pearson, mestre inglês do remix. Além destes, o nova-iorquino Brian Burton (aka Danger Mouse) dá uma mãozinha em duas faixas. Com semelhante amparo, a música dos The Rapture é contaminada de urgência disco, quase sempre em timbres eufóricos e vozes menos agudas, ângulos mais polidos. A ignição nem sempre funciona mas há em Pieces of People We Love picante suficiente para estimular apetites de dança. E, ao mesmo tempo, trazer à memória a ideia de que o dance-punk está aí para as curvas.

terça-feira, 26 de setembro de 2006

Os últimos filmes que vi - Eu, Tu e Todos os que Conhecemos, Nada a Esconder & Irmão, Onde Estás?

A primeira longa metragem de Miranda July, também protagonista na fita, é uma alegoria sobre os laços humanos, contada numa narrativa propositadamente soluçante e que intersecta os habitats sociais de alguns misfits. Desses desajustados, sobressai um par, elemento central da história, o vendedor de sapatos Richard (John Hawkes) e Christine (Miranda July), mulher das artes que confunde frequentemente fantasia e realidade. A casualidade que os une é, afinal, apenas a réplica cósmica de que, eles e outras personagens do argumento, tanto ansiavam para achar o escopo do seu destino. Por vezes inocente, outras arrebatado e delirante, Eu, Tu e Todos os que Conhecemos não é um filme imediato e move-se num bizarro limbo, mais próximo da ingénua crença na bondade do mundo do que do realismo acre. E essa é a pecha que mancha ligeiramente a competência do filme, a incrível convicção de que os equilíbrios universais dão a todo e qualquer misfit (e o filme tem uma considerável colecção deles) a esperança num deus ex machina que, por obra do acaso, apareça para salvar os dias. Ou, no mínimo, que os faça sonhar.

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Já não restam dúvidas de que o realizador germânico Michael Haneke gosta de desafiar o espectador. Caché é o seu mais recente repto, mantendo a costumeira tónica minimalista (tão bem encaixam nesta lógica as competentíssimas prestações de Daniel Auteuil e Juliette Binoche) para especular sobre o voyeurismo. A subversão é esticada ao cúmulo de impôr ao espectador uma dupla atribuição: por um lado, o incómodo papel de testemunhar alguém a observar religiosamente o quotidiano do casal Laurent e registar os momentos em vídeo e, depois, observar o enredo na perspectiva do par filmado, presenteado regularmente com as cassetes do voyeur anónimo. Dessa dupla condição, advém um ambiente tenso e perturbador, particularmente no último quarto do filme (a dinâmica narrativa dos outros três é menos boa), com a desfiadura dos actos derradeiros, a exploração minuciosa do sentimento de culpa (sem sentenças) e um final inconclusivo que, se intencionalmente não responde à ânsia construída pelo suspense da história, ao menos é garante de uma coisa: o cinema de Haneke não é pretensioso mas continua a ser para ver e pensar depois.

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Comédia dos irmãos Coen não segue padrões. O absurdo e o vestígio do noir estão por todo lado em O Brother, Where Art Thou?, com argumento centrado nos anos 30 e alegadamente inspirado na "Odisseia" de Homero (as semelhanças são apenas simbólicas), o filme retrata o malabarismo de três foragidos (o líder do grupo, interpretado por George Clooney, só podia chamar-se Ulysses...) do Mississipi em busca de um tesouro. Mas o caminho para o ouro é espinhoso; além de serem seguidos de perto pelas autoridades, os três aventureiros vão encontrar uma série de caracteres bizarros, ora interessados em rapinar a prometida fortuna, ora empenhados em devolvê-los à mão da justiça. Pelo meio, gravam ocasionalmente uma canção que se torna um êxito imediato no estado do Mississipi. Embora as personagens não sejam tratadas com grande profundidade dramática, algo comum nas fitas dos Coen, o desempenho da equipa de actores acaba por salvar o filme e garantir o entretenimento mínimo que se lhe exigia, não avançando além da mediania, a despeito do investimento num punhado de boas ideias.

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segunda-feira, 25 de setembro de 2006

Loscil - Plume

Apreciação final: 5/10
Edição: Kranky, Maio 2006
Género: Electrónica Experimental/Ambiente
Sítio Oficial: www.loscil.com








O quarto disco do rótulo Loscil, pseudónimo no cosmos das artes do escocês Scott Morgan, parece tirado de um tratado de leis da física. Pudessem os axiomas da ciência das interacções entre matéria e energia ser reproduzidos em massa sonora e o resultado final seria muito próximo deste Loscil. Além da indispensável base electrónica, componente indissociável deste género de trabalhos, destaca-se uma subliminar interferência de elementos acústicos reais, mormente nas curtas sugestões de piano e guitarra, perfeitamente dissimuladas nos tecidos sintéticos dos trechos. A coexistência é suficientemente hermética para não aceitar impurezas na mescla, o som torna-se escorreito e abstracto, como é regra de Morgan. Não há aqui pontos de mira objectivos, o álbum erra sem trilhos pré-concebidos e sem o freio da formatação. Talvez por isso esta família da electrónica pareça, muitas vezes, desunida das demais, por estimular repetidamente o cerebelo, nem sempre com idêntica eficácia, mas, acima de tudo, com ousadia criativa menos trivial. Nesse particular, quiçá os predicados de Loscil (contracção de loop e oscilation, ao que consta) até não sejam os mais virtuosos - os projectos de Mark Nelson (aka Pan American, também tem contrato com a Kranky), Adam Wiltzie (aka The Dead Texan) ou o feiticeiro Matthew Cooper (aka Eluvium) competem noutras latitudes - mas garantem um serviço um pouco acima do mínimo.

Da física, Plume recebe o pragmatismo da estática, o recreio dos equilíbrios de forças, momentaneamente substituídas neste palco sonoro de Morgan, por substâncias musicais informes, quase vaporosas, de tão intácteis. No disco, como no universo real, as proporções são sacudidas, podem torcer, mas não quebram. O sumo equilíbrio universal é a justa medida de Plume. Pena é que não se vislumbre sequer uma faísca de reacção química que agite o sistema e nos desperte da mediania.

Posto de escutaMySpace

sábado, 23 de setembro de 2006

Helios - Eingya

Apreciação final: 7/10
Edição: Type Records, Junho 2006
Género: Pós-Rock/Instrumental/Lo-Fi
Sítio Oficial: www.typerecords.com








Se o mundo acabar, o amor será as nossas asas. Assim era a profecia de Dave Matthews, numa canção de um cosmos díspar de Eingya mas que, com certeira ardência, ajuda a unir os fragmentos do belíssimo segundo disco de Keith Kenniff sob o pseudónimo Helios. De facto, há qualquer coisa de despego material no disco, como se musicasse, sem angústias ou medos, um apocalipse esperado pacientemente na certeza de um novo sol posterior, prenúncio de um éden maior, glorioso campo de resgate da emoção. O amor é a tábua de salvação do cataclismo, como dispõe a feliz capa do disco, na vacilante caminhada rumo a uma esfera celeste incerta e supranatural, mundo flutuante de luz. A música de Helios é feita desses passos incertos por entre destroços do homem (e do mundo) terminado, da revelação de uma renovada esperança teológica. Também por isso, é comum aos onze trechos de Eingya uma inesperada simetria entre os ambientes do mais imaculado éter, de fé quase virginal na redenção pós-apocalíptica, e a contingência da sua confirmação. É nessa mágica combinação que o álbum se transcende, primeiro comovendo pela mestria melódica e amenidade das eufonias para, depois, nos levar num torpor hipnótico, indiferente aos confins corpóreos. Onze andamentos fazem de Eingya uma sinfonia do éden, seja ele no último átomo do universo ou na mais entusiasta quimera.

As palavras nostálgicas e delicadas são do piano e da guitarra (a voz é fragma apenas num trecho), as substâncias sintéticas locupletam a densidade das faixas, com pulsações lentas e ténues, sublinhando a fragilidade e a decomposição das paredes de som. Engyia é música de respiro demorado, de latente mortalidade e, influxo concomitante, de bucólica transcendência, como que mostrando que, por detrás da carnalidade de cada partícula sonora (na tradução de Helios, de cada molécula humana) há um quinhão de divindade, um pedaço intangível de som celeste, de notas e tons de estrato maior. Mesmo não tocando planos originais ou especialmente inventivos, Eingya leva-nos a sítios pouco revelados (talvez os Boards of Canada já tenham uma bandeira por lá), em cursos de sublime romantismo. De mãos dadas, até ao fim do mundo.

quinta-feira, 21 de setembro de 2006

Coltrane e Davis em versão conjunta de "So What"


Pequena preciosidade que descobri no YouTube, gravação registada em 1958 de uma versão para "So What", originalmente incluída no álbum Kind of Blue.

Comets on Fire - Avatar

Apreciação final: 8/10
Edição: Sub Pop, Agosto 2006
Género: Rock Progressivo/Noise Rock/Rock Psicadélico
Sítio Oficial: www.cometsonfire.com








Aviso prévio à audição: é pouco provável que se saia ileso do contacto com um disco dos Comets on Fire. A civilidade é para eles um dogma estéril, a música não tem que ser portadora de mesuras, antes se presume a metáfora de um mundo urgente, povoado por seres em eminente colapso, imersos numa roda-viva de alvoroço e stress. E esse frenesi, deformação colateral decorrente da vida em sociedade, é um paradigma sensível na música dos Comets on Fire, particularmente neste Avatar, tomo pejado de sinais da instrução pós-punk, pelo menos nas voltas mais vanguardistas das distorções, coisa farta na nova edição e que, em adultério manhoso, até chega a namoriscar com o hard rock clássico (ouça-se "The Swallow's Eye"). Tudo sublimado e estrepitoso, na extensão esperada dos registos anteriores, mas nos antípodas de outras lembranças de Ben Chasny (esse mesmo, do plácido juízo de Six Organs of Admittance). Aqui, há suspeitas (confirmadas) de ácidos na mistura de sons, com a porção infalível de psicadelismo e a teima no esboço de novos extremos. Não é à toa que os Comets on Fire se converteram em ícones do underground, primeira voz no saque do património rock americano, algo que o seminal Blue Cathedral bradou aos quatro cantos do mundo. Avatar recoloca-os nesse estrato de roubo e amplificação, de volumes incrivelmente altos, com vocalizações mais limpas (a voz de Ehtan Miller já não traz tantas afectações de estúdio) e imoderação no ruído. Outra vez a esquizofrenia de Blue Cathedral? Na composição faz-se inteligível a segurança harmónica das faixas, com alguns tiques maquinais, é certo, mas onde cada fragmento supre um espaço só seu, em abono do refinamento da tensão e da integridade da soma. Nem os dilatados solos perdem o norte.

Se à primeira escuta Avatar parece mais sereno (ou na acepção negativa, mais conservador) do que o antecessor, as audições sucessivas do disco respondem às cobranças mais exigentes e revelam, em lentos avanços, que a alma desobediente dos Comets on Fire está cá toda. Mesmo os instantes mais brandos, como na afinidade Pink Floyd de "Lucifer's Memory", servem à subsistência do disco, impondo variações temporais e cadências distintas, o justo complemento da matriz yin-yang do álbum. Afinal, o psicadelismo também pode ser aviado sem as distorções e os galopes desenfreados de "Holy Teeth". Talvez os entusiastas mais intransigentes do som de Blue Cathedral não achem esta (re)perspectivação fortificante mas o que ela representa, em última análise, é uma expansão da consciência especulativa dos Comets on Fire e um redimensionamento das escalas experimentais do psicadelismo. E Avatar é a etapa mais recente desse maníaco crescimento.

terça-feira, 19 de setembro de 2006

Silversun Pickups - Carnavas

Apreciação final: 7/10
Edição: Dangerbir Records, Julho 2006
Género: Indie Pop-Rock/Shoegaze
Sítio Oficial: www.silversunpickups.com








Desde os primeiros acordes de Carnavas, debute discográfico deste quarteto californiano, somos levados a uma objecção geográfica: isto não é música típica de americanos. Em boa verdade, os múltiplos sedimentos de distorções e efeitos, a disfunção quase esquizofrénica das texturas sonoras, o subliminar noise, a intuição melódica e a atitude introspectiva dos trechos de pop envergonhada encaminham-nos para as memórias do shoegazing britânico. Já este ano, os nova-iorquinos Asobi Seksu, com o competente Citrus, se entretiveram no recreio desta escola, anunciando uma espécie de renascimento do género shoegaze do outro lado do Atlântico. Kevin Shields e os irmãos Reid sorrirão de esguelha ao escutar Carnavas? O afinco instrumental do álbum é coisa para não passar despercebida, tal o furor e inspirado entusiasmo que se decifram nas canções, gordas de ecos e ressonâncias. Depois, há uma sublime aspereza, em contraponto com a ansiedade melódica que pauta o disco, e um persuasivo sentido de urgência, conjugação de elementos que fornece as contemporizações úteis à fluência do som. E se fluem as canções dos Silversun Pickups, distintamente servidas por uma voz dúctil que encontra o sentido da vida em tons andróginos, submergida nas excitantes flamas das guitarras e em enredos harmónicos tão solícitos que parecem obra de gravação a cinzel. É esse o mito dos Silversun Pickups: a paixão do pormenor como trajectória de recurso na órbita shoegaze. E, para evitar o piloto automático, junta-se outro membro a este mexido clube de sons, o pó da arca dos Smashing Pumpkins, uma mera causa espectral para o efeito final, danos do sol da Califórnia em cabeças vergadas, de olhos postos no sapato. Assim Carnavas arreda-se da etiqueta única, é digno de revista redobrada que experimente as sobras para lá da nuvem shoegaze e dos disfarces por detrás do arame farpado dos sons imediatos. Música feraz.

Carnavas está impregnado de causas supostamente prescritas (se não no indivíduo melómano pelo menos no prepotente palco das vendas mainstream) mas não soa retrógrado. Pelo contrário, o som é uma sessão de acupunctura moderna, de estética focada e precisa, algo díspar da tónica dominante das praias da Califórnia (Beach Boys, no way!), é certo, mas cultora de um vocabulário sonoro perspicaz. As metamorfoses expeditas deste mutante, se capturam os favores dos tímpanos do ouvinte, não ficam isentas de uma mácula mínima: chame-se-lhe, esvaziando o substantivo da conotação primária (e mais negativa), repetição em ciclo. O que não deprime a feliz circunstância de não haver uma má canção em Carnavas.

domingo, 17 de setembro de 2006

Xiu Xiu - The Air Force

Apreciação final: 8/10
Edição: 5 Rue Christine, Setembro 2006
Género: Experimental/Pós-Rock
Sítio Oficial: www.xiuxiu.org








Só mesmo uma trupe tão controversa como os californianos Xiu Xiu podia germinar um álbum com o Messias cristão na capa e o título The Air Force. Tão bizarra associação de símbolos, intrinsecamente equidistante da iconoclastia e da piedade, encontra analogias nas charadas musicais de Jamie Stewart, guia criativo do projecto, e da cúmplice (e prima) Caralee McElroy. Os dois juntos, ocasionalmente acompanhados por Cory McCulloch, são obreiros de um mais firmes conceitos musicais da moderna música americana e, em The Air Force, mantêm as premissas identitárias que lhes valeram o culto generoso de uma restrita casta de séquitos, almas convertidas a uma doutrina musical ímpar, feita de avessos e impurezas. A fundação primitiva e indispensável das composições dos Xiu Xiu é o ruído, eles empregam toneladas dele, de tonalidades e origens distintas, ao ponto do espectro cromático das músicas ser difuso, intencionalmente partido, muitas vezes díssono, sempre faustoso, mesmo nos ápices ensimesmados e mínimos. A linearidade não entra nesta álgebra, as melodias decifram-se a custo num confronto de estratos musicais justapostos a preceito, projectando o som a uma amplitude invulgar, aspecto em que o disco suplanta o menos conexo La Fôret. Os contrastes de timbre fazem lei, confundindo a fixação do ouvinte, obrigado à incerteza de avistar o fio melódico de cada composição. É aí, nessa aparente vulnerabilidade (que, afinal, é a sua virtude de excelência), que a música dos Xiu Xiu se arroga das suas valências, aliciando-nos a sondar as mais ínfimas porções dos trechos, sem nunca as desfiar por inteiro. Como uma verbosa sonata digital, The Air Force é necessariamente poluído pelo excesso e pela retorção, pela intersecção e sabotagem de géneros e pela experimentação.

Os conhecedores da peregrinação dos Xiu Xiu pelos ângulos tétricos da circunstância e do acidente sonoro não acharão factos inopinados no novo disco. A singular fantasmagoria de Stewart mora aqui, talvez menos difusa no dramatismo, como que remida de um naufrágio presumido sob o efeito de anfetaminas mas nunca acontecido. Também por isso, por se salvar da alucinação sem deixar de a buscar, The Air Force pode muito bem ser a melhor obra dos Xiu Xiu. A prová-lo, habitam-no algumas peças do melhor do grupo, como a reinvenção shoegaze da extraordinária "Save Me Save Me", a bizarria de "Boy Soprano", as utopias de "Bishop, CA" ou o minimalismo de "Hello From Eau Claire", a dar a emancipação vocal a McElroy, num desalinho à CocoRosie. Mais expressionista do que isto só uma tela de Kandinsky.

sábado, 16 de setembro de 2006

The Mars Volta - Amputechture

Apreciação final: 7/10
Edição: Universal, Setembro 2006
Género: Rock Experimental/Progressivo
Sítio Oficial: www.themarsvolta.com








Os Mars Volta são um daqueles ensembles acostumados a estar na voga. Sem esquecer o passado nos At the Drive-In, o indiscutível bom gosto e o diâmetro artístico dos dois registos anteriores a este vieram a acomodá-los a uma certa sacralização da comunidade indie e, nessa conjuntura, guindaram a exigência a níveis normalmente não acessíveis aos vulgares mortais. É esse o fado incontornável dos special ones (não só Mourinho!), o de serem escrutinados por ouvidos de fina têmpera, já diz o adágio do povo que depois de ter-se cavalgado um puro sangue não volta a montar-se uma mula. Amputechture, terceiro capítulo de Omar Rodriguez e Cedric Zavala, chega a nós envolto nessa vaga de expectações agravadas, ou não fosse cada lance dos Mars Volta um exame solene. Musicalmente falando, eles já não encobrem mistério nenhum, continuam a vascolejar o universo rock clássico, com impressões mais ou menos intuitivas dos King Crimson (o enlace guitarra-saxofone), mormente no formulário de guitarras, aqui e ali também reminiscente dos Led Zeppelin, algo que Rodriguez e Zavala baralham subtilmente com laivos de um Zappa em dias menos audaciosos. Tudo isto embrulhado num concentrado harmónico a fazer escalas no rock progressivo (Pink Floyd in the house) e na música latina, com margem para o recurso aos deslumbramentos da experimentação, umas vezes pertinho do jazz isento de regulamentos, e, noutros turnos, nos arredores do psicadélico. A empatia com os Red Hot Chilli Peppers, na sequência da recente digressão conjunta, é prosseguida em Amputechture, com John Frusciante a emprestar a expressão realista da sua guitarra à maioria das faixas do álbum.

Amputechture não causa o espanto dos antecessores, especialmente o insofismável tomo de debute, mas conserva as faculdades de uma das bandas americanas de maior competência. As letras são impenetráveis como um desafio esfíngico, coisa costumeira nos Mars Volta, e orbitam em reflexos góticos da metafísica, plenos de misticismo e intriga. E que melhor serviço musical para esses textos do que as maquinações iconoclastas de Rodriguez e Zavala? Cada trecho é um choque visceral distinto, um dínamo de virtuosismos inesperados e ângulos tensos e uma miríade de ideias confluentes. Contudo, se cada peça é quimicamente coesa, a fluidez do conjunto encrava pontualmente, redundando num registo global menos monolítico do que se esperaria. Ainda assim, Amputechture capta as matérias essenciais dos Mars Volta e, só por isso, seria sempre uma escuta compensatória. A recompensa é que não é a esplêndida filigrana do costume.

sexta-feira, 15 de setembro de 2006

Kieran Hebden & Steve Reid - The Exchange Session, Vols. 1 & 2

Apreciação final: 6/10 (Vol. 1)
7/10 (Vol. 2)

Edição: Domino Records,
Março 2006 (Vol. 1)
Junho 2006 (Vol. 2)

Género: Música Improvisada



Sorver música com o esteio experimental dos volumes The Exchange Session não é assunto universal, ou não fosse o vanguardismo uma escola pouco estimada pelas massas, normalmente partidárias dos géneros de consumo directo. Orquestrações com olhos postos na incerteza das épocas vindouras são, as mais das vezes, produtos proscritos ou, por pura condescendência de mentes mais irrequietas e curiosas, espécimes consagrados a pequenos nichos de melómanos. Não é que o futuro não espicace o sujeito regular, antes lhe interessa o cómodo lucro de escutar música presente, sem ousar a previsão de conjecturas do amanhã. A esses, a pesquisa visionária de Kieran Hebden e Steven Reid pouco dirá. Aos outros, para melhor entenderem a lavra audaz destes músicos, talvez se imponha um breve resenha do seu trajecto.

O inglês Kieran Hebden foi um teenager rockeiro, admirador das sentenças de Hendrix e dos Led Zeppelin, e estreou-se nas lides musicais nos Fridge, trupe de rascunhos lo-fi, um registo musical díspar do seu projecto mais ilustre, o pseudónimo Four Tet, exímio laboratório de divagação electrónica. Já Steve Reid, inventor de outra geração, subscreve causas diferentes. Reputado produtor e percussionista jazz, conta centos de gravações, algumas delas como parte da comitiva de amigos célebre como Miles Davis, Dexter Gordon, Sun Ra, Archie Shepp, Fela Kuti e James Brown. Feito o obséquio das apresentações, retenhamos a atenção no porte da música.

Repartida em dois volumes, a série The Exchange Session é uma sociedade de sons pautada pelo improviso. Gravadas ao vivo, as peças não permitem mais do que animações em tempo real à orgânica de Hebden, assim compelido a seguir a escolta percussiva de Reid. Efectivamente, é a percussão que dá o mote, marcando o pulso e regendo o compasso, mas isso não esfria a detonação erudita de ruídos e samples, num ímpeto pouco domesticável. Hebden fica sem âncora e, curiosamente, a sua música adquire, na interacção com Reid, outra cinética, com margem para contorcionismos e excentricidades não escutadas na assinatura Four Tet. Depois, a parcimónia de Reid reduz a percussão à sobriedade groove mais solúvel com as megalomanias pós-industriais de Hebden, excepção feita a alguns címbalos mais calorosos, amplificação que em nada encurta o plano lacónico de Reid, por oposição à incontinência quase lunática de Hebden. Como se fossem irmãos coevos de Dr. Jekyll e Mr. Hyde. O entrosamento e as modulações são superlativos, especialmente tendo em conta que estes são os primeiros trabalhos deste par. Pode chamar-se a isto jazz livre ou futurista, no encalço dos esboços dos Spring Heel Jack, embora aqui se adensem as expressões sintéticas do fantástico e se almejem horizontes menos rigorosos: os filões de música anti-probabilidades, deformadora das estruturas convencionais e plena de inventividade.

Com sinergias mais vincadas, as construções de Vol. 2 mostram melhor fluência sequencial e, com isso, acercam-se de um auge incerto (para os próprios músicos), zénite esse que fica um tanto distante em Vol. 1, tomo mais prolixo e, consequentemente, de estruturas mais difusas. Ainda assim, o referencial dos dois volumes é muito semelhante e baseia-se numa lógica de progressão em transgressão, o que é o mesmo que dizer crescimento sem regra. E, vistas (e ouvidas) bem as coisas, a colecção The Exchange Session é uma generosa propaganda da música improvisada, a cargo de dois músicos destros nas suas artes e que encontram, melhor ou pior, calhas comuns nas atipicidades do jazz e da electrónica.


quinta-feira, 14 de setembro de 2006

Guillemots - Trough the Windowpane

Apreciação final: 8/10
Edição: Polydor, Julho 2006
Género: Pop Erudita/Indie Pop
Sítio Oficial: www.guillemots.com








A pop britânica está ao rubro. Goste-se ou não das suas diversas cambiantes, desde os massificados Coldplay e Keane, à vizinhança rock dos Franz Ferdinand e Arctic Monkeys, a verdade é que o género experimenta uma projecção mediática assinalável no Reino Unido e além-fronteiras. É neste frenesi que surgem os Guillemots (lê-se Gui-Li-Móts), quarteto sediado na inspiradora Londres mas com elementos de quatro países diferentes (um percussionista canadiano, Greig Stewart (aka Rican Caol), uma contrabaixista escocesa, Aristazabal Hawkes, um guitarrista brasileiro, MC Lorde Magrão, e um pianista clássico inglês, o vocalista Fyfe Dangerfield), com uma proposta vincadamente distinta da corrente dominante, a inventar uma pop com caprichos de experimentação, sem transbordar para o dislate, e com um diâmetro instrumental vago e amplo. Se a nível vocal o disco não firma tão declaradamente a diferença para os conterrâneos, a porção instrumental não consente objecções: estamos perante uma pop maior, de arranjos menos convencionais e ângulos expansivos, de medidas maiúsculas e imprevistas, de mutações que não estancam e que atravessam o tempo sem decreto. Como se se harmonizassem a bela modéstia do trovador Nick Drake e o lustre dos Radiohead, as subversões de David Sylvian e o sobressalto electro dos primórdios dos Soft Cell, o espectro dos Talk Talk e os adornos dos Divine Comedy, a intuição de Rufus Wainwright e a elegância de Elvis Costello, a espessura de Wagner e a exaltação dos Sparks, o pragmatismo de Brahms e o R&B dos 60's, o enigma cerebral dos Residents e o culto ecléctico de Dvorak, os alicerces de Sakamoto e os sabores brasileiros.

A fartura de substâncias de Through the Windowpane é abissal; cada trecho do álbum enche-se de estímulos simultâneos, em alvoroço sensorial único, cada qual com o seu tom e ambiente justo, a dose certa de experimentalismo e devaneio e, acima de tudo, a transcendência de evitar lugares comuns. E não há vulgaridade nos hinos deste disco, as peças são mais do que canções, aventuram-se num infinito sem falhas e denunciam cores novas. E neste dédalo de influências e intenções, espanta a destreza dos Guillemots em não malbaratarem ideias e manterem um equilíbrio raro. Não há desperdícios nem saturações em Through the Windowpane, seguramente um dos melhores discos de estreia dos últimos tempos e obra a figurar nos catálogos best of de 2006. Grandioso e idealista, o disco é uma crível sinfonia pop, uma glosa musicada sobre a inevitável temática do amor que não se rebaixa à lamechice e é ministrada com a excelência e alcance instrumental de que a pop escassamente tira partido.

quarta-feira, 13 de setembro de 2006

O último filme que vi - Carros

Já não é notícia original dizer-se que a Pixar - recentemente adquirida pela Disney - é, hoje, o estúdio de animação com maior reputação, por força do grau das fitas produzidas nos últimos anos (o par de filmes Toy Story, Monstros & Cia., À Procura de Nemo e The Incredibles - Os Super Heróis são alguns exemplos). No título mais recente, Carros, o universo dos campeonatos NASCAR americanos, aqui servido por bólides animados, é o mote cénico, numa narrativa centrada na personagem do arrogante speedster Lightning McQueen (delicioso alvitre a Steve McQueen, também ele um entusiasta dos motores). Quando as desventuras do destino o levam à erma metrópole de Radiator Springs, urbe saudosa do rebuliço de outrora, dos tempos antes do advento da via rápida que a subtraiu às rotas dominantes, McQueen vai aprender uma profunda lição de humanidade e de valores. A expressão animada dos caracteres do filme tem a plausibilidade do costume na Pixar, ajudando à definição da densidade dramática das personagens e da consistência rítmica da história. É aí, como noutros momentos destes autores, que Carros vai além dos produtos concorrentes neste género, fazendo-nos crer que, por verosímil analogia, no lugar destes carros que falam e se comovem, podiam estar seres humanos de carne e osso. E estão cá, na versão original, as vozes de Owen Wilson, Paul Newman, do comediante redneck Larry the Cable Guy e Bonnie Hunt.

Apreciação no espaço de cinema do apARTES. Clique aqui ou no link na margem esquerda do blog.