segunda-feira, 30 de outubro de 2006

The Decemberists - The Crane Wife

Apreciação final: 7/10
Edição: Capitol, Outubro 2006
Género: Indie Pop-Rock/Pop Erudita
Sítio Oficial: www.decemberists.com








A pop indie já não vive sem Colin Meloy e os seus The Decemberists. Eles são uma das mais reputadas exclamações melódicas do circo pop contemporâneo, tendo esculpido um património curto (este é apenas o quarto registo da banda) mas tão robusto e substancial que faz do quinteto americano uma alusão óbvia em qualquer rol de indies musicalmente relevantes. Picaresque, unanimemente reconhecido como uma das obras essenciais do ano transacto, deixou o sabor de uma pop elegante, arredondada pela porção certa de um experimentalismo que se confunde com fantasia e teatralismo, condimentos oportuníssimos para as metáforas e símbolos dos escritos de Meloy. The Crane Wife merece idêntica erudição, tanto na lírica (imaginativa, como sempre) como nas pautas, preenchidas com as harmonias tonais e o embalo gracioso que se tornaram firma dominante da banda. Sopa no mel de estruturas simples, sons volantes e acordes que fluem naturalmente, como se houvessem sido inventados para se combinarem nestas eufonias. E esse equilíbrio ingénito é uma carícia nos tímpanos, sem contudo se perder em precipitações la-la-la ou favores à radio pop, tentação (ou imposição) que habitualmente sobrevém à assinatura com uma major. No debute pela Capitol, os The Decemberists são fiéis a si mesmos, guardam os mesmíssimos princípios de Picaresque, eventualmente abreviando o gradiente de cores, em prol de um som que, sem perder a majestade instrumental, segue uma espia mais lacónica. O que é o mesmo que dizer que Meloy e seus pares põem, neste capítulo, menos fé no laboratório e mais crédito na causa das canções. E são boas as canções que servem o conto japonês por detrás de The Crane Wife, disso não há dúvidas, mesmo que fiquem um tanto aquém da eminência de outros momentos.

"The Island", peça maior (em tempo e atributo) do disco, e "Yankee Bayonet" fazem a melhor sinopse que este álbum podia ter. Na primeira, está lá tudo, numa sequência progressiva de três composições (coisa a fazer lembrar a peça única de The Tain, EP de 2004) que se alinham numa só e onde se percebem as pontes óbvias com Picaresque e, em simultâneo, ao que vem The Crane Wife e como a banda sabe o que faz: belas melodias, arranjos convenientes, alternâncias e elasticidade estrutural, mescla de géneros, ensaios e contorcionismos instrumentais. Já "Yankee Bayonet", com a voz de Laura Veirs em dueto com Meloy, mostra-nos a face mais viva das melodias e a urgência estrutural da simples canção pop que, mesmo com uma lírica trágica, demonstra uma tendência triunfante.

Dois caminhos para uma pop instruída, dois traços característicos de uma banda especial com queda para fazer do drama proverbial o mantimento de sonatas refinadas. The Crane Wife é uma adição oportuna ao universo dos The Decemberists e, mesmo não tendo a consistência de outros discos do grupo (a estéril "When the War Came", ao estilo de uma dormente cadência hard rock, é um dos exemplos de embaraço), é um ciclo de canções compensadoras. E os The Decemberists continuam a ser um ensemble cheio de virtudes.

sexta-feira, 27 de outubro de 2006

Isis - In the Absence of Truth

Apreciação final: 7/10
Edição: Ipecac/Rastilho, Outubro 2006
Género: Pós-Metal/Metal Progressivo
Sítio Oficial: www.sgnl05.com








A estética dos americanos Isis dispensa apresentações. As texturas básicas são próprias do corpo teórico do metal mais possante, mas posto ao serviço de uma matriz distinta, já não potenciadora da potência acústica, antes criadora de ambientes tensos e atmosferas introspectivas. Pitadas de sons progressivos, numa dinâmica de baixos e altos alternantes, com acordes e riffs abertos, algum feedback e vocalizações mudáveis (do canto ocasional ao brado angustiado) - facto mais notado nas edições recentes - são os ingredientes idiossincráticos do ensemble. A extraordinária combinação de propósitos minimalistas, ao jeito dos Earth - referência incontornável da música dos Isis - com o ímpeto e pujança das escolas mais robustas, proporciona um espaço infalível para a experimentação e para o jogo de contrastes, rompendo convenções estruturais de composição. Divagantes e crescentes, é no desassossego e no desarranjo espacial do som que as peças dos Isis encontram a purgação. Nesse particular, seguindo a linha orientadora de Panopticon (2004), registo anterior da banda, o novo opus é outro estádio na transição dos Isis para um som mais limpo, necessariamente mais brando, mas onde as partes se integram com outra concisão, deixando de lado o peso dispensável de alguns excessos de outros exercícios. Além do apaziguamento vocal, pormenor especialmente notório na aproximação a timbres mais amistosos de um Aaron Turner longe do berreiro insistente de outros tempos, a produção do álbum reforça a nitidez melódica dos trechos, fabricando o complemento seguro para a musicalidade indutora de transe do grupo americano. Não é que In the Absence of Truth seja uma redefinição das marcha dos Isis, nada no disco toca o imprevisto, mas o incremento da harmonia das composições e a convergência (aí sim, menos esperada) para o pós-rock, tornando a música menos física e mais cerebral, são rastos de um carácter novo e da abertura de ângulos poucas vezes ouvidos no orbe metaleiro. A brincar com os arquétipos próprios ou a aventurar-se num estilo pós-metal progressivo, os Isis trilham caminhos mais ambiciosos na composição. Falta saber se os séquitos de longa data lhes vão perdoar a gracinha.

In the Absence of Truth encerra um mistério. Por ser gerado num momento de transição, com as consequentes nódoas e virtudes, não chega a perceber-se se é um disco pós-metal ou, pelo contrário, um tomo pós-qualquer-outra-coisa, tal a primazia de tons, melopeias e inflexões que mais parecem um estranho híbrido entre os Mogwai, os Neurosis e os Explosions in the Sky. Essa incerteza identitária (outros chamar-lhe-ão eclectismo), embora manche o discernimento da obra e deslustre a cambiante mais importante da essência dos Isis (o encaixe cerebral das cadências metal), não subtrai méritos ao ensemble americano, nem diminui o relevo do seu crescimento artístico mas refreia a exaltação desmedida que, depois de Oceanic (2002) e Panopticon (2004), elevou os Isis ao estatuto de voz suprema do pós-metal.

quinta-feira, 26 de outubro de 2006

Loto - Beat Riot

Apreciação final: 6/10
Edição: Som Livre, Outubro 2006
Género: Electro-Pop
Sítio Oficial: www.loto.cc








Após um debute promissor que os empurrou para a dianteira do andamento moderno da pop lusa, os alcobacenses Loto trazem-nos o segundo registo, dois anos volvidos da surpresa descontraída de The Club. Mesmo com um som de substância menos sintética, em razão do reforço das instrumentalizações acústicas, a predilecção pelos sons de Manchester continua a ser o chafariz de inspiração primária. Nessa linha, Peter Hook, o insurgente baixista dos Joy Division (e, depois, dos New Order) é convidado de honra e tinge dois trechos (o single "Cuckoo Plan" e "Beat Riot") com arpejos escuros, do mesmo timbre de gravidade escura que se fez carimbo de uma geração. Além desse notado acrescento ao corpo sónico do trio português, Del Marquis, guitarrista dos mediáticos Scissor Sisters, é o amparo e as arestas de "Golden Boys", momento maior do disco. São estas interferências importadas que confirmam a maturação instrumental dos Loto e introduzem um padrão renovado de coordenadas, não prescindindo do propósito dançante mas a desatar as guitarras do ascendente electrónico. O resultado dessa deslocação é um som mais fluido, com um sentido de proporção mais apurado e, sobretudo, uma orgânica mais precisa. Tal evidência aponta uma subliminar descontinuidade face a The Club, tomo essencialmente vocacionado para as pistas de dança e, embora não se possa falar em ruptura, antes em renovação de ambientes, Beat Riot é mais amplo. Parte dessa expansão é imputável à criteriosa produção de Roger Lyons que, com rigor de acupunctura, sublinha a ambição sóbria do disco.

Se tecnicamente Beat Riot merece apenas reparos mínimos, o que obsta a que seja o álbum que podia (devia) ter sido? Sem rodeios, as canções. Os Loto perceberam a utilidade de uma arrumação diferente do espectro sonoro e, com isso, afastaram dúvidas na resposta aos quesitos técnicos do sempre difícil segundo álbum. Pena é que, com a excepção de algumas malhas bem urdidas ("Cuckoo Plan", "Golden Boys" ou "Beat Riot"), o crescimento do corpo sonoro não condiga com idêntico incremento das composições. Daí advém um alinhamento algo prolixo, com ideias dispersas (e também uma ou outra canção inoportuna) a ofuscarem os lances mais felizes. Mesmo assim, Beat Riot vem provar que há nos Loto boa substância. Consigam os rapazes de Alcobaça aprimorar as melhores ideias e, nas imprevisíveis sortes e números do destino, talvez venham a gritar o ansiado brado da confirmação: Loto! Por ora, a mudança na disposição da mobília, coisa bem feita por Beat Riot, se é certo que deu outra fisionomia à cara musical dos Loto, não chegou para lhes dar a moradia nova. A promessa ainda carece de confirmação.

quarta-feira, 25 de outubro de 2006

Bert Jansch - The Black Swan

Apreciação final: 7/10
Edição: Drag City, Outubro 2006
Género: Folk/Cantautor
Sítio Oficial: www.bertjansch.com








Figura incontornável da folk britânica das últimas décadas, quer como parte do miolo criativo do colectivo Pentangle, quer como compositor solitário, o escocês Bert Jansch já vale quatro décadas de canções. Na volta após um hiato de quatro anos, o guitarrista acerca-se das noveis marchas da folk e, para tal fito, nada melhor do que uma escolta de gente reconhecida nessa órbita. A produção é de Noah Georgeson (pôs ouvido e dedo em Milk-Eyed Mender, de Joanna Newsom, e Cripple Crow, de Devendra Banhart); Beth Orton, cantautora inglesa eternamente apreciada aquém do seu mérito, empresta voz e guitarra (em "When the Sun Comes Up", "Katie Cruel" e "Watch the Stars"); Devendra Banhart canta em dueto (escondido) em "Katie Cruel"; David Roback (Mazzy Star) e Kevin Barker (Currituck Co.) dedilham alguns suplementos de guitarra; Helen Espvall (Espers) espalha cosméticos sublimes de violoncelo e Otto Hauser (Espers, Vetiver) é a bateria (e demais percussões) perita em velar pelo tom brando do registo. Semelhante trupe de amigos é o aditivo certo para a música de cariz tradicionalista de Jansch se ajeitar aos padrões contemporâneos, sem resignar a esse soletrado melódico herdado de eras e trovadores perdidos no tempo. Dos anais da folk britânica, The Black Swan acolhe cinco composições, depoimentos inequívocos do vínculo de Jansch às fontes originais e atestado de continuidade para os fãs de afectos mais antigos. A par dessas cantigas imemoriais, arranjadas com eloquência, há uma meia dúzia de canções originais, com o cunho clássico do autor, os inconfundíveis rendilhados da guitarra - executados com a erudição de um veterano - e o majestoso equilibrío na mescla de ambientes diferentes, do meditativo tema-título ao aparato quase gospel de "Watch the Stars", do blues bem americano de "Texas Cowboy Blues" à canção de protesto em "Bring Your Religion".

Ícone da ciência folk e muitas vezes considerado o reflexo simétrico de Bob Dylan no outro lado do ocean - analogia não totalmente despropositada dada a preponderância de cada um no curso da folk atlântica desde os anos sessenta e a sua influência em músicos de gerações posteriores - impunha-se a Bert Jansch que, em curiosa sintonia temporal com a edição do disco de Dylan neste ano, não perdesse o renascimento recente da folk. O novo tomo é, por isso, a declaração de vitalidade segura que se esperava de alguém como Jansch, um militante de causas antigas, aqui misturadas com as substâncias da contemporaneidade da esfera folk de hoje. The Black Swan pode não ter o impacto e a sublevação de outros momentos do percurso de Jansch, mormente os mais antigos, mas louva o regresso de um dos grandes guitarristas do nosso (e de qualquer) tempo e a retoma do protagonismo que, mesmo na sombra de Dylan, o mundo folk sempre lhe deveu.

domingo, 22 de outubro de 2006

Sei Miguel - The Tone Gardens

Apreciação final: 8/10
Edição: Creative Sources, Setembro 2006
Género: Jazz Vanguardista
Sítio Oficial: http://rt2.planetaclix.pt/seimiguel








Sei Miguel é um cidadão da vanguarda do jazz. Artífice de singular competência com o trompete, mestre na extravagante investigação dos limites do espectro tonal, Sei Miguel tornou-se uma das mais expressivas entidades da moderna música lusa. O culto do risco e das ciências fragmentárias do som, a proporção entre a omissão e o discurso mínimo, a álgebra binária e a sugestão plural do trompete, são alguns dos conceitos emblemáticos dos itinerários errantes do trompetista português. O novel opus, The Tone Gardens, espia os mesmíssimos silogismos, aqui inscritos em três peças conceptuais, amostras férteis de incertos jardins de tensões movediças. A dedicação a esses sons de contingência, como se fossem o senso guia da expressão tonal do disco, é matéria não estranha a Sei Miguel e seus pares. O silêncio não é inimigo, antes é acatado como fragmento importante dos exercícios de improviso grupal. Ao trompete de bolso de Miguel, substância liderante de cada episódio, fazem contraponto o trombone alto - filamento indispensável ao ânimo coloquial do disco - de Fala Mariam, as partículas percussoras de César Burago e a electrónica avulsa de Rafael Toral, interposições úteis ao embalo incerto das composições. Estes músicos são comparsas de longa data de Sei Miguel, conhecem-lhe os truques e praxes e isso é perceptível nas três suites de The Tone Gardens, pela harmonia e intimidade na arrumação dos sons, pela convergências nas construções e pela coerência.

Como em qualquer produto de Sei Miguel, a música de The Tone Gardens não é gorda nem se enche de cores desnecessárias. O recheio é de uma sobriedade superlativa, quase espartano, mesmo que se perceba, nas orações despojadas de cada jardim, um cuidado acrescido na produção, por comparação com outros títulos de Sei Miguel. A delicadeza das peças, agora com arestas limadas, não lhes perturba a precisão e o sentido estético, a confluência de energias e a estruturação complexa. Ainda assim, The Tone Gardens não é jazz clássico e, por isso, pode não ser tão eficaz a convencer tímpanos menos preparados para o vanguardismo. De qualquer jeito, Sei Miguel é nome maiúsculo da música lusa e The Tone Gardens um documento supremo do novo jazz, desta e doutras eras. Na sua época, o mítico Miles Davis, cuja magna silhueta é plano referencial de Sei Miguel (e de qualquer trompetista que se preze), disse que o músico genuíno não teme o erro porque ele não existe. The Tone Gardens, corroborando esse ensinamento do mestre, não teme os riscos da incursão em órbitas futuristas e da integração de elementos instrumentais incomuns. E do erro, nem vestígio...

sexta-feira, 20 de outubro de 2006

Chad VanGaalen - Skelliconnection

Apreciação final: 6/10
Edição: SubPop/Musicactiva, Setembro 2006
Género: Indie Pop-Rock
Sítio Oficial: www.flemisheye.com








A música não é uma prioridade para o canadiano Chad VanGaalen. Operário e amante das artes visuais e da pintura, foi quase fortuita a sua chegada ao orbe das canções. A perseverança de um amigo convenceu-o a dar voz às inúmeras composições instrumentais que, ao longo de cerca de cinco anos, juntou despretensiosamente na intimidade do quarto, sem prever que as voltas do destino as tornariam notícia pública. Daí a ganhar a simpatia da SubPop, bastou a publicação de Infiniheart (2004), pela minúscula Flemish Eye, selo de Calgary (terra natal de VanGaalen). O registo era uma selecção daquelas gravações caseiras e seria re-editado no ano seguinte, no mercado americano, pela SubPop. A sequela está aí, chama-se Skelliconnection e segue símil padrão: as canções aqui combinadas provêm da mesma lavra doméstica do antecessor. Sem que a revelação de Infiniheart tenha sido um feito magno para o mundo indie, embora mostrando um compositor de muito razoável esmero melódico e com uma tendência curiosa para a divagação instrumental, faz-se questão sobre a oportunidade de tão expedito zelo (da SubPop) em repetir a sondagem às gravações casuais de VanGaalen. Por certo, o julgamento de que, por entre dezenas de peças, alguma coisa haveria de valer uma segunda edição, terá conduzido a Sub Pop a um lançamento que, não sendo despiciendo, pouco acrescenta a Infiniheart. Não quer isto dizer que VanGaalen seja um músico estéril, mas, em boa verdade, ainda que a sua música denote um senso estético assinalável, em torno de uma ordem de essências pop, nada cresce além da competente mediania. O que até nem é inesperado de um músico de ocasião, como o próprio não raras vezes manifestou.

Na comparação com Infiniheart, quiçá se deva denunciar o ajuste de uma toada menos uníssona, numa relação de trechos que ganha em atalhar por outros princípios harmónicos, mormente na afinidade (não percebida no antecessor) com a ciência rock e/ou com instrumentalizações menos triviais. Assim se entendem mais pacificamente o desvio de guitarras acres de "Flower Gardens" ou o mimo electrónico de "Red Hot Drops", instante mais feliz do disco. É certo que nem sempre a arte eremita de VanGaalen se aguenta no maneio de tais artefactos, em prejuízo da congruência harmónica do álbum, mas há em Skelliconnection vestígios de um artesão que, ao jeito de um Beck vadio, tem faculdades para inventar vidas para o som. Assim ele largue o lápis de carvão, se torne músico a tempo inteiro e empregue tempo a sublimá-las.

quinta-feira, 19 de outubro de 2006

Sunn O))) & Boris - Altar

Apreciação final: 8/10
Edição: Southern Lord, Outubro 2006
Género: Drone Metal/Doom/Pós-Rock
Sítio Oficial: www.southernlord.com








Os americanos Sunn O))) fizeram do drone monocórdico e de baixa frequência um proveito gregário, estendendo os seus tardos compassos a públicos mais latos e provando, com sabedoria religiosa (de culto negro, entenda-se), que a música lenta é também degustável. E que, acima disso, o metal não é refém de galopes rápidos. Afinal, um acorde áspero repetido vezes sem conta, na cadência demorada dos passos de um lúgubre gigante, pode ter usos além do mero esqueleto criativo e, nesse minimal sacerdócio, os Sunn O))) são uma das mais aptas conjecturas de sombras e ambientes espectrais. As cirurgias do par americano não são meigas, a distorção amplificada é subsídio certo, a palavra é silenciada e cede lugar a colossais missas negras, de matérias sinistras e inquietantes. É rigorosamente nesses timbres fantasmáticos que se acham porções de identidade com os argumentos dos nipónicos Boris, mormente com as primeiras obras, mais próximas dos compêndios drone. Só que, na inversa dos Sunn O))), os Boris não fecham as suas frequências aí, antes disputam substâncias de outras escolas rock, ora abeirando-se do stoner maciço ora dos padrões punk, mas com orifícios experimentalistas o suficiente para evasões oportunas com o nervo do psicadelismo ou a prudência minimalista. Com ruído, muito ruído. Inscrever o nome Boris num catálogo musical não é coisa simples, tão monolítica e destra é a mescla de géneros, normalmente apurados num delírio colectivo, frenesim típico do desassossegado colectivo japonês. Bipolaridade maníaco-depressiva é a patologia deles, diagnóstico comprovado pelo confronto entre o ruidoso Vein, lunático lançamento para 2006 e o seu antecessor, Pink (2005).

Feito o obséquio introdutório, dêmos o ouvido à meia dúzia de peças de Altar, título que regista a primeira cooperação em estúdio dos dois projectos. "Etna", faixa de abertura e o mais tradicional dos trechos, é uma massa de estratos drone, componente idiossincrático dos Sunn O))) a que, paulatinamente, se junta uma bateria alucinada, que ao invés de parecer uma intrusão ao protocolo, acrescenta a dose certa de improvisação. Da surpresa, depois completada com outras guitarras em rapina do espaço remanescente, sobram razões para ponderar o acerto de um futuro com bateria nos Sunn O))). Contas de outro rosário. Segue-se a curta hipnose de "N. L. T.", labirinto sonoro feito de dissonâncias e agudos, de feedbacks e reverberações gravitantes, ao jeito de uma quadrilha de corvos fantasma à cata do assalto aos últimos fragmentos de silêncio. Depois da quietude vencer os corvos, o acontecimento majestoso de Altar: "The Sinking Belle (Blue Sheep)". Jesse Sykes, voz que antes se ouvira apenas no romantismo country, é o sublime canto de anjo negro de uma imprevista composição pós-rock. Belíssimas sinergias instrumentais entre ecos de guitarra (sem o peso drone) e esparsas gotas de piano formam um corpo musical extático e que cuida de tentar a catarse na evocação da placidez, autenticando uma bem conseguida evolução dos músicos para um registo distante do usual. Prova de talento. Como no feitiço de "Akuma No Kuma". Cheia de pingentes e cosméticos experimentais, a composição recreia-se num ápice de suspense, volvendo-o repetidamente do avesso, devolvendo-o à forma original depois de lhe somar estímulos sensoriais e fantasias de bateria. O ilustre Joe Preston (Melvins, Earth, High on Fire, Thrones) é a voz robotizada. A quinta peça, "Fried Eagle Mind", é uma oração de caverna, de humidade fria e arrepiante, de sustos e avantesmas errantes. Resta "Blood Swamp, segmento terminal do disco, coda em crescendo rumo a um remoto apocalipse drone, com a guitarra cicerone (e indecifrável) do saudoso Kim Thayil (ex-Soundgarden) a pontuar o código de negritude Sunn O))), dando-lhe ângulos de um idioma agudo.

Não obstante a prodigiosa natureza da colaboração - impulso que há-de obrigar os adeptos da etiquetagem a uma redefinição do género drone - há em Altar um ou outro rasgo necessitado de uma detonação mais forte. Minudência essa que, todavia, não impede que o disco, menos recomendado a tímpanos convencionais, se torne uma escuta imprescindível e um dos auges criativos do ano musical.

terça-feira, 17 de outubro de 2006

Bonnie "Prince" Billy - The Letting Go

Apreciação final: 8/10
Edição: Drag City/Domino, Setembro 2006
Género: Indie Folk/Lo-Fi
Sítio Oficial: www.bonnieprincebilly.com








Não é que se deva esperar de Will Oldham qualquer espécie de rebuliço, esse não é o padrão do autor, mas os primeiros acordes de The Letting Go são prenúncio de um disco de aconchegante intimismo, com violinos em suspensão romântica, a dar o mote (e o timbre) para o quinto registo de Oldham como Bonnie "Prince" Billy. Com pezinhos de lã, ele fez-se ícone de uma folk tradicionalista, como estampa de uma América pessimista e vigilante das calendas antigas, de semblante opaco e taciturno, sorrisos ocos de esguelha e olhares sumidos nas vastas campinas. Assim errante e incorpórea é a música de Oldham, com estilhaços apocalípticos, necessariamente estreita na ousadia instrumental (as guitarras tímidas são o coração e a alma), como convém ao fraseado confessional das harmonias do disco. Nesse recato, The Letting Go não destoa da remanescente obra de Oldham. Notícia original é o apuro dos arranjos, destacando-se a entrada de orquestrações apetrechadas com outras cordas (os violinos e violoncelos arranjados por Nico Muhly), o adiantamento da percussão a escalas maiores (pela mão do percussionista dos Dirty Three, Jim White) e, last but not least, o canto feiticeiro de Dawn McCarthy, belíssima tiple dos Faun Fables, adição mais do que oportuna às fábulas tântricas de Oldham. As substâncias são arrumadas com elegância ímpar graças à produção do islandês Valgeir Sigurosson, engenheiro predilecto dos Múm e cúmplice ocasional de Björk, que, sem beliscar o temperamento americano das composições, lhes soma bálsamos únicos, ora nos enxertos instrumentais que amiudadamente adornam o esqueleto das composições, ora na conformidade que vincula os diversos elementos das peças. Além do intuitivo ganho dimensional da música, a inscrição vocal de Oldham é mais límpida do que antes, lucro da bipolarização com McCarthy, dando um pulso novo ao fatalismo claustrofóbico das histórias de Oldham.

The Letting Go é da melhor filigrana Oldham, disso não sobram dúvidas. A fragilidade das composições é a costumeira e, mesmo merecendo um revestimento orquestral mais ambicioso (até há reflexos glaciares à Sigur Rós em "God's Small Song"), as estruturas harmónicas retêm o disfarce da simplicidade quase acidental e a profundidade contemplativa do cancioneiro Oldham. Tonalmente diverso, The Letting Go é, seguidamente às silhuetas deprimidas do notável I See A Darkness (1999), o melhor fascículo de Oldham e da ciência trémula de um surrealismo lírico que, como poucos, encontra na estação outonal o seu porto seguro.

domingo, 15 de outubro de 2006

Dani Siciliano - Slappers

Apreciação final: 7/10
Edição: !K7, Setembro 2006
Género: Electrónica/Pop Alternativa
Sítio Oficial: http://www.dani-siciliano.com








Já não é inconfidência para ninguém dizer-se que Dani Siciliano tem sido a substância vocal de Matthew Herbert. Além do vínculo conjugal que os une, a associação criativa que nos deu Around the House (1998) ou Bodily Functions (2001) foi o testemunho acabado de uma certa interdependência artística cujos proventos assumiam um duplo juízo. É incontestável o mérito da parceria na multiplicação da simbiose de processos, permitindo a combinação certa entre uma electrónica iconoclasta (a de Herbert), de timbre minimalista mas cheia de soberba na resistência aos cânones, e o ímpeto vocal e sensualidade de Siciliano, suplemento infalível para somar traços de laconismo à orbe onírica de Herbert. Ao flanco frio e maquinal de Herbert, mestre nos malabarismos técnicos com as medidas temporãs de um protótipo funk mínimo e futurista, se juntava o revestimento orgânico versátil e contemporâneo da voz que, sem restringir os seus ângulos vanguardistas, puxava a música para uma geometria de excesso contido. Pontos de equilíbrio, assim se diriam as intersecções conceptuais de Herbert e Siciliano. Ao mesmo tempo, de tão ajustada combinação se presumem ecos sobre a individualidade artística das partes, ilação particularmente evidente no percurso individual de Siciliano; se Herbert não se impediu de lançar discos sem os préstimos da mulher, sublimando a condição exploratória do seu som, Siciliano chegava, na antecâmara do segundo exercício do trajecto em nome próprio, a uma encruzilhada determinante. Em Likes... (2004), registo de debute, a candeia de Herbert alumiava ainda alguns dos trechos e sentia-se, mesmo que nesse remoto estatuto de co-autoria, que a insígnia do marido estava presente. A bem da emancipação artística de Siciliano, ela própria possuidora de recursos nobres o bastante para lhe valerem independência de per si, talvez se impusesse uma afirmação de personalidade que Slappers não dá.

É certo que as síncopes de Slappers mostram algumas hábeis supressões da assinatura costumeira de Herbert, distanciando a vibração das faixas da primeira expectativa do ouvinte, mesmo que não fique camuflado o cardápio de maquinações Herbert (ele é co-autor de todas as peças do alinhamento). Nesse capítulo, de resto, Slappers é de um requinte a toda a prova, vem munido de talhas das várias propensões electrónicas e serve-as na dosagem perfeita. Com a ajuda de um amigo digital cheio de vantagens, o sampler. Slappers talvez não suplante os alvitres da estreia, tampouco se isenta da sombra de Scale (exercício sublime de Herbert previamente lançado neste ano) e, a despeito de alguns instantes plenos de inspiração, mostra-se experimental demais para chegar à voga pop e menos coeso para se fazer obra-prima técnica. Ainda assim, mesmo que não seja possível escrever sobre um disco de Siciliano sem lançar mão do nome de Herbert, o álbum traz um jogo de manobras suficientemente atraentes para valer uma boa escuta e ser um produto interessante.

sexta-feira, 13 de outubro de 2006

Dr. Octagon - The Return of Dr. Octagon

Apreciação final: 6/10
Edição: OCD International, Junho 2006
Género: Underground Rap/Hip Hop Alternativo
Sítio Oficial: www.thereturnofdroctagon.com








Kool Keith é, independentemente da afeição que se tribute ao seu trabalho, um dos nomes seminais do rap do Bronx. Ele foi o guia dos Ultramagnetic MC's, grupo nova-iorquino ainda hoje venerado como um dos ensembles responsáveis pela revitalização do género e a quem se atribui, entre outras felizes circunstâncias, o chamamento à esfera do underground rap de recursos pouco em voga na segunda metade da década de oitenta e anos noventa, em especial os progressos na incursão pelas instrumentalizações reais, em detrimento dos padrões sintéticos dominantes. O tope dessa controversa causa foi The Four Horsemen, produto nascido em 1993 e último registo de estúdio do quarteto, pouco apoiado pela crítica. Para trás, o lendário debute dos Ultramagnetic MC's (Critical Breakdown, 1988), tomo que serviu de cartão de visita à personalidade pitoresca de um ícone da cultura de gueto, Kool Keith, e de um prometedor agrupamento que encerraria actividades em 1994. De entre inúmeras assinaturas (Dr. Dooom, Rhythm X., Mr. Gerbik), side-projects e trabalhos em comum com terceiros, seria sob o alter-ego Dr. Octagon que Kool Keith ressuscitaria para os palcos mediáticos, colhendo, com Dr. Octagonecologyst (1996), o espanto e o respeito da crítica. Com essa edição, Keith matou dois coelhos com uma cajadada: reorientou as probabilidades do underground rap crescer para o amparo de uma base sonora electrónica pautada pelo vanguardismo, germinando uma corrente rap alternativa, e, para esse efeito, recrutou um valor emergente na ocasião, Dan "The Automator" Nakamura, violinista de formação e o inventor dos contraste espaciais e futurismo sonoro do disco. Além do pomposo redimensionamento das escalas rap, a colecção de composições do par Keith/Nakamura estava armada num binómio ímpar: o humor de tangência pornográfica e escatológica dos escritos de Keith encontrava ajuste infalível na produção fecunda de ideias e na vocação para a surpresa de Nakamura. Conceptual e impressivo, o título firmou trilhos novos, esticando o imaginário do rap a outras orbes e protagonistas, especialmente a figura bizarra de Dr. Octagon, protagonista fulcral do enredo, um alegado ginecologista de origem duvidosa (alienígena?) envolvido em inúmeras chicanas, mormente na demanda dos obséquios sexuais das suas pacientes.

Preposta ao lançamento de The Return of Dr. Octagon uma série de oito tiras de desenhos, uma por cada semana das oito anteriores à edição do disco, adiantaram o enredo. Dez anos depois da alegada morte de Dr. Octagon, as suas réplicas clonadas sem autorização, e comandadas por um gorila gigante e lunático, pululam pela galáxia com o propósito de exterminar os astros. Na Terra, acham uma civilização em auto-destruição, consequência das horas sucessivas de exposição a má música, a suspirar por um salvador. A despeito da iconografia juvenil, a matriz conceptual de The Return of Dr. Octagon é mais universal, já não se prende com o mero conserto dos desequilíbrios de líbido das fêmeas da espécie, antes com a condição da humanidade. Neste retorno do pseudo-ginecologista, o trio germânico One Watt Sun produz e não faz a coisa por menos: importam-se sons de vários vectores, emprestando aos ambientes do disco um fausto sónico contemporâneo e moderno mas que, em razão do intuitivo cotejo com a sublime interferência de Dan Nakamura no disco de há uma década, soa a festival desproporcionado - as mais das vezes por excesso - na maior parte dos trechos. Na lírica, o descrédito alarga-se. A temática gasta moralismos cliché (a inquietação com o ambiente e o conformismo da civilização corrente), o humor é frouxo e a prosa perdeu pedigree. Melhor fora que Dr. Octagon tivesse morrido em 1996. Nem ele teria de enfrentar o símio titânico, nem nós assistiríamos, graças a um sucedâneo menor, ao desabamento de uma das mais esplêndidas marcas do underground.

Posto de escutaTreesAntsAl Green

quarta-feira, 11 de outubro de 2006

The Thermals - The Body The Blood The Machine

Apreciação final: 7/10
Edição: Sub Pop, Agosto 2006
Género: Indie Rock
Sítio Oficial: www.thethermals.com








Embora tentem descolar do tosco rótulo punk a que, de resto, a arquitectura harmónica e a urgência das suas canções os atou com propriedade, os norte-americanos The Thermals avançam, ao terceiro fascículo de um percurso de quatro anos, um enunciado de maturação. A despeito de algumas convulsões internas que culminaram na deserção do baterista (e membro-fundador) Jordan Hudson, facto que deixou Kathy Foster e Hutch Harris orfãos no desdobramento da missão instrumental das gravações de The Body The Blood The Machine, os dotes punk-por-um-triz dos The Thermals foram conservados. Mais do que isso, sem abdicar da ingenuidade estrutural que tão bem se consagra nestas canções, o novo trabalho reproduz uma escrita mais fluente e composições melodicamente mais simpáticas. Dito assim, o obséquio musical de The Body The Blood The Machine brinda-nos com passagens tão expeditas a grudar no tímpano que parecem fabricadas para os auditórios largos do mainstream. Não se entenda semelhante constatação como uma perversão criativa ou qualquer cedência mercantil dos The Thermals. Nada de mais errado. A dezena de composições do álbum não tem sofisma: os argumentos técnicos são os mesmos de sempre e, uma vez diminuída a porção de impurezas, foi depurado o processo melódico, sem cedências a clichés.

Os textos de The Body The Blood The Machine, ainda que errantes, politizam o exorcismo de uma América dominada pela tensão militarista e pelo paradoxo dos expedientes bélicos. Hutch Harry é um entre muitos. Políticas à parte, o pecadilho técnico do disco é o resvalo formulista que enrola as composições num invólucro comum e do qual, em última análise, se livram "An Ear For Baby", "Test Pattern" e "St. Rosa and the Swallows", objectos superlativos (numa lógica poppy) de um rol de trechos suficientes. Contestatário e impetuoso, The Body The Blood The Machine é um manifesto próprio de uma banda de garagem ciente dos palatos punk e do feitio que melhor convém ao seu acatamento. Só falta um bocadinho de química própria.

segunda-feira, 9 de outubro de 2006

Junior Boys - So This Is Goodbye

Apreciação final: 8/10
Edição: Domino, Setembro 2006
Género: Electrónica Alternativa/Synth-Pop
Sítio Oficial: www.juniorboys.net








Denunciar uma propensão declaradamente 80's e não descambar para a cópia imbecil é o respeitável mérito dos Junior Boys. De uma doutrina com tal roteiro temporal espera-se primazia dos sons sintetizados e das beats processadas, de resto a seiva dominante do seminal trabalho de estreia (Last Exit), lançado há um par de anos. Embora esse pendor se mantenha no segundo tomo, o som dos Junior Boys ressente-se da deserção de Johnny Dark, obreiro das destras manobras percussivas do disco de estreia, aqui substituído pelo produtor Matt Didemus. Com outro sócio para Jeremy Greenspan, a urbanidade do som dos Junior Boys acerca-se mais da credulidade pop, propiciando outro enfoque vocal - púlpito da emancipação ultimada de Greenspan - e métodos mais estruturados. A novel identidade da dupla dissipa dúvidas: a adjacência à pop modificou regulamentos. Dissipada a veemência dançante que Dark tão bem imprimiu no antecessor, So This Is Goodbye refreia a pujança rítmica, baixa a luz e encontra aconchego na meditação - ciência certa para o abaixamento de ritmos - e no garbo da redução da electrónica às cláusulas de mínima excentricidade. Dir-se-ia que, do polimento das fracturas beat de Last Exist, nasceu o embrião de um romantismo pop clássico (nada que os Orchestral Manoeuvres in the Dark não tenham feito antes), de melancolia redobrada que, todavia, não deixa dormir o músculo e, se não prestar bom ofício nas pistas de dança, há-de musicar umas piruetas na sala de estar. Ou danças incertas pós-ressaca. O nutrimento vem de arpejos harmónicos sublimes do sintetizador, a substância vital de So This Is Goodbye, o mecanismo quente de feitura do magnetismo imediato do disco.

Mais conciso e focado do que o predecessor, So This Is Goodbye é um disco de canções. Synth-pop com noção de espaço que, sem ter a volubilidade de cadência, o experimentalismo ou a diversidade de arranjos de Last Exist, por isso se tornando mais unânime e estável, busca o talismã de um discurso mais imediato. Aí, como poucas edições do corrente ano, So This Is Goodbye é um prémio para os ouvidos, com eufonias palpitante e fecundas, de arestas limadas e a fórmula de engenharia de som certa. Mesmo quando aproveitam, em tom sonâmbulo, "When No One Cares", trecho celebrizado por Sinatra. Só faltou um ou outro acidente de irreverência para desencaminhar o álbum das rotas pré-calculadas e da precisão maquinal que o tornam excessivamente contido. Contudo, censurar operários da electrónica deste quilate por criarem um álbum com virtudes muito certinhas, deve ser considerado, face à casta de So This Is Goodbye, um exercício de mera admoestação de algibeira. Pero que las hay, hay...

domingo, 8 de outubro de 2006

Rafael Toral - Space

Apreciação final: 7/10
Edição: Staubgold/Flur, Setembro 2006
Género: Electrónica Experimental/Vanguardista
Sítio Oficial: www.rafaeltoral.net








Embora ainda seja uma incógnita para a generalidade do público melómano luso, Rafael Toral é um dos expoentes da arte experimental portuguesa. Dotado de um espírito desassombrado e de um interesse vigilante pelas múltiplas dimensões virgens da música, Toral consagrou as suas jornadas criativas à distensão dos limites do improviso, também à sondagem de novos valores intrínsecos a cada partícula sonora, seja ela ingénita de um instrumento, seja obra de manigâncias digitais ou ainda, recurso peculiarmente incluído na música de Toral, seja inferência de especulações com a estática e o feedback. Especulativo é certamente um adjectivo próprio da música de Toral, como bem se instrui neste Space, primeiro tomo de um ciclo novo do músico dedicado à pesquisa das contingências do som. A tal ofício é incumbido, no papel de agente primaz que fora da guitarra noutros trabalhos, o discurso de um amplificador portátil alterado, cerne gravitante do disco, cuja posição relativa face ao microfone produz uma gama de sons inconstantes, vagabundos do vácuo que talham o silêncio à medida dos gestos periciais de Toral. Não se espera de Toral a lealdade a máximas teóricas; ele é fundamentalmente um artesão do empírico à procura do futuro. Sente-se isso na gestão prudente dos cromas de Space, ora poluídos de irradiações energéticas vibrantes e de feedback processado, ora deixados ao acaso dos contrastes bipolares som/silêncio, sempre vanguardistas e em ambivalência oportuna para o reforço da compleição hipnótica do álbum. O jazz é, como não poderia deixar de ser, uma alusão imponderável, sem formalismos estéticos, poligonal como o de Alvin Lucier ou David Toop, lapidado como o de Fennesz ou Fullerton Whitman, enigmático e fértil como o do austríaco Pita ou dos Jazzkammer. O futuro do jazz diz-se nestes códigos electrónicos.

Space não é tomo para ouvidos preguiçosos ou mentes amestradas. Sem música de cânone, tampouco música em sentido estrito, o novo exercício de Toral transcende qualquer definição de álbum. Não há aqui canções ou estruturas tipificadas, o limite é o espaço sideral. Space é uma viragem cósmica de Toral, depois de uma década e meia a fundir guitarras e electrónica. Agora o sci-fi é a luminária dominante da anfibologia harmónica do disco, sem remates vincados. Esse instinto tantalizador, a par da parcimónia estética do disco, marcam uma consciência diferente de Toral e, em última análise, uma intimidade acrescida entre som e espaço, homem e circunstância, como escreveu Ortega y Gasset. Com Space, Toral somou outra refracção inexorável à máxima do filósofo espanhol: tal como o Homem, a música, ou o som (por extensão conveniente), também se faz de circunstância.

Posto de escutaPart IPart IIPart III

sexta-feira, 6 de outubro de 2006

Mastodon - Blood Mountain

Apreciação final: 8/10
Edição: Reprise/WEA, Setembro 2006
Género: Metal Alternativo/Progressivo/Power Metal
Sítio Oficial: www.mastodonrocks.com








De um álbum com um título tão imponente e sanguinolento não pode esperar-se música para um conto de fadas. Se a tal certeza juntarmos a circunstância de ter sido escrito por um dos mais revolvedores agrupamentos do metal americano, é seguro que a audição de Blood Mountain se torne uma experiência nada estéril. Aqueles que, por esta altura, ainda não tiveram um primeiro contacto com o som dos Mastodon, ícone essencial do cosmos metaleiro actual, devem antecipar um débito impressionante de descargas eléctricas sucessivas, edifícios harmónicos que se desmoronam a si mesmos desfigurando a estrutura convencional de canção, toneladas de distorção em volumes tonitruantes e metamorfoses vocais inverosímeis (o duo de vocalistas é munição poderosa). Os Mastodon são um auto de demolição de clichés e nessa demanda derribadora não há como eles, é ímpar a autoridade e a potência de um som pejado de insinuações de três décadas de hard rock mas que, em inequívoco testemunho de originalidade, não reproduz fielmente nenhum género particular do metal, antes acrescenta uma entidade nova (e superior) à família. A assinatura Mastodon é única e impôs-se paulatinamente trazendo-os, ao terceiro disco, a um patamar de excelência que poucas bandas metal atingem. Blood Mountain herdou dos antecessores, especialmente do portentoso Leviathan (2004), a dinâmica propulsiva, o combustível de convulsões e as variações melódicas inesperadas, sublimando a dinâmica do conjunto em favor de um discurso tecnicamente irrepreensível e de complexidade acrescida. A produção é novamente de Matt Bayles e também expandiu medidas para acondicionar um som mais denso, somando-lhe substratos que, quase passando inaudíveis, são utilíssimos, mormente na ductilidade tonal da voz (geniais as suspensões quase sonâmbulas da voz em alguns refrões) e nas transições melódicas dos trechos.

Se o clássico Moby Dick havia servido de inspiração a Leviathan, desta vez os Mastodon investiram em novo álbum conceptual, mas reintroduzindo o simbolismo do fantástico do metal clássico. Aqui, a fábula é em torno de um herói que deve ascender a uma montanha viva para resgatar uma caveira de cristal. Para tal, tem que sobreviver a uma expedição num universo de criaturas mitológicas, gigantes dormentes, árvores semi-humanas, ciclopes, florestas mágicas, deusas do gelo e canibais. Supostamente (ou não) a metaforizar sobre o percurso dos Mastodon até ao compromisso com uma major, a alegoria encontra um aliado perfeito na cadência progressiva do som de Blood Mountain, sinónimo de crescimento de uma banda que, depois de Leviathan, se julgava ter tocado o zénite. Mas, vistas (e ouvidas) bem as coisas, para artesãos da igualha dos Mastodon (o efeito colateral dos convidados Josh Homme (QOTSA), Cedric Zavala (The Mars Volta) e Scott Kelly (Neurosis) não é despiciendo), a transcendência é apenas uma circunstância e até o céu não parece um limite que baste para esta máquina inquietante e arrasadora.

quarta-feira, 4 de outubro de 2006

Ratatat - Classics

Apreciação final: 6/10
Edição: XL, Agosto 2006
Género: Electrónica/Rock Lo-Fi Instrumental
Sítio Oficial: www.ratatatmusic.com








Chegar ao segundo álbum e ter o atrevimento (petulância?) de o apelidar de Classics não é para todos. A tal se arrojou a dupla norte-americana Ratatat, campo criativo dividido por Evan Mast, programador e multi-instrumentalista, e Mike Stroud, guitarrista. O argumento destes clássicos segue o rasto de Ratatat, debute editado há um par de anos, uma estável emboscada electrónica ao rock isento de estrutura. Em boa verdade, o tecido harmónico de Classics circunscreve-se a ambientes bem próximos da órbita do pós-rock, ainda que com compassos mais expansivos. A essa amplitude não é estranha a autoridade da porção digital do som a matizar os trechos, enchendo o corpo sónico do disco de ornatos vários, nem sempre com a mesma propriedade, é certo, mas servindo de garante às desmultiplicações das composições. Nesse sentido, Classics é um álbum de ascendente electrónico e onde as alusões acústicas (essencialmente guitarras) se mesclam sobriamente com o tom dominante, acrescentando outros pretextos melódicos e insinuando o galanteio com um jogo de contrastes que, se fora tacteado com mais profundidade, facultaria uma aritmética mais espessa ao disco. E isso sem o despir do fôlego optimista. Ao mesmo tempo, a largueza conceptual de Classics consome-lhe subitamente o oxigénio em diversos ápices, arriscando o desabono de alguns recursos estilísticos sublimes em favor do pontual (e incómodo) amontoamento de conceitos, e consequente desordem auditiva, que enferma algumas faixas do alinhamento. Dir-se-ia que Classics tem lances incongruentes, mormente quando exorbita as competências da guitarra sobre a intimidade digital das peças, algo particularmente notório no single "Wildcat" que, embora imponha com destreza o contraste digital/acústico, perde o norte a partir do meio da faixa. Tal desarranjo, por outro lado, não faz eco em "Swisha", um dos zénites do disco, onde a guitarra não ofusca o minimalismo da electrónica e, mais do que isso, as variações rítmicas (ou desconstruções) desviam a peça da vulgaridade.

Classics é um daqueles tomos que reclamam várias audições para que se descortine a miríade de detalhes electrónicos que abrangem. Aí, depois de desmontada a camada superficial de sons, chega-se a um conclusão de duplo sentido: é inegável que a essência do álbum é armada num minúsculo circo da melhor electrónica que se ouviu este ano mas falta-lhe redimensionar o vínculo entre matérias acústicas e sintéticas para trazer mais pragmatismo à excelente colecção de ideias de Mast e Stroud. Classics é, por conseguinte, um produto ambivalente, no sentido de nos trazer recompensas auditivas cheias de encantos ("Lex", "Montanita" e "Swisha") e outros trechos que nos deixam água na boca por não confinarem com a eminência que se adivinhava, à primeira escuta, nas suas entranhas.

Posto de escutaMontanitaLexSwisha

terça-feira, 3 de outubro de 2006

O último filme que vi - A Senhora da Água

O solitário e bonacheirão Cleveland Heep (Paul Giamatti), supervisor do pacato complexo residencial The Cove, avista uma desconhecida na piscina do condomínio. Story (Bryce Dallas Howard), a bela estranha, é afinal uma narf perseguida por medonhas entidades, uma ninfa desencaminhada do mundo de um conto para crianças, em demanda do retorno a casa. Este é o enredo central da mais fresca proposta de suspense de M. Night Shyamalan, o desembaraçado e talentoso cineasta que nos deu O Sexto Sentido (1999), reconhecidamente considerada a sua obra maior. A Senhora da Água, quinto trabalho do realizador indiano, baseado numa história do próprio Shyamalan originalmente destinada a mera edição livreira, não é mais do que uma fábula infantil redimensionada ao estatuto de thriller clássico, condimentado com uma atmosfera próxima do cinema fantástico.

Para servir o interesse a franqueza na construção dos diversos caracteres do filme, Shyamalan justapõe o universo real e a fantasia, arquitectando um mosaico de personalidades pacatas (cada uma com traços idiossincráticos propícios ao remate do enredo, como é regra em Shyamalan), as certezas da sua vivência efectiva, as respectivas aspirações e frustrações, a conformação com as vicissitudes da ordem universal e a esfera prometida do sonho. E de ambições contingentes se fazem as pitorecas personagens do filme, como se todos aguardassem uma marca do destino que lhes servisse de rumo. Essa solenidade de oráculo é projectada gradualmente em Story, a fada da água que, com a candura e fragilidade do seu pedido de ajuda, se tornará a salvadora das gentes daquele bloco de apartamentos. Da briosa união de esforços para remir Story, há-de abrolhar a recompensa de cada um deles, como se aquele tranquilo complexo habitacional subitamente se tornasse o centro do mundo, ou um retrato de fragmentos dele. Talvez, por isso, se possa dizer que esta fita de Shyamalan consegue o feito improvável de, sendo o mais fantasioso dos seus exercícios, nos remeter para uma mensagem plena de mundanidade. Nisso, a aposta do realizador é sustentada, a despeito da necessária inverosimilhança dos factos, como teria de convir a uma história para crianças.

Tecnicamente, A Senhora da Água deixa imensas pontas soltas, mormente na ligeireza na definição das personagens e na pouca fluidez narrativa, fonte assídua de dúvidas à medida que os sofismas (ou reflexos menos ponderados) do enredo se tentam explicar a si mesmos, fechando repetidamente o espaço ao suspense e frustrando o ensaio de parodiar as convenções hollywoodianas para produtos deste género. O desempenho de Giamatti, emblema magno da arte de representação por estes dias, livra o filme da derrocada mas não é avanço suficiente para contornar a convicção de que se trata do filme menos conseguido de Shyamalan. Aparentemente, os decisores da Disney que rejeitaram esta película, conduzindo o cineasta a um compromisso com a Warner, acertaram na prognose de que este seria um recurso dispensável da sétima arte. Agora que chegou até nós, A Senhora da Água ratifica claramente os trambolhões criativos e o desgoverno do ego inflado de um escritor-realizador-produtor-actor que, há um punhado de anos, prometia lançar novas aragens na atmosfera de Hollywood.

Apreciação no espaço de cinema do apARTES. Clique aqui ou no link na margem esquerda do blog.

segunda-feira, 2 de outubro de 2006

Yo La Tengo - I Am Not Affraid of You and I Will Beat Your Ass

Apreciação final: 7/10
Edição: Matador, Setembro 2006
Género: Indie Pop-Rock
Sítio Oficial: www.yolatengo.com








Tentar resumir aquilo que os norte-americanos Yo La Tengo simbolizam para o rock alternativo americano obriga-nos a olhar uma vintena de anos para trás e a julgar cerca de uma dúzia de longa-durações. Eclectismo é o termo consentâneo para caracterizar um percurso de deliciosas discrepâncias que, com idêntico esplendor, deram à estampa álbuns bem construídos, ora com o frémito do noise rock estridente, ora com a placidez da pop açucarada. A personalidade musical dos Yo La Tengo faz-se de indeterminação estética, sinónimo maior de talento elástico, e isso é particularmente sensível em I Am Not Affraid of You and I Will Beat Your Ass. Com efeito, na primeira gravação de estúdio em três anos, Kaplan e seus pares revalidam essa propensão ecléctica numa dezena e meia de canções que compõem binómios de contraste: preto e branco, urgência e apatia, melodia e feedback, doce e acre. O cardápio completo dos sabores Yo La Tengo. Todavia, a diversidade rítmica do tomo não estorva a sua integridade e coesão, antes a reforça, por força da capacidade deste trio de músicos em acomodar conceitos dissemelhantes a um fio de prumo comum. É precisamente por acção desse diapasão virtual e abstracto que os Yo La Tengo não têm um disco mau e, pela mesma causa, também não têm uma gravação transcendente. Talvez por isso, decorridos vinte anos de carreira, I Am Not Afraid of You and I Will Beat Your Ass soe a compilação...mas com canções novas. Cristalização ou consistência, chame-se-lhe o que mais convier, a verdade é que revoluções sónicas não subordinam os Yo La Tengo, o som deles é esta matéria avessa a mudanças e nenhuma outra, não há ensejos reformadores. Mas deve pedir-se tal coisa a um dos mais afoitos assinantes do eclectismo da música americana?

O carisma abstracto deste trio de New Jersey está intacto em I Am Not Afraid of You and I Will Beat Your Ass. Não é a toa que eles atraem o culto de uma trupe ampla de seguidores, gente saudosa dos Velvet Underground e de fragmentos dos Sonic Youth. E a reverência a essas cátedras continua a ditar normas aos Yo La Tengo, mormente na estruturação das melodias, no detalhismo técnico dos fraseados instrumentais e no capricho orgânico das canções. Pode dizer-se que, depois do algo tedioso Summer Sun (2003), o trio americano retoma a semântica melódica e os contrastes da sua pièce de résistance (I Can Hear The Heart Beating As One (1997)), mas o efeito acaso estranho está esgotado: eles já não são esquisitos, nem soam a notícia imprevista. Mas isso podem ser os contornos do destino, com canções como "Sometimes I Don't Get You", "Mr. Tough" ou "Pass the Hatchet, I Think I'm Goodkind", a dizer-nos que eles são bons.