sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Forest Swords - Engravings



8,2/10
Tri Angle Records, 2013


Criar um ambiente musical que constitua um permanente desafio à audição mais comodista não é tarefa ao alcance de qualquer um, sobretudo quando os cânones musicais contemporâneos apontam cada vez menos para esse tipo de artesanatos de pormenor, em que as texturas são trabalhadas como se filigranas fossem. Nesse particular, Matthew Barnes já havia mostrado ao que vinha em 2010, então com um quase incógnito Dagger Paths, urdido no mesmo ethos de dissimulações sonoras que agora conhece renovada sucessão. Mas não pode dizer-se que Engravings é apenas mais do mesmo, há um notório crescimento do conceito. É claro que cada composição continua a transparecer um sentido de detalhe oportuníssimo nesta fórmula, mormente na máscara que é imposta a cada input; os sons raramente aparecem com a identidade original, são quase sempre travestidos noutra coisa qualquer, como se expostos a um processo químico que lhes altera as propriedades originais. Produção no seu melhor. E é aí que a música do britânico se torna mais inquieta, quando se percebe que a coisa resulta bastante densa e reverberante.

É assim que Engravings nos remete para um universo difícil de definir, algures nos domínios contemplativos do pós-rock, mas a transgredir mais do que aí é suposto. As estruturas não são estanques e aceitam impulsos vários, sempre arrastados, ora de linhas de guitarra em metamorfose psicadélica, ora de batidas e electrónicas vindas do dub e a caminho de qualquer coisa espacial, de futurismo tribal. Aparentemente ilógica, a fusão das camadas é surpreendente do início ao fim do alinhamento, não só por ser mais rica do que no primeiro registo, mas sobretudo por se apresentar com rara coesão. Este é um mundo sonoro abstracto, em certo sentido até confinado às contemplações de um homem só e empenhado em transpor para a música a serenidade do sinistro.


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terça-feira, 27 de agosto de 2013

Washed Out - Paracosm

7,3/10
Sub Pop, 2013


A identidade musical de Ernest Greene tem qualquer coisa de deriva hedonista. E se a música é, bem vistas as coisas, um jogo manifestamente sensorial, porque não há-de ele borrifar-se para os considerandos de ligeireza que, muitas vezes, são apontados à recente vaga chillwave e usá-la como alicerce para música sincera e emocional? Talvez a menção à superficialidade até fizesse algum sentido no primeiro tomo como Washed Out, evidentemente mais lo-fi e caseiro, mesmo emocionalmente mais retraído, e embriagado numa electrónica corriqueira. Nessa ocasião, pese embora o pendor melódico de alguns trechos e a engenhosa justaposição de sintetizadores, a coisa soava algo previsível e insípida. Com uma premissa assim, dificilmente se adivinharia uma sucessão bem mais rica, mas a oportuna adição de guitarras, baterias e baixo acrescenta uma orgânica completamente diferente às composições, quase fazendo esquecer que a matriz conceptual é electrónica, como convém a música escapista. O melhor elogio que pode fazer-se a este renovado exercício de abstracção, por oposição ao antecessor, é o facto de deixar ressonâncias na mente, de não passar indiferente; neste Paracosm a redundância cedeu o lugar à afirmação de um discurso sonoro mais expansivo, seguramente, mas, ao mesmo tempo, mais assertivo e seguro de si.

Também por isso, se esbate irremediavelmente o acinte com que muitos consideravam Ernest Greene (e seus pares) um artista menor; e isso apenas por ele versar a mundanidade sem qualquer fátua. O próprio Green considerou Paracosm um manifesto de "psicadelia diurna". É possível que não seja tanto, tampouco chegue às ilusões imaginadas de um qualquer paracosmos, mas é um disco abundante em momentos interessantes e acima da média do que fora dado a conhecer por Washed Out até aqui.


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sábado, 24 de agosto de 2013

Jagwar Ma - Howlin

8,5/10
Marathon Artists, 2013


A família de singles que apresentou este duo australiano ao mundo gerou algum furor mediático, depois exponenciado pelos encómios quase casuais de Noel Gallagher. Foi q.b. para se agrupar um coro de admiradores dos Jagwar Ma e para subitamente lhes colarem todo o tipo de rótulos, na habitual vertigem bibliotecária que toma de assalto o mundo musical sempre que um projecto entusiasma curiosidades. Pese embora a afinidade do single "The Throw" - por sinal, um dos grandes momentos deste Howlin - com o psicadelismo dançável de então, empurrar estes aussies para a velha Madchester é abreviar-lhes a amplitude musical. Não é que eles rejeitem essa herança tão nobre, antes a acolhem sem nenhum pudor anacrónico, mas insuflam-na de tal maneira que, escutado o álbum como um todo, é impossível confiná-lo a uma consideração tão superficial. Bem vistas as coisas, o aporte madchesteriano não é aqui mais do que uma suspeita avulsa, um agradável tempero que só pontualmente se faz argumento principal. E aí se esgota o revivalismo.

Tudo o resto neste Howlin é genuinamente contemporâneo. Há aqui uma recreação inteligente e bem equilibrada (no equilíbrio desequilibrado do psicadelismo, bem entendido) do rock alternativo de casta fantasiado de electro-pop, de melodias Beach Boys pervertidas, de cadências do acid house, de uma festividade química contida mas contagiante. Depois, torna-se viciante descobrir que esta versatilidade dos Jagwar Ma não redundou num alinhamento difuso. Ao invés disso, Howlin soa inacreditavelmente coeso, mesmo nos seus contrastes intrínsecos, e tem o mérito, cada vez mais incomum, de nos apanhar de surpresa. Um grandíssimo disco destes neo-hippies australianos a divertirem-se à grande.

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sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Moderat - II


6,4/10
Mute, 2013

É pouco provável falar-se da música europeia e passar ao lado da cena berlinense, vista por muitos, hoje, como o epicentro da electrónica no velho continente, tenha ela a forma que tiver. Não se trata apenas do peso histórico associado a esse rótulo, mas sobretudo da efervescência nocturna que se tornou sinal identitário da metrópole, um verdadeiro berço de ideias que inspiram gerações atrás de gerações e criaram fileiras de discípulos que parecem não ter fim. Foi dessa prole que emergiram os dois projectos aqui aglutinados num só: Modeselektor (o laboratório sonoro de Gernot Bronsert e Sebastian Szary) e Apparat (o codename de Sascha Ring). A primeira convergência de universos sonoros do trio aconteceu em 2002, na ocasião no EP Auf Kosten der Gesundheit, cunhado pela BPitch Control, de Ellen Allien, também ela berlinense de gema, mas parecia votado ao esquecimento, alegadamente em razão de divergências artísticas que inviabilizaram a continuidade imediata do projecto. Foi só sete anos mais tarde, então no formato inteiro (álbum), que voltaram a reunir-se, já seguros de que o crescimento artístico de ambos os projectos, e o consequente maior impacto mediático, viriam a proporcionar um reaparecimento mais congruente. Chegado agora ao segundo registo, o trio Moderat tem vida própria e cresceu além da soma das partes e, como os integrantes afirmam, não é um mero capricho paralelo.

As linhas criativas deste II não diferem substancialmente do seu antecessor, pelo que, a despeito do fino recorte dos trechos, não chega a desvelar-se nada de substancialmente original. Mantêm-se a tangência com a estruturação pop que muitos amaram (e outros adiaram) no primeiro capítulo, um namoro light com o dubstep londrino e diversas colorações electrónicas, também os inputs das partes: a festividade abrasiva dos Modeselektor e a abstracção solitária de Apparat. O cruzamento desses contributos é mais friendly do que antes, o que, mesmo com alguns momentos de resultado inesperadamente interessante, é um sinal de que o novo Moderat é mais um recreio de concessões pop do que o saudável laboratório de fúrias que o antecedeu.

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quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Julia Holter - Loud City Song

7,2/10
Domino
2013




Dela se conhecia já a predilecção por um vanguardismo musical que se caracteriza, na essência, pela miscigenação de géneros, algures entre uma pop genuinamente sem concessões e marcada pela elegância, a electrónica de feição espacial e um formalismo próprio da música de câmara contemporânea. É natural que um edifício musical assim tão substancioso nunca chegue para levar Julia Holter ao mainstream e resgatá-la de um anonimato que a nobreza da sua obra não merece. Chega, agora, o terceiro capítulo de uma discografia pautada pela fidelidade aos princípios musicais que acolheu e que têm neste Loud City Song uma maturação consequente, talvez a arrumar melhor a densa panóplia de estímulos inspiradores e a seguir um fio-de-prumo. Nessa acepção, este disco é até algo conceptual, como aconteceu com outras obras anteriores, ou não fosse inspirado em Gigi, de Sidonie-Gabrielle Colette, a narrativa de uma jovem parisiense seduzida pela vida de cortesã como catapulta social. A história viria a ser feita musical em 1958, pela MGM. Ambos, o livro e a película, serviram de inspiração a este trabalho, segundo a própria Holter.

É indesmentível a erudição de Loud City Song, aqui enobrecida por músicos de estúdio e orquestra (as anteriores gravações de Holter eram caseiras), a mesma que vem despertando o cepticismo de alguma crítica mais desconfiada e que confunde opção com pretensiosimo. Este calibre é isso mesmo, uma opção, e é atingível apenas por quem estudou composição musical e sabe urdir uma linguagem musical complexa, é um facto, mas não necessariamente eivada de fatuidade. O academismo não é exibido com presunção, não é senão um propósito incontornável para a ressonância emocional que Holter quer fazer passar. Os trechos resultam algo cerrados, mas são lentamente decifráveis a cada audição adicional. E, no decurso dessa aclaração, pela mão de uma voz maravilhosa, destapa-se uma curiosa visão do mundo, uma reinvenção voyeurista da Paris de Gigi e da Los Angeles de Holter. Da metrópole universal.

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quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Oblivion

6,2/10
2013



É curiosa a fobia maníaco-depressiva com que a espécie humana olha para si mesma e se põe a adivinhar o futuro. De um lado, mora o temor de uma inevitável ruína, ora às mãos de feridas auto-infligidas, ora sob o jugo de qualquer fantasmática invasão alienígena; do outro lado, a crença infinita num instinto de sobrevivência que há-de remir tudo, como se a existência universal só fosse possível com mão humana. Essa obsessão antropocêntrica é, com nuances diferentes, o pano de fundo de qualquer teorização cinematográfica do domínio da ficção científica e, não raras vezes, o enquadramento perfeito para consagrar esse deus ex machina reside em cenários de negritude apocalíptica. Assim acontece neste Oblivion, segunda película de Joseph Kosinski, o mesmo que deu uma segunda vida a Tron.

Não é nova a premissa de o planeta vir a ser exaurido dos recursos naturais. Se quisermos, ela reflecte os medos antigos da insustentabilidade, o receio generalizado de que, num momento algures no futuro, o Homem há-de de perceber que gastou o planeta até o extinguir ou, e em tese mais fantasiosa, alguma outra espécie há-de interessar-se pelas possibilidades energéticas da Terra.

Jack Harper (Tom Cruise), mecânico de drones, vive entre a asfixia de memórias mal apagadas - que o levam a questionar-se recorrentemente sobre si mesmo - e a consciência de uma missão para cumprir: ajudar a "exportar" os recursos do planeta Terra, condenado após uma alegada guerra com uma espécie invasora, para Titã, o satélite que alberga os sobreviventes. Mas ele está mais ligado ao planeta do que julga saber e nem a plácida (e enigmática) presença da companheira de missão Victoria (Andrea Riseborough), o vai desviar da obstinada demanda pela verdade.

É indiscutivelmente funcional a cenografia de Kosinski, sobretudo quando invoca a sumptuosidade da ruína, exibindo-a sem deixar que se torne o centro da narrativa. Esse desvio do exagero marca pontos, sem dúvida, mas não ilude a sensação de que se podia ter ido mais longe na expressão dramática das personagens, na exploração da dimensão humana tão cara à própria história de Oblivion. Na segunda metade do filme, quando se desatam os nós da trama, a vaguidade das personages faz-se sentir e a aderência do espectador perde-se. Depois, os problemas de guião adensam-se: o elemento de suspense, habilmente conduzido até certo ponto, é desbaratado numa marcha rápida de revelações que parecem atropelar-se. E sobra uma impressão de desarmonia, de primazia pela imagem em detrimento da história, de alguma insipidez conceptual. Afastado como produto final do que seria o protótipo mental de Kosinski,  restarão a Oblivion os indefectíveis de ficção científica para encontrarem nele matéria verdadeiramente sedutora.

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The Knife - Shaking the Habitual

7,9/10
Mute
2013




Quando os manos Olof Dreijer e Karin Dreijer Andersson decidiram afrontar abertamente o conformismo político da sociedade sueca, assumindo-se opositores da instituição da realeza do seu país, vista por eles como um símbolo neo-liberal da desigualdade e exclusão social, até da indiferença de um certo paradigma materialista que tem o beneplácito da maioria da população, colocaram-se num púlpito a que poucos músicos se atrevem. Já se lhes conheciam ímpetos de inconformismo, de alguma rebeldia de consciência, mas raramente haviam tomado uma atitude contestária tão pronunciada. E foi com esse pano de fundo que nasceu Shaking the Habitual, quarto registo de estúdio, de título inspirado numa citação de Foucault, um convite dissidente a repensar instituições e convenções e a recriar estruturas sociais tidas como inevitáveis. E, assim, mais do que um disco, estamos em presença de um manifesto político, ou pelo menos do seu reflexo musical, tanto quanto se pode converter a palavra discursiva em música. Agitar consciências através da música, é o que os The Knife nos dão aqui. Que melhor resposta depois de um silêncio de sete anos?

Tendo em conta que Olof e Karin queriam fazer deste Shaking the Habitual um statement anti-costumes, a música só poderia resultar convulsiva; a dada altura, com um manto musical em deliciosa esquizofrenia, ouve-se "Liberals giving me a nerve itch". E nervo é coisa que não falta aqui. Embora essa inquietação esteja sempre presente, ela é um monstro de formas várias, ora corrosiva em cadência rápida ("Full of Fire", por exemplo), ora atemorizadora e espiritual em tantras quase surrealistas ("A Cherry on Top", "Old Dreams Waiting to be Realized"). No fundo, a contestação de base, se quisermos a negação do estruturalismo social, é tangente ao niilismo; e há qualquer coisa de niilismo formal neste Shaking the Habitual. Isso acaba por traduzir-se numa obra pouco linear, é certo, mas em que as divergências de forma acabam por ganhar um sentido bizarro. Os The Knife mandaram às malvas a coerência estética - porque ela nunca serviria o propósito panfletário - e, com a nota de misticismo sinistro comum aos trabalhos anteriores, entregam-nos um disco corajoso, pejado de vertigens sonoras e alçapões emocionais. Ao mesmo tempo, empunham-se armas de arremesso e bandeiras brancas. O cruzamento é feliz e, seguramente, agita o habitual.


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Fuck Buttons - Slow Focus

6,8/10
ATP Recordings
2013




É a tenacidade de gente indomável como Andrew Hung e Benjamin John Power, as duas metades dos Fuck Buttons, que faz expandir os cânones do mundo musical e leva a invulgaridade a públicos maiores e mentes mais preguiçosas. Da sua identidade musical, já se sabia, sobeja a sensação de uma demanda perfeccionista, como se quisessem sempre somar alguma coisa ao que foi feito. É, de resto, essa aparente intuição de incompletude o seu maior paradoxo: sendo tão plena de artifícios parece sempre possível acrescentar alguma coisa às composições. Assim cresce a obra dos Fuck Buttons, disco a disco, quiçá à procura de, num qualquer dia do porvir distante, eles poderem vislumbrar no que gravaram um edifício sonoro monolítico. Por agora, o que têm em mãos é o trajecto para lá chegar e, para se acercarem desse fito, vão ter que arriscar a densidade sonora que apregoam convictamente. Ou, no mínimo, continuar a promover a sua maturação. Este Slow Focus, terceiro manifesto da empreitada, não é de consumo fácil, tão abarrotado está de estímulos e pormenores. Mas nessa amálgama, não há lugar para confusões, alguns sons vagabundos encaixam perfeitamente numa máquina electrónica afinadíssima, cheia de texturas e pontilhados.

O mais curioso é que uma música tão “matemática” consiga subliminarmente prender-nos no domínio das emoções – quase sempre escuras -, quando ela própria respira técnica, regra e método. Número versus coração, está bom de ver. Não mora em Slow Focus matéria dançável, nem é esse o propósito de Hung e Power. Chamar a isto psicadelismo, parece arriscado porque, afinal, a música é contida, sabe para onde vai e recolhe-se nos limites formais desse objectivo, como uma introversão consciente e tão pomposa e organicamente preenchida quanto possível. Ainda assim, não é um formalismo de vistas curtas, é antes um atalho cirúrgico para o escapismo estético que os Fuck Buttons perseguem. O fatalismo anunciado – e de que tanto gostam Hung e Power - encontra remissão em cada faixa, mas não é prolixo demais?

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Laura Marling - Once I Was an Eagle

7,8/10
Ribbon Records
2013
http://www.lauramarling.com/



Senhora de um crescimento artístico paulatino, progredindo disco a disco, a britânica Laura Marling chega ao quarto registo com as certezas estéticas dessa evolução e o mediatismo próprio de alguém que, apesar da tenra idade (23 anos), dá mostras de saber para onde caminha. Não se deslumbrando com os prémios da indústria fonográfica, ergueu uma identidade artística folk que lhe vem rendendo comparações com Joni Mitchell, sobretudo quando manifesta uma apurada consciência das suas próprias emoções, vertendo-as em composições honestas e sem pretensiosismos. Se os álbuns anteriores eram já manifestos dessa introspecção sentimental despudorada de Marling, eventualmente até expondo parte da sua intimidade, este Once I Was an Eagle é o seguimento lógico, nos mesmos moldes contextuais e com um amparo musical tão espartano como uma confissão. Ao prenunciar um certo desencanto existencial, o título é um justo mote do desfile de dezasseis canções.

A voz é o núcleo da mensagem, assente em texturas musicais consistentes com a primazia que a guitarra sempre teve na música de Marling. Mesmo assim, essa regra dispensa agora os artifícios estéticos pontualmente inscritos noutros trabalhos. Essa escusa não é senão o recurso estilístico certo para sublinhar o registo mais sombrio do percurso da inglesa, também sentido na monocórdia do canto, tendencialmente menos elástico do que era habitual. Bem vistas as coisas, é esta crueza na roupagem musical e no discurso que melhor serve a identidade zangada do disco, naquilo que pode ver-se como um reflexo perfeitamente diáfano do estado de espírito da cantora, a braços com uma recente mudança para Los Angeles, com romances desfeitos de permeio. Se a música é catarse, ela está cá toda, esquadrinhados são os mais recônditos sedimentos emocionais da cantora e as implicações morais de cada memória, de cada lembrança. Não é, contudo, obra para voyeurs de momento, é antes uma declaração de maturidade emocional, de embate rude com um desapontamento que parecia impossível. Sem despeito e sem cerimonial. O tom  dominante é de uma revolta feral, a voz tão calma, a guitarra sem angústia, as percussões pontuais são testemunhas lá no fundo, o violoncelo é ajudante casual. No final, sobra uma sensação de epifania: a utopia do mundo perfeito, da majestade da águia, há-de ruir. E outra se erguerá, com sombras na memória, é certo, mas com a certeza de que nada acaba. E este Once I Was an Eagle é só uma belíssima passagem da regeneração.

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