terça-feira, 29 de julho de 2008

Shearwater - Rook

8/10
Matador
PopStock
2008
www.shearwatermusic.com



Embora as suas fundações estejam, desde 2001, na sombra do colectivo Okkervil River, hoje por hoje um dos ícones mais sonantes da folk alternativa americana, o conceito Shearwater acabou por emancipar-se do mero estatuto do projecto paralelo onde Will Sheff e Jonathan Meiburg depositavam as canções que não cabiam no ideário da banda-mãe. A aparente divergência de opiniões ou prismas estéticos entre os dois músicos (ou o curto espaço de manobra para as composições de Meiburg nos OR) levou à divisão de águas, mormente depois do aclamado Palo Santo (2006): Meiburg desertou e fez dos Shearwater o seu poiso único, Shef chamou a si os Okkervil River. Se já no opus prévio, ainda com Will Sheff nos créditos, Meiburg assumira na íntegra a composição, Rook é o primeiro disco da marca Shearwater sem Sheff e, também por isso, se torna o documento da derradeira exposição e afirmação do conceito. E o disco é fiel ao cancioneiro da banda: estão cá o subtil cuidado no detalhe, a placidez melódica de Meiburg, a orquestralidade dos arranjos e uma finíssima discrição pastoral. A tudo isso, somam-se as certezas da voz carismática de Meiburg, sempre seguríssima e fluente entre a grandiosidade e o recato, o romantismo e a meditação. E Rook é isso mesmo, um genuíno exercício musical de leitura de almas, a olhar para dentro e a purgar gerações infinitas de inquietações colectivas e a repassá-las nos mais redentores ambientes musicais. Se estruturalmente se trata de um documento de folk de cariz acústico, aqui e ali espreitando atrevimentos rock com projecção orquestral, Rook encerra outras dimensões que vão muito além da simples declaração musical. Seja pelos enunciados fantasiosos das letras, pelo cicerone invulgar da voz de Meiburg ou pela linguagem puramente emocional dos instrumentos (ou pelos três em simultâneo), a verdade é que Rook tem o raríssimo condão de fazer o ouvinte "sentir" a música além daquilo que ouve. Nestas canções, intersectam-se, na ímpar forma de um baile de espíritos, a majestade do drama (quase sempre servido em cortante minimalismo acústico), o sonho vacilante, a fria melancolia, a paisagem invisível (e imaginada) e a redenção luminosa. E a mescla é tão humana e credível, tão musicalmente coesa e coerente, que é impossível não se ficar rendido à imponente epopeia de bolso que Meiburg escreveu.

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sábado, 26 de julho de 2008

CSS - Donkey

5/10
Trama
2008
www.csshurts.com



A instantânea entronização do colectivo Cansei de Ser Sexy como projecto mais mediático da moderna música brasileira foi um exercício de confirmação da improbabilidade. Corria o ano de 2003 (e os seguintes) e, atrás de um crescente burburinho, primeiro nas ondas cibernéticas e, depois, no seguimento de actuações nos palcos e festivais mais frequentados do Brasil (e além-fronteiras), paulatinamente se ergueu uma vaga sacralizadora de uma trupe de músicos tecnicamente pouco talentosos e cujas composições encerravam, em tosca simplicidade, um conjunto de sabores incomuns no cenário musical brasileiro. A afirmação da originalidade - se quisermos, de uma transversalidade estética com um único denominador comum: o substrato electrónico - prevalecia sobre a presumivelmente imprescindível valoração da técnica, como se, para ser-se reconhecido no orbe musical, nem fosse necessário ir além da fasquia mínima da execução instrumental. Aliás, seria exactamente essa rudimentar lapidação dos trechos, em último caso, a motivar amores/ódios à volta do sexteto (agora quinteto) paulista e a torná-lo um fenómeno ímpar na música urbana e um dos mais mediáticos descendentes da geração net fora da Europa.

Com a agenda absolutamente atestada nos últimos anos e o inevitável aprimoramento da execução instrumental dos elementos do grupo, é um facto que dificilmente podia esperar-se que Donkey repetisse a incipiência técnica do antecessor. A audição do álbum confirma essa premissa perigosa para os CSS: ao sumir-se a inocência técnica, ficaria hipotecado um quinhão decisivo dos factores de sucesso do primeiro disco. No caso das CSS, o refinamento técnico envolve ironicamente um desinvestimento no ingénuo diletantismo com que fizeram as canções que os trouxeram ao topo da música brasileira. Donkey é notoriamente um produto mais evoluído do ponto de vista instrumental, não restam dúvidas de que regista música feita com uma ciência mais apurada e longe da pubescente ética do primeiro disco. E é aí que muda o prisma de avaliação do trabalho das CSS. Se, antes, gostando ou não, se perdoava a impolidez e um certo atabalhoamento técnico dos trechos, em nome da atitude desconcertante e enérgica de "músicos" inexperientes (mas criativos) em demanda do seu espaço, com a maturação técnica é incontornável redobrar a exigência sobre as canções enquanto produto artístico. Nesse particular, por ter-se dissipado o elemento nuclear de singeleza que interessava na música das CSS, Donkey torna-se um disco redondo, previsível e inconsequente. Perdida a magia da descoberta quase juvenil da música e do rudimentar experimentalismo que escondia as fragilidades da composição, as canções expõem uma confrangedora efemeridade. Sair da puberdade é uma chatice.

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sexta-feira, 25 de julho de 2008

Radioheadphone...?

Com a chegada recente aos escaparates discográficos do álbum Ghostwriter, com chancela da PIAS, os Headphone prometem fazer transbordar o burburinho dos melómanos locais à sua volta para espaços fora das fronteiras do seu país. Recorrentemente conotados como descendentes da ética criativa dos Radiohead, os belgas têm no disco um documento de coesos paralelismos com Thom Yorke e companhia, bem além do mero pastiche e, sobretudo, pautados por prismas maturados e evoluídos do que deve ser uma canção pop independente. "She is Electric" é uma enigmática exploração do minimalismo melódico e vem servido por uma interessantíssima animação, a dar continuidade ao que já haviam sugerido no outro single, a canção-título do álbum. Um projecto a seguir com atenção, sem dúvida...

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Uma canção do diabo...

Juntamente com a crítica ao disco (ver abaixo), deixo-vos o vídeo de promoção de "The Devil's Crayon", magnífica peça do primeiro disco dos ingleses Wild Beasts, onde ficam expostas algumas das virtudes únicas do quarteto e a pertinência da combinação da voz de Tom Fleming com o falseto do vocalista principal, Hayden Thorpe. Uma das grandes canções da colheita de 2008, sem dúvida...

Wild Beasts - Limbo, Panto

8/10
Domino
Edel
2008
www.wild-beasts.co.uk



Não é todos os dias que a descoberta de um disco proporciona a excitação de privar com um produto de originalidade. No caso dos Wild Beasts, quarteto de caloiros-revelação do setentrião inglês, a erupção da surpresa sobrevém em duas formas. A primeira - que por ser "superficial" é uma saliência notória nas primeiras audições - deriva directamente da insistência no dramático falsetto de Hayden Thorpe (excelente voz, sem dúvida!), a fazer lembrar, como num sucedâneo em moldes pop, o trejeito canoro de uma opereta. Atrás dessa admirável sugestão da voz de Thorpe (que será, decerto, um dos factores decisivos para definir afinidades com o disco), desfilam as outras faces da surpresa, as pormenorizadas, faustosas e muito conscientes texturas instrumentais, algures entre a elevação barroca que celebrizou Rufus Wainwright, a ciência dos cânones do moderno psicadelismo (leia-se volubilidade estética entre o tribalismo, os meneios vaudeville, a dança de cabaret, o melodismo jazz ou a arquitectura "clássica" da ópera-rock) e, também, a doçura rústica das gerações hodiernas da folk e os cenários da pop etérea dos 80's.

Em concreto, o verdadeiro mérito da massa musical dos Wild Beasts nem sequer é a inovação - as coisas de que é feito Limbo, Panto não são propriamente inauditas. É, ao invés disso, o admirável engenho de erguer monumentos pop com o melhor de cada um dos mundos estéticos de referência e dar-lhes um cunho pessoal único e orgulhoso que os distingue. O que se escuta no álbum é de uma autenticidade rara, por mais que tentem encontrar, nas entrelinhas da música dos Wild Beasts, pedaços dos Smiths, de Sparks, dos Orange Juice, dos Triffids, dos Shins ou de Antony Hegarty. Teatral, subtil, eufórico, ambicioso e orquestralmente sumptuoso, Limbo, Panto não será um disco consensual, como nunca o seria um produto de quatro jovens nos primórdios dos vintes, amantes de Dickens, do bizarro, do melodrama cénico e do fauvismo (o nome da banda é uma importação da escola de arte francesa), mas tem tudo para dar aos Wild Beasts o heróico epíteto de revelação do ano. E pérolas como "The Devil's Crayon" (um dos indiscutíveis momentos magnos do ano) afastam qualquer preconceito de intelectualismo que queiram colar-lhes.

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quarta-feira, 23 de julho de 2008

Leila - Blood, Looms and Blooms




O percurso artístico de Leila Arab é indissociável do nome de Björk. Primeiro como teclista de suporte da mediática islandesa, depois assistindo-a na função de co-autora de algumas composições, a iraniana Leila foi ganhando visibilidade no povoado orbe da música electrónica, a ponto de estrear-se, como compositora em título próprio (e uma das raras autoras femininas do género a não usar a sua voz em gravação), há uma década, com Like Weather. Então apadrinhado pelo selo de Richard D. James (Aphex Twin), a Rephlex, o disco desvendava uma curiosa mescla entre orgânicas left-field - muito próximas das estirpes "intelectuais" e mais elaboradas da música electrónica - e um transversal eclectismo estético, mormente na construção das melodias. Com efeito, embora não se tratando, à época, de um facto pioneiro, podia falar-se de um processo pouco convencional (mas razoavelmente bem conseguido) de encontrar convergências entre as sempre especulativas (e densas) manobras de manipulação digital e a contingência de as arrumar numa estrutura de canção com voz. Ao segundo capítulo (Courtesy of Choice, 2000, XL), Leila arriscou alargar o espaço de experiências de pop vanguardista e diminuir-lhes a tensão introspectiva, mas a crítica não se rendeu à troca da técnica pela forma.

Blood, Looms and Blooms chega-nos oito anos depois desse passo em falso, também depois de intensa actividade junto de Björk, tanto em palco (grande parte dos concertos da tournée de Volta tiveram Leila na abertura) como em disco. E a mudança para o catálogo da Warp, domicílio editorial de gente como Flying Lotus, Jamie Lidell, Plaid, Autechre ou Battles, parece ter funcionado como um estímulo oportuníssimo para Leila. É justo dizer-se: o selo inglês é, entre outras coisas, um seguro baluarte para algumas das mentes mais transgressoras (ou imaginativas) da electrónica contemporânea e o passado (e sobretudo o background) de Leila, não obstante as contingências de ter uma discografia curta, era uma premissa abonatória da sua adesão à família Warp. E se dúvidas existissem ainda, Blood, Looms and Blooms está aí para as dissipar. O terceiro registo de Leila é o mais lúcido (e transparente) da sua carreira. Tecnicamente muito bem urdido e detalhado, a puxar à sedução pelo efeito-surpresa e pela profanação das convenções instituídas, o disco é formalmente desprendido (deixou de ser importante falar-se em "canções") e mostra uma verve capaz de soltar a rédea em padrões estéticos vários, de tocar tangencialmente outros tantos e não perder o sentido de coesão. Afinal, a linguagem musical é a de Leila (com as presenças vocais da irmã, Roya, de Luca Santucci, de Terry Hall e Martina Topley-Bird), tão intrigante e complexa como antes, tão fértil e cativante como sempre a conhecemos. E mesmo que, aqui e ali, Blood, Looms and Blooms se desvie da rota e cometa o pecadilho de ser extenso demais, não deixa de ser um enunciado das virtudes de Leila e uma boa forma de lhe dar a merecida notabilidade.

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segunda-feira, 21 de julho de 2008

Lykke Li - Youth Novels

7/10
LL Recordings
2008
www.lykkeli.com



Quanto mais se generaliza a fatalista (e necessariamente redutora) perspectiva de que o orbe pop é um mundo saturado e crescentemente insípido, mais se manifestam protagonistas capazes de a contradizer. A revelação mais recente chega-nos da distante Suécia (embora tenha vivido uma parte da infância em Lisboa), tem a frescura e a jovialidade de alguém com vinte e dois anos e a timidez de uma estrela anunciada com medo da fama, é cultora de gostos mutantes - que vão de Kate Bush, a Velvet Underground, a Amy Winehouse, ao hip hop de última geração (leia-se Clipse e Dizzee Rascal), aos Suicide e ESG - chama-se Lykke Li (diz-se Lica-Li) e assina um disco de estreia de pop simples, açucarada e com substrato electrónico. Gravado em Nova Iorque com a ajuda de Björn Yttling (dos conterrâneos Peter, Björn and John), Youth Novels é, atrás da copiosa panóplia de instrumentos convocados, um disco de princípios estruturalmente minimalistas. O diapasão das melodias é a voz melíflua de Lykke Li que, mesmo com espectro estreito e pouco dada a aventuras de tom, transmite harmonia e suavidade às magníficas texturas que a servem. Trata-se, sobretudo, de uma visão pragmática (e certeira) da proporção do binómio voz/arranjos - ainda passível de afinações, é certo - mas que se confunde com um saudável princípio de sobriedade estética. Depois, as canções derivam pontualmente do curso temático natural da ambivalência romântica (as luzes e sombras do amor) e, aí, mostram outras caras não menos sedutoras de Lykke Li, mais dançantes ou mais introspectivas (até cabem duas despropositadas faixas em spoken word), mais folk ou mais electro.

Em suma, Lykke Li é uma adição oportuníssima às safras recentes da música escandinava (Peter, Björn and John, El Perro del Mar, Taken By Trees ou Robyn), mas tem leituras dúbias: a economia orgânica, ao depositar nos méritos canoros de Li o vigor das composições, se resulta esplendidamente em alguns trechos ("Little Bit" ou "Breaking Up"), acaba por jogar em manifesto desfavor de outros. E, ao mesmo tempo, o entusiasmo de alguns momentos mais preenchidos (como a mediática "I'm Good. I'm Gone"), faz crer que na filosofia musical de Lykke Li também devem caber substâncias mais venturosas do que o minimalismo. Em todo o caso, Youth Novels é um debute muito promissor.

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domingo, 20 de julho de 2008

Wire - Object 47

7/10
Cargo
Compact Records
2008
www.pinkflag.com



Os londrinos Wire constituem um dos poucos exemplos da música europeia em que a longevidade - a fundação do colectivo data de 1976 - se confunde com evolução e relevância artística. Tendo partido das heranças mais rústicas do punk do final da década em que se formaram, os Wire desde cedo se demarcaram dos pares geracionais e do simplismo estético do género, ao optarem por feições mais criativas e arty e , em simultâneo, por subscreverem conceitos elaborados de melodia e canção. Foi, de resto, a especificidade dessa tendência, e, em consequência, a aparente impenetrabilidade da sua música, a empurrá-los para um pejorativo estigma de "intelectualismo" de que não se livraram, senão em momentos pontuais do percurso discográfico. O fôlego experimentalista em volta das linguagens mais directas do rock tornou-se o centro da verve de Colin Newman e companheiros e a fonte de algumas mutações de processos e identidade estética - a que, por norma, vieram a corresponder cisões no seio do grupo. Depois de um estupendo trio de discos, de 1977 a 1979, a inaugurar uma carnalidade minimalista e um conceito vanguardista e geométrico de rock tirado das algazarras do punk, o grupo conheceu o primeiro (e abrupto) termo de actividades, em 1980. Voltariam, cinco anos mais tarde, depois de avulsas edições a solo de Colin Newman, Bruce Gilbert e Graham Lewis, superficialmente contaminados pelo advento da música electrónica, para editar um quinteto de álbuns, até nova dissolução em 1992. Seguiu-se um longuíssimo interregno de sete anos, parado pelo lançamento de alguns EPs e novo álbum de originais, em 2003, o nervoso e cifrado Send. Outra pausa no ano seguinte, formalmente interrompida pela reedição dos três documentos de início de percurso, também pela chegada aos escaparates, já em 2007, do terceiro capítulo da colecção de EPs Read & Burn.

Agora chega-nos Object 47, 11.º álbum dos londrinos - embora seja a quadragésima sétima manifestação editorial (daí o título), entre singles, EPs, álbuns e compilações. Com os Wire espera-se sempre o inesperado e, à rigidez textural, à dureza e ansiedade do antecessor, o novo opus opõe detalhismo estrutural, maior acuidade melódica, fulgor (dentro dos limites de luminosidade dos Wire) e espaço para a electrónica. Mesmo sendo esta a primeira gravação dos Wire sem a guitarra de Bruce Gilbert (abandonou, com acrimónia, o projecto em 2004), Object 47 traz um punhado de canções de grande vitalidade e com as certezas de um código sonoro apurado ao sabor dos cenários conjunturais, mas sempre fiel a uma aura própria. É art-punk venturoso, é rock ligeiro, é pop sinistra e deadpan. E, de uma penada, sem soar anacrónico ou revisionista, Object 47 conforta-nos com a familiaridade de um som que é, afinal, a mais cabal síntese das aptidões "históricas" do grupo, sem invocar qualquer momento pontual do passado e, sobretudo, sem perder de vista o arrojo vanguardista e o gosto pela experiência dos Wire.

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quinta-feira, 17 de julho de 2008

Tiago Guillul - IV

7/10
Flor Caveira
Mbari
2008
www.florcaveira.com



Indicados nos últimos tempos por outros ou assumidos pelo próprio, têm-se multiplicado os comentários sobre Tiago Cavaco (Guillul, em hebraico) e os exercícios de rotulagem da sua música. Se até há bem pouco tempo, mesmo depois da edição em CD-R deste trabalho, em finais de 2007, o músico lisboeta gozava de um anonimato quase total e das pacatas condições de pastor baptista em S. Domingos de Benfica e blogger do "clássico" Voz do Deserto, a afirmação dos Pontos Negros - que haviam sido "descobertos" por Tiago - atraiu atenções para as propostas libertárias do selo "underground" Flor Caveira (que ele fundou) e, por arrastamento, para a música do seu fundador. A reedição de IV em formato CD, com um punhado de composições extra, é o corolário assumido de alguns lançamentos avulsos dos últimos anos e apresenta definitivamente ao mundo musical português um protagonista a merecer sair do "buraco" do desconhecimento. Há na música de Tiago Guillul mais substância do que a do natural objecto de culto em que se transformou. Construídas com a segurança de quem acumula alguns anos de experimentação e depois de ultrapassado o teor panfletário baptista dos primeiros ensaios musicais, as canções de Tiago Guillul são, hoje, produtos amadurecidos pelo tempo, certeiros na conjugação de sabores retro (a música punk e o romantismo rock dos oitentas são heranças mais ou menos assumidas) e de um certo folclore estético que lhes empresta imprevisibilidade e fantasia. A isso junta-se a utilização hábil da língua portuguesa e do escárnio como veículo de uma mensagem sempre perspicaz e bem dirigida. É aí, no virtuoso uso do português, que IV marca mais pontos, ao actualizar a relação entre música e remoque social, trazendo-a a fasquias pouco comuns cá no burgo. E desenganem-se aqueles que, trazidos à música de Guillul pelo epíteto de "pastor do novo rock cristão", pensam encontrar aqui um opúsculo do protestantismo. O que vale é a música, da religião sobram brevíssimas insinuações. E a música tem todos os condimentos de um clássico: é bizarra, fresca, inteligente, sarcástica e tem muita personalidade. Ainda vai converter umas quantas almas tresmalhadas dos ofícios do espírito...

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segunda-feira, 14 de julho de 2008

Beck - Modern Guilt

8/10
Interscope
XL Recordings
2008
www.modernguilt.com



Com um percurso marcado pela vontade de percorrer as várias etapas de uma metamorfose artística sem destino estético definido, Beck é um dos sujeitos menos conformistas e um dos ícones principais da nação pop contemporânea, mormente pela acuidade com que vem insistindo na redefinição dos paradigmas de canção. É graças a ele, sobretudo na década de noventa, que as arraigadas visões tradicionais do cancioneiro pop são expostas a contaminações exteriores ao seu cânone e a uma criatividade revisionista que acabou por lhes somar influências de outras órbitas estéticas. Foi assim que, paulatinamente, a identidade musical de Beck se impôs como um produto híbrido e virtualmente inclassificável, ainda que subjacente às estruturas populares de canção. Com influências importadas do psicadelismo, da electrónica, dos blues ou até dos costumes folk, a música do multi-instrumentalista americano foi, em alguns casos com reflexos figurativos evidentes nas capas dos álbuns, um produto musicalmente equivalente do neo-expressionismo (ou da sua hiperbolização, o movimento cinquentista da art pop). Essa definição, volvidos quatorze anos da impressiva estreia discográfica, continua a ser um dos poucos rótulos justos que se podem colar a Beck e, com especial propriedade, a este Modern Guilt.

O mais curioso é que, mesmo sendo este o décimo álbum de Beck, o disco finta habilmente a familiaridade dos ouvintes face aos ingredientes idiossincráticos do americano, moldando-os numa massa sonora surpreendentemente capaz de insinuar novidade e imprevisto numa linguagem sobejamente conhecida e sem segredos. E esse é o melhor encómio que pode escrever-se sobre Modern Guilt, o de revalidar a efectividade do nomadismo estético de Beck que, mesmo travestido de ressaca festiva, psicadélica e espiritual (cortesia da co-produção do ubíquo Danger Mouse) é capaz de construções melódicas niveladas com o escol de Beck ("Gamma Ray", "Chemtrails", "Youthless" ou "Soul of Man" são o quarteto altivo). Não obstante um substrato mais melancólico do que os seus antecessores recentes, Modern Guilt é penetrante e vigoroso, cheio de truques sonoros apetitosos e, porque vem resumido em trinta e quatro lacónicos minutos de música, torna-se uma experiência rápida e intensa. Quando cessa o último acorde, fica o suspiro para voltar ao ponto de partida e gozar voluptuosamente o melhor Beck desde Sea Change.

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terça-feira, 8 de julho de 2008

Um português pouco suave...

Há momentos televisivos que fazem mais, do ponto de vista retratual do português de gema, do que estudos sociológicos apurados em décadas nas cátedras da ciência. O instante que o vídeo abaixo captura foi retirado do último capítulo d' "Os Contemporâneos" e reporta um diálogo casual de esplanada. Em dois minutos e meio de conversa sobre o aumento da criminalidade, duas caricaturas bem lusas: Nuno Markl é o plácido leitor de jornal, a alegoria da complacência, dos "brandos costumes" e da indignação apática e silenciosa; Eduardo Madeira é o cidadão revoltado contra a "rebaldaria" no país, o idealista e defensor acérrimo "do Irão" e das virtudes justiceiras de uma realidade que conhece apenas através de "um primo" e que defende energicamente. Numa penada, fica feita a fotografia da incongruência do espírito crítico do português comum e da argumentação inculta e desabrida que normalmente é o seu altor e que, afinal, tem tanto de impetuosa como de leviana.

Tricky - Knowle West Boy

6/10
Domino
2008
www.trickyonline.com



Os últimos anos de Adrian Thaws têm invariavelmente assinalado a demanda do músico inglês para se libertar do oneroso peso de um rótulo. Desde sempre conotado, mesmo contra a sua própria vontade, com as esferas do trip hop, o reconhecimento de Tricky junto das massas críticas acompanhou a evolução desse movimento estético, erguendo-o à instantânea sacralização no início do percurso a solo (depois da ambígua relação com os Massive Attack), em época de êxito conjuntural do trip hop, para depois, com a visibilidade menor do género, o empurrar para o quase esquecimento que os sucessivos débâcles discográficos ajudaram a confirmar. É nesse torpor mediático que Knowle West Boy experimenta nova terapia de ressuscitação daquele que, em tempos idos, foi um dos provocadores de excelência dos anos 90. O disco põe termo a um cauteloso silencioso de cinco anos e, como os seus antecessores mais recentes, é um alvoroço de tensões interiores próprias de um espírito turbulento que, chegado aos quarenta, já não esconjura os demónios do caos urbano, antes os aceita e tenta refrear. Da ansiedade hipnótica e do nervo negro e angustiado de outros tempos, restam aqui meras sombras ("Past Mistake" é o descendente mais próximo). Tricky (e a sua música) é, hoje, um agente menos de causas e mais de efeitos; continua a ser um insurgente atento, mas está menos agudo. Ao invés de assumir-se, na sua improbabilidade criativa, como um líder de rebeliões, converteu-se num seguidor das tribos urbanas globalizadas da nova década, onde as mesclas sonoras que ele próprio inaugurou a contento de uma geração são uma vulgaridade e um discurso comum. E, perante o adensamento de propostas desse género e a ascensão de outras linguagens narradoras das crises metropolitanas desta era, sobram menos espaços úteis para os exorcismos de Tricky. Ainda assim, Knowle West Boy é a mais competente (e esquizofrénica) declaração de vitalidade de Adrian Thaws desde os "dourados" anos 90. Mas não parece ainda bastante para reatar uma chama conservada a meio-gás nos últimos anos.

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segunda-feira, 7 de julho de 2008

António Pinho Vargas - Solo

8/10
David Ferreira Investidas Editoriais
2008
www.antoniopinhovargas.com



Nas palavras do próprio António Pinho Vargas, Solo não é um produto jazz. Exposto assim tão cruamente e um pouco em contraponto com as essências antigas de um percurso de muitos anos, o novo disco do compositor português é, num registo individualizado na intimidade do piano, de facto, uma obra menos jazzística e mais "clássica". Trata-se, afinal, de redescobrir o passado trilhado nos caminhos do jazz e não só, de nele recolher uma colecção de composições, de lhes juntar dois inéditos e, com isso, dar um sentido de coesão e congruência ética a alguns dos episódios avulsos mais marcantes de um trajecto de fina liberdade estética. Ao mesmo tempo, as gravações de Solo proporcionaram ao músico/compositor gaiense um saudado regresso aos palcos, depois de anos de ausência, por força da dedicação a outras causas, sendo o episódio mais recente a edição da ópera Os Dias Levantados - que fora originalmente uma comissão do Festival dos Cem Dias, integrado na EXPO98. À luz desta recente centragem de esforços na música erudita, Solo ganha sentido adicional enquanto exercício de retorno e revivificação de uma obra consistente e muitas vezes esquecida ou subvalorizada pelas pressões mediáticas dos mercados discográficos. O duplo-álbum tem, então, mais do que a mera dimensão da circunstância editorial, a importância de conduzir o ouvinte a um maravilhoso e plácido promenade à inventividade e às múltiplas identidades musicais de António Pinho Vargas. E ao mostrar as composições sem artifício e despidas de arranjos, ao oferecê-las no mínimo revestimento, Solo tem não só o condão de converter-se no opus mais pessoal e íntimo da discografia de APV, mas sobretudo tem a versatilidade de se desviar da mera compilação nostálgica, emprestando a trechos isolados uma "segunda pele", um senso de novidade - até de improviso - que lhes oferece harmonia e sentido de conjunto. Revisitadas assim nesta despida metamorfose, nas transparências e na singeleza melódica do piano solo, as composições de APV alcançam a rara e genuína tangibilidade das coisas humanas livres. E essa tocante delicadeza do músico ao piano, essa predilecção por mostrar o imo da música, essa imperfeição tão mundana é a mesma que serve de subtítulo a um disco imprescindível. Porque a imperfeição pode ter uma beleza esplêndida.

sábado, 5 de julho de 2008

The Presets - Apocalypso

7/10
Modular
2008
www.thepresets.com



Julian Hamilton e Kim Moyes tornaram-se, nos últimos três anos, um dos vértices mais imponentes da música australiana no mundo. O debute discográfico enquanto The Presets - com o aclamado Beams (2005) - atirou-os para a ribalta do orbe da electrónica pop, abrindo portas para alguns dos festivais mais importantes do género, ao mesmo tempo que desvendava uma identidade musical substancialmente distante das abordagens generalistas dessa estética. A par do indispensável culto das praxes techno geneticamente ligadas ao anos oitenta - afinal, a confessada luminária dos Presets - Hamilton e Moye subscreviam, aí, um certo desinvestimento nos coloridos da melodia, em favor de afinidades com tensões, sombras e alguma negrura emocional. Nesse particular, Apocalypso reinventa os conceitos algo rústicos do antecessor, repisando os propósitos de uma electrónica marginal e que excita mais pela provocação cáustica do que propriamente pela brandura melódica. Ao mesmo tempo, debaixo das tensões que coordenam a relação da música com o espaço, há uma escrita afinada e capaz de emprestar elasticidade ao estilo do disco, bem ao jeito dos produtos mais "negros" dos Depeche Mode. O resto, o que os distingue do mero seguidismo de referências, é a apurada mistura de zumbidos e concentrados electrónicos para fazer mosh, os devaneios industriais, os climas ambivalentes entre a letargia gótica e o cataclismo dançante, os sintetizadores e maquinaria saturados, a atitude de resvalo rock e o hedonismo elegantíssimo. Corrosivo, mas viciante.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Fleet Foxes - Fleet Foxes

8/10
Sub Pop
Popstock
2008
www.myspace.com/
fleetfoxes



O debute discográfico dos Fleet Foxes chega aos escaparates nacionais envolto numa aura curiosa. Depois de duas curtas demonstrações das linhas com que se cose, em EP's convertidos em objectos de culto junto das franjas mais alternativas da comunidade melómana, o quinteto de Seattle mostra-se num registo que mereceu rara sacralização de algumas das mais solenes publicações especializadas de música a nível internacional, sobretudo por se tratar um produto estreante. Mediatizados em larga escala, pelo menos em território americano, como um dos mais estimulantes projectos da folk corrente, em alguns casos até visados (justamente, diga-se) como herdeiros contemporâneos de um certo barroquismo "clássico", os Fleet Foxes souberam integrar-se nessa corrente musical algo órfã de descendências modernas, recuperando-a para o primeiro plano da música americana e dos gostos dos melómanos. Fleet Foxes é, como podia esperar quem conheceu os EP's prévios, um exercício colector (e nostálgico) de influências de vários quadrantes dos anais do rock clássico e da folk tradicional. A pureza melódica é uma trave-mestra, sobretudo nos esplendorosos jogos vocais do álbum e na ambição das construções instrumentais e dos arranjos. Nas memórias invocadas pelo disco, e são muitas, cabem cerimoniosos fragmentos dos "inventores" da folk emocional - leia-se Neil Young, Bert Jansch, mesmo Donovan ou o incontornável quarteto de mestres Crosby, Stills, Nash & Young - e do melodismo sessentista dos Beatles ou dos Zombies; cabem também preitos à alma Motown, ao proto-psicadelismo dos Love, aos enleios vocais dos Beach Boys, ao esoterismo da Incredible String Band e às fantasias progressivas dos Jethro Tull. A surpresa mora na sublime junção de semelhante família de sons que, mais do que meramente adir partes num concentrado denso de neoclassicismo, produz uma colecção de canções genuínas numa identidade própria feita de simplicidade, de beleza pastoral e barroca, de orgulho na tradição, mas capazes de respirar ares actuais e intemporais. E isso é muito mais do que subir ao sótão e tirar o pó ao baú de recordações.