sábado, 30 de setembro de 2006

Spank Rock - Yo Yo Yo Yo Yo

Apreciação final: 8/10
Edição: Big Dada/Ninja Tune, Abril 2006
Género: Hip Hop/Underground Rap/Fusão
Sítio Oficial: www.bigdada.com








Apesar de ser uma estirpe sonora que amiudadamente nos brinda com produtos renovadores e que certificam a sua dinâmica expansiva e alargadora de fronteiras, o universo hip hop nem sempre se cruza meritoriamente com outras famílias. A primeira edição do projecto Spank Rock, em que o MC Naeem Juwam faz equipa com o expert de beats Chris Rockswell e o renomado produtor XXXchange, é um desses discos em demanda por ares híbridos das sínteses electrónicas e do underground rap. Escutar Yo Yo Yo Yo Yo é fazer, de uma assentada, um curso de hip-hop hedonista (as divagações sexuais estão por todo o disco), uma vezes próximo dos registos vocais tradicionais da oldskool, noutros ápices mais próximo da ciência de vanguarda, de electrónica precisa e oportuna (mesmo quando parece saída de um vídeo jogo dos anos 80), de baixo sintético sempre em riste, de tentativas techno bem sucedidas com embalos soul, de insinuações sonoras sem freio mas conjugadas no tempo certo. O axioma é a sedição contra regras, ao jeito patrocinado por Diplo, o preconceito não encaixa em tamanho estoiro de criatividade e visão ecléctica. A produção não tem mácula, é da melhor filigrana deste ano, sublinha a lascívia da lírica e soma impurezas à sonoridade do álbum, inventando um registo com a electricidade contagiante e o caos (des)controlado de um clube no prelúdio da madrugada. Depois de precipitada a diversão, o circo dos Spank Rock denuncia claramente o seu propósito maior: agitar cinturas e fervilhar hormonas ("Touch Me" até faz de metrónomo para os mais audazes!).

Dêmos graças aos Spank Rock por mesclarem temperamento recreativo com originalidade e, ao mesmo tempo, conseguirem a façanha de tocar a modernidade e manter um senso retro (herança das fusões electro dos dinossauros Afrika Bambataa e Kool Herc). A premissa para fazer um disco como Yo Yo Yo Yo Yo sem cair no natural impulso de exagero que aflige outros híbridos do hip hop é o engenho. E essa faculdade é inscrita a traço resoluto neste álbum, não deixando espaço para dúvidas: a despeito da insistência quase intempestiva no teor sexual das letras, coisa algo descomedida, Yo Yo Yo Yo Yo é um debute impressionante de uma nova matéria na comunidade hip hop. E uma das mais talentosas e eficazes cápsulas anti-tédio do ano.

sexta-feira, 29 de setembro de 2006

Bruno Duarte + Old Jerusalem + Puny - Splitted

Apreciação final: 6/10
Edição: Bor Land, Setembro 2006
Género: Split CD/Lo-Fi
Sítio Oficial: http://bor-land.com








A editora matosinhense Bor Land tornou-se, em meia dúzia de anos de uma existência atenta, um cicerone peculiar do que de melhor se faz na periferia da música lusa. Com um punhado de lançamentos distantes do mediatismo das grandes edições, a etiqueta projectou alguns dos conceitos musicais mais isentos do underground português (Alla Pollaca, Old Jerusalem, Kafka, Ölga, Complicado), reconhecendo-se-lhe o condão de, com astúcia rara, tirar o véu a factos musicais relevantes de uma cena musical cada vez mais congestionada de produtos estéreis. Desta vez, a proposta é uma colecção de canções assinadas por três projectos da nossa praça. A saber: o já mais mediático e apreciado Old Jerusalem (espaço de invenção do portuense Francisco Silva), o estreante a solo Bruno Duarte (guitarrista dos München) e o trio viseense Puny, nas primeiras gravações para uma etiqueta, depois de alguns lançamentos a título próprio. Rústico da abertura ao remate, Splitted traz sons sujos e experimentais, em predilecção pela familiaridade (e franqueza) de gravações quase domésticas, de produção mínima e pouca mediação da mesa de misturas. A guitarra é prescrição comum à tríade de artesãos, reinvindicando o destaque estrutural das peças aqui inscritas, ora mais espessa e consistente, ora mais contingente e utópica.

Bruno Duarte, autor de sete trechos (integralmente instrumentais) do alinhamento, assina o registo mais experimental do disco, sem renunciar a um fino timbre pastoral (chame-se-lhe lo-fi), algo que é conjugado superiormente com esporádicas (e superficiais) pinceladas de psicadelismo, revérberos pontuais e incursões tímidas pelo noise plácido (cacofonia até?) ou pela deriva dos ventos pós-rock. Acontecem, depois, os três momentos Old Jerusalem, com o ânimo quebrantado do costume, de graciosa melancolia e notas cândidas que se atam em princípios de incerteza. Essa aparente fragilidade, vestígio inconfundível de Francisco Silva, sustenta odes desarmantes, como na extensa serenata (quase nove minutos!) de "Up North in Convoy", única peça cantada de Old Jerusalem e ápice magno da compilação. Cerrado o mundo de purgação e fantasia de Old Jerusalem, os Puny tomam conta do estaminé. Em curiosa fusão free-folk-rock-psico-qualquer-coisa, os argumentos dos Puny separam-nos de Bruno Duarte e Old Jerusalem. As distorções e a percussão deixam de ser um esqueleto no armário, pulam para o arrojo da primeira fila e o volume sobe. Leva com ele o ruído, trazido a estratos quase nocivos. O pagode alucinado assenta arraiais. Pena é que, no cerne de tamanha parafernália de tralhas sónicas e esboços de ideias, não chegue a perceber-se tacto para ultimar um dos imensos bosquejos. E, mesmo percebendo que não era esse o fim de Splitted, registo necessariamente mais perto do simbolismo da gravação caseira, urge produzir o som dos Puny e, com a régua certa, está aqui o gérmen de um ensemble promissor. Em suma, Splitted tem mais lances de arranque do que matérias acabadas e põe em voga protagonistas modernos e cujos recursos são revalidados (a consagração de Old Jerusalem não depende deste álbum), mostrados noutro tom (Bruno Duarte a solo é bem diferente dos seus München) ou abrem os pórticos para um futuro risonho (Puny).

quarta-feira, 27 de setembro de 2006

The Rapture - Pieces of People We Love

Apreciação final: 7/10
Edição: Universal Motown, Setembro 2006
Género: Indie Rock/Dance-Punk
Sítio Oficial: www.therapturemusic.com








Esta coisa de fundir, com proveitos, o pós-punk e saracoteios próprios de uma pista de dança não é missão para qualquer um. Assunto sondado regularmente por alguns dos vectores menos contestados da cena underground norte-americana (LCD Soundsystem, !!!, Radio 4, Hot Chip), trata-se de um ramal da família rock que mereceu o consentimento e a aprovação de públicos mais amplos, conquistando gradualmente a extensão mediática proporcional. Echoes (2003), segundo trabalho dos The Rapture, foi esteio fundamental dessa reafirmação das sonoridades mais dançáveis do indie - o património dos Gang of Four como pedra de toque - atestando a vitalidade de um género enfermo de languidez. Neste contexto, os The Rapture somaram pergaminhos e juntaram-se à galeria de notáveis do motim, mormente depois do reconhecimento da crítica à generosidade de Echoes. Directo ao assunto: o sucessor, Pieces of People We Love, está aí e retém a veemência do antecessor (com defeitos e virtudes símeis), talvez suavizando a pressão punk da fórmula, mas guardando a doutrina e os compassos dançáveis, ainda que não haja no alinhamento nenhum êxito imediato como "I Need Your Love". As guitarras encontram outro recato, em soberbo convívio com o saxofone, par de suporte de estruturas mais funk e pautadas por convergências de boa casta entre percussões reais e sintéticas, sublinhados mais do que úteis para o groove inegável de "Get Myself Into It" (uma aposta como vão aparecer por aí um punhado de remixes enquanto o diabo esfrega um olho?).

Sem a produção da parelha The DFA, para muitos uma das substâncias essenciais de Echoes, o som dos The Rapture não perdeu exuberância. Convidados para governar a engenharia de som de Pieces of People We Love dois ilustres: Paul Epworth, produtor de Silent Alarm (disco de estreia dos britânicos Bloc Party), e Ewan Pearson, mestre inglês do remix. Além destes, o nova-iorquino Brian Burton (aka Danger Mouse) dá uma mãozinha em duas faixas. Com semelhante amparo, a música dos The Rapture é contaminada de urgência disco, quase sempre em timbres eufóricos e vozes menos agudas, ângulos mais polidos. A ignição nem sempre funciona mas há em Pieces of People We Love picante suficiente para estimular apetites de dança. E, ao mesmo tempo, trazer à memória a ideia de que o dance-punk está aí para as curvas.

terça-feira, 26 de setembro de 2006

Os últimos filmes que vi - Eu, Tu e Todos os que Conhecemos, Nada a Esconder & Irmão, Onde Estás?

A primeira longa metragem de Miranda July, também protagonista na fita, é uma alegoria sobre os laços humanos, contada numa narrativa propositadamente soluçante e que intersecta os habitats sociais de alguns misfits. Desses desajustados, sobressai um par, elemento central da história, o vendedor de sapatos Richard (John Hawkes) e Christine (Miranda July), mulher das artes que confunde frequentemente fantasia e realidade. A casualidade que os une é, afinal, apenas a réplica cósmica de que, eles e outras personagens do argumento, tanto ansiavam para achar o escopo do seu destino. Por vezes inocente, outras arrebatado e delirante, Eu, Tu e Todos os que Conhecemos não é um filme imediato e move-se num bizarro limbo, mais próximo da ingénua crença na bondade do mundo do que do realismo acre. E essa é a pecha que mancha ligeiramente a competência do filme, a incrível convicção de que os equilíbrios universais dão a todo e qualquer misfit (e o filme tem uma considerável colecção deles) a esperança num deus ex machina que, por obra do acaso, apareça para salvar os dias. Ou, no mínimo, que os faça sonhar.

Apreciação no espaço de cinema do apARTES. Clique aqui ou no link na margem esquerda do blog.





Já não restam dúvidas de que o realizador germânico Michael Haneke gosta de desafiar o espectador. Caché é o seu mais recente repto, mantendo a costumeira tónica minimalista (tão bem encaixam nesta lógica as competentíssimas prestações de Daniel Auteuil e Juliette Binoche) para especular sobre o voyeurismo. A subversão é esticada ao cúmulo de impôr ao espectador uma dupla atribuição: por um lado, o incómodo papel de testemunhar alguém a observar religiosamente o quotidiano do casal Laurent e registar os momentos em vídeo e, depois, observar o enredo na perspectiva do par filmado, presenteado regularmente com as cassetes do voyeur anónimo. Dessa dupla condição, advém um ambiente tenso e perturbador, particularmente no último quarto do filme (a dinâmica narrativa dos outros três é menos boa), com a desfiadura dos actos derradeiros, a exploração minuciosa do sentimento de culpa (sem sentenças) e um final inconclusivo que, se intencionalmente não responde à ânsia construída pelo suspense da história, ao menos é garante de uma coisa: o cinema de Haneke não é pretensioso mas continua a ser para ver e pensar depois.

Apreciação no espaço de cinema do apARTES. Clique aqui ou no link na margem esquerda do blog.





Comédia dos irmãos Coen não segue padrões. O absurdo e o vestígio do noir estão por todo lado em O Brother, Where Art Thou?, com argumento centrado nos anos 30 e alegadamente inspirado na "Odisseia" de Homero (as semelhanças são apenas simbólicas), o filme retrata o malabarismo de três foragidos (o líder do grupo, interpretado por George Clooney, só podia chamar-se Ulysses...) do Mississipi em busca de um tesouro. Mas o caminho para o ouro é espinhoso; além de serem seguidos de perto pelas autoridades, os três aventureiros vão encontrar uma série de caracteres bizarros, ora interessados em rapinar a prometida fortuna, ora empenhados em devolvê-los à mão da justiça. Pelo meio, gravam ocasionalmente uma canção que se torna um êxito imediato no estado do Mississipi. Embora as personagens não sejam tratadas com grande profundidade dramática, algo comum nas fitas dos Coen, o desempenho da equipa de actores acaba por salvar o filme e garantir o entretenimento mínimo que se lhe exigia, não avançando além da mediania, a despeito do investimento num punhado de boas ideias.

Apreciação no espaço de cinema do apARTES. Clique aqui ou no link na margem esquerda do blog.

segunda-feira, 25 de setembro de 2006

Loscil - Plume

Apreciação final: 5/10
Edição: Kranky, Maio 2006
Género: Electrónica Experimental/Ambiente
Sítio Oficial: www.loscil.com








O quarto disco do rótulo Loscil, pseudónimo no cosmos das artes do escocês Scott Morgan, parece tirado de um tratado de leis da física. Pudessem os axiomas da ciência das interacções entre matéria e energia ser reproduzidos em massa sonora e o resultado final seria muito próximo deste Loscil. Além da indispensável base electrónica, componente indissociável deste género de trabalhos, destaca-se uma subliminar interferência de elementos acústicos reais, mormente nas curtas sugestões de piano e guitarra, perfeitamente dissimuladas nos tecidos sintéticos dos trechos. A coexistência é suficientemente hermética para não aceitar impurezas na mescla, o som torna-se escorreito e abstracto, como é regra de Morgan. Não há aqui pontos de mira objectivos, o álbum erra sem trilhos pré-concebidos e sem o freio da formatação. Talvez por isso esta família da electrónica pareça, muitas vezes, desunida das demais, por estimular repetidamente o cerebelo, nem sempre com idêntica eficácia, mas, acima de tudo, com ousadia criativa menos trivial. Nesse particular, quiçá os predicados de Loscil (contracção de loop e oscilation, ao que consta) até não sejam os mais virtuosos - os projectos de Mark Nelson (aka Pan American, também tem contrato com a Kranky), Adam Wiltzie (aka The Dead Texan) ou o feiticeiro Matthew Cooper (aka Eluvium) competem noutras latitudes - mas garantem um serviço um pouco acima do mínimo.

Da física, Plume recebe o pragmatismo da estática, o recreio dos equilíbrios de forças, momentaneamente substituídas neste palco sonoro de Morgan, por substâncias musicais informes, quase vaporosas, de tão intácteis. No disco, como no universo real, as proporções são sacudidas, podem torcer, mas não quebram. O sumo equilíbrio universal é a justa medida de Plume. Pena é que não se vislumbre sequer uma faísca de reacção química que agite o sistema e nos desperte da mediania.

Posto de escutaMySpace

sábado, 23 de setembro de 2006

Helios - Eingya

Apreciação final: 7/10
Edição: Type Records, Junho 2006
Género: Pós-Rock/Instrumental/Lo-Fi
Sítio Oficial: www.typerecords.com








Se o mundo acabar, o amor será as nossas asas. Assim era a profecia de Dave Matthews, numa canção de um cosmos díspar de Eingya mas que, com certeira ardência, ajuda a unir os fragmentos do belíssimo segundo disco de Keith Kenniff sob o pseudónimo Helios. De facto, há qualquer coisa de despego material no disco, como se musicasse, sem angústias ou medos, um apocalipse esperado pacientemente na certeza de um novo sol posterior, prenúncio de um éden maior, glorioso campo de resgate da emoção. O amor é a tábua de salvação do cataclismo, como dispõe a feliz capa do disco, na vacilante caminhada rumo a uma esfera celeste incerta e supranatural, mundo flutuante de luz. A música de Helios é feita desses passos incertos por entre destroços do homem (e do mundo) terminado, da revelação de uma renovada esperança teológica. Também por isso, é comum aos onze trechos de Eingya uma inesperada simetria entre os ambientes do mais imaculado éter, de fé quase virginal na redenção pós-apocalíptica, e a contingência da sua confirmação. É nessa mágica combinação que o álbum se transcende, primeiro comovendo pela mestria melódica e amenidade das eufonias para, depois, nos levar num torpor hipnótico, indiferente aos confins corpóreos. Onze andamentos fazem de Eingya uma sinfonia do éden, seja ele no último átomo do universo ou na mais entusiasta quimera.

As palavras nostálgicas e delicadas são do piano e da guitarra (a voz é fragma apenas num trecho), as substâncias sintéticas locupletam a densidade das faixas, com pulsações lentas e ténues, sublinhando a fragilidade e a decomposição das paredes de som. Engyia é música de respiro demorado, de latente mortalidade e, influxo concomitante, de bucólica transcendência, como que mostrando que, por detrás da carnalidade de cada partícula sonora (na tradução de Helios, de cada molécula humana) há um quinhão de divindade, um pedaço intangível de som celeste, de notas e tons de estrato maior. Mesmo não tocando planos originais ou especialmente inventivos, Eingya leva-nos a sítios pouco revelados (talvez os Boards of Canada já tenham uma bandeira por lá), em cursos de sublime romantismo. De mãos dadas, até ao fim do mundo.

quinta-feira, 21 de setembro de 2006

Coltrane e Davis em versão conjunta de "So What"


Pequena preciosidade que descobri no YouTube, gravação registada em 1958 de uma versão para "So What", originalmente incluída no álbum Kind of Blue.

Comets on Fire - Avatar

Apreciação final: 8/10
Edição: Sub Pop, Agosto 2006
Género: Rock Progressivo/Noise Rock/Rock Psicadélico
Sítio Oficial: www.cometsonfire.com








Aviso prévio à audição: é pouco provável que se saia ileso do contacto com um disco dos Comets on Fire. A civilidade é para eles um dogma estéril, a música não tem que ser portadora de mesuras, antes se presume a metáfora de um mundo urgente, povoado por seres em eminente colapso, imersos numa roda-viva de alvoroço e stress. E esse frenesi, deformação colateral decorrente da vida em sociedade, é um paradigma sensível na música dos Comets on Fire, particularmente neste Avatar, tomo pejado de sinais da instrução pós-punk, pelo menos nas voltas mais vanguardistas das distorções, coisa farta na nova edição e que, em adultério manhoso, até chega a namoriscar com o hard rock clássico (ouça-se "The Swallow's Eye"). Tudo sublimado e estrepitoso, na extensão esperada dos registos anteriores, mas nos antípodas de outras lembranças de Ben Chasny (esse mesmo, do plácido juízo de Six Organs of Admittance). Aqui, há suspeitas (confirmadas) de ácidos na mistura de sons, com a porção infalível de psicadelismo e a teima no esboço de novos extremos. Não é à toa que os Comets on Fire se converteram em ícones do underground, primeira voz no saque do património rock americano, algo que o seminal Blue Cathedral bradou aos quatro cantos do mundo. Avatar recoloca-os nesse estrato de roubo e amplificação, de volumes incrivelmente altos, com vocalizações mais limpas (a voz de Ehtan Miller já não traz tantas afectações de estúdio) e imoderação no ruído. Outra vez a esquizofrenia de Blue Cathedral? Na composição faz-se inteligível a segurança harmónica das faixas, com alguns tiques maquinais, é certo, mas onde cada fragmento supre um espaço só seu, em abono do refinamento da tensão e da integridade da soma. Nem os dilatados solos perdem o norte.

Se à primeira escuta Avatar parece mais sereno (ou na acepção negativa, mais conservador) do que o antecessor, as audições sucessivas do disco respondem às cobranças mais exigentes e revelam, em lentos avanços, que a alma desobediente dos Comets on Fire está cá toda. Mesmo os instantes mais brandos, como na afinidade Pink Floyd de "Lucifer's Memory", servem à subsistência do disco, impondo variações temporais e cadências distintas, o justo complemento da matriz yin-yang do álbum. Afinal, o psicadelismo também pode ser aviado sem as distorções e os galopes desenfreados de "Holy Teeth". Talvez os entusiastas mais intransigentes do som de Blue Cathedral não achem esta (re)perspectivação fortificante mas o que ela representa, em última análise, é uma expansão da consciência especulativa dos Comets on Fire e um redimensionamento das escalas experimentais do psicadelismo. E Avatar é a etapa mais recente desse maníaco crescimento.

terça-feira, 19 de setembro de 2006

Silversun Pickups - Carnavas

Apreciação final: 7/10
Edição: Dangerbir Records, Julho 2006
Género: Indie Pop-Rock/Shoegaze
Sítio Oficial: www.silversunpickups.com








Desde os primeiros acordes de Carnavas, debute discográfico deste quarteto californiano, somos levados a uma objecção geográfica: isto não é música típica de americanos. Em boa verdade, os múltiplos sedimentos de distorções e efeitos, a disfunção quase esquizofrénica das texturas sonoras, o subliminar noise, a intuição melódica e a atitude introspectiva dos trechos de pop envergonhada encaminham-nos para as memórias do shoegazing britânico. Já este ano, os nova-iorquinos Asobi Seksu, com o competente Citrus, se entretiveram no recreio desta escola, anunciando uma espécie de renascimento do género shoegaze do outro lado do Atlântico. Kevin Shields e os irmãos Reid sorrirão de esguelha ao escutar Carnavas? O afinco instrumental do álbum é coisa para não passar despercebida, tal o furor e inspirado entusiasmo que se decifram nas canções, gordas de ecos e ressonâncias. Depois, há uma sublime aspereza, em contraponto com a ansiedade melódica que pauta o disco, e um persuasivo sentido de urgência, conjugação de elementos que fornece as contemporizações úteis à fluência do som. E se fluem as canções dos Silversun Pickups, distintamente servidas por uma voz dúctil que encontra o sentido da vida em tons andróginos, submergida nas excitantes flamas das guitarras e em enredos harmónicos tão solícitos que parecem obra de gravação a cinzel. É esse o mito dos Silversun Pickups: a paixão do pormenor como trajectória de recurso na órbita shoegaze. E, para evitar o piloto automático, junta-se outro membro a este mexido clube de sons, o pó da arca dos Smashing Pumpkins, uma mera causa espectral para o efeito final, danos do sol da Califórnia em cabeças vergadas, de olhos postos no sapato. Assim Carnavas arreda-se da etiqueta única, é digno de revista redobrada que experimente as sobras para lá da nuvem shoegaze e dos disfarces por detrás do arame farpado dos sons imediatos. Música feraz.

Carnavas está impregnado de causas supostamente prescritas (se não no indivíduo melómano pelo menos no prepotente palco das vendas mainstream) mas não soa retrógrado. Pelo contrário, o som é uma sessão de acupunctura moderna, de estética focada e precisa, algo díspar da tónica dominante das praias da Califórnia (Beach Boys, no way!), é certo, mas cultora de um vocabulário sonoro perspicaz. As metamorfoses expeditas deste mutante, se capturam os favores dos tímpanos do ouvinte, não ficam isentas de uma mácula mínima: chame-se-lhe, esvaziando o substantivo da conotação primária (e mais negativa), repetição em ciclo. O que não deprime a feliz circunstância de não haver uma má canção em Carnavas.

domingo, 17 de setembro de 2006

Xiu Xiu - The Air Force

Apreciação final: 8/10
Edição: 5 Rue Christine, Setembro 2006
Género: Experimental/Pós-Rock
Sítio Oficial: www.xiuxiu.org








Só mesmo uma trupe tão controversa como os californianos Xiu Xiu podia germinar um álbum com o Messias cristão na capa e o título The Air Force. Tão bizarra associação de símbolos, intrinsecamente equidistante da iconoclastia e da piedade, encontra analogias nas charadas musicais de Jamie Stewart, guia criativo do projecto, e da cúmplice (e prima) Caralee McElroy. Os dois juntos, ocasionalmente acompanhados por Cory McCulloch, são obreiros de um mais firmes conceitos musicais da moderna música americana e, em The Air Force, mantêm as premissas identitárias que lhes valeram o culto generoso de uma restrita casta de séquitos, almas convertidas a uma doutrina musical ímpar, feita de avessos e impurezas. A fundação primitiva e indispensável das composições dos Xiu Xiu é o ruído, eles empregam toneladas dele, de tonalidades e origens distintas, ao ponto do espectro cromático das músicas ser difuso, intencionalmente partido, muitas vezes díssono, sempre faustoso, mesmo nos ápices ensimesmados e mínimos. A linearidade não entra nesta álgebra, as melodias decifram-se a custo num confronto de estratos musicais justapostos a preceito, projectando o som a uma amplitude invulgar, aspecto em que o disco suplanta o menos conexo La Fôret. Os contrastes de timbre fazem lei, confundindo a fixação do ouvinte, obrigado à incerteza de avistar o fio melódico de cada composição. É aí, nessa aparente vulnerabilidade (que, afinal, é a sua virtude de excelência), que a música dos Xiu Xiu se arroga das suas valências, aliciando-nos a sondar as mais ínfimas porções dos trechos, sem nunca as desfiar por inteiro. Como uma verbosa sonata digital, The Air Force é necessariamente poluído pelo excesso e pela retorção, pela intersecção e sabotagem de géneros e pela experimentação.

Os conhecedores da peregrinação dos Xiu Xiu pelos ângulos tétricos da circunstância e do acidente sonoro não acharão factos inopinados no novo disco. A singular fantasmagoria de Stewart mora aqui, talvez menos difusa no dramatismo, como que remida de um naufrágio presumido sob o efeito de anfetaminas mas nunca acontecido. Também por isso, por se salvar da alucinação sem deixar de a buscar, The Air Force pode muito bem ser a melhor obra dos Xiu Xiu. A prová-lo, habitam-no algumas peças do melhor do grupo, como a reinvenção shoegaze da extraordinária "Save Me Save Me", a bizarria de "Boy Soprano", as utopias de "Bishop, CA" ou o minimalismo de "Hello From Eau Claire", a dar a emancipação vocal a McElroy, num desalinho à CocoRosie. Mais expressionista do que isto só uma tela de Kandinsky.

sábado, 16 de setembro de 2006

The Mars Volta - Amputechture

Apreciação final: 7/10
Edição: Universal, Setembro 2006
Género: Rock Experimental/Progressivo
Sítio Oficial: www.themarsvolta.com








Os Mars Volta são um daqueles ensembles acostumados a estar na voga. Sem esquecer o passado nos At the Drive-In, o indiscutível bom gosto e o diâmetro artístico dos dois registos anteriores a este vieram a acomodá-los a uma certa sacralização da comunidade indie e, nessa conjuntura, guindaram a exigência a níveis normalmente não acessíveis aos vulgares mortais. É esse o fado incontornável dos special ones (não só Mourinho!), o de serem escrutinados por ouvidos de fina têmpera, já diz o adágio do povo que depois de ter-se cavalgado um puro sangue não volta a montar-se uma mula. Amputechture, terceiro capítulo de Omar Rodriguez e Cedric Zavala, chega a nós envolto nessa vaga de expectações agravadas, ou não fosse cada lance dos Mars Volta um exame solene. Musicalmente falando, eles já não encobrem mistério nenhum, continuam a vascolejar o universo rock clássico, com impressões mais ou menos intuitivas dos King Crimson (o enlace guitarra-saxofone), mormente no formulário de guitarras, aqui e ali também reminiscente dos Led Zeppelin, algo que Rodriguez e Zavala baralham subtilmente com laivos de um Zappa em dias menos audaciosos. Tudo isto embrulhado num concentrado harmónico a fazer escalas no rock progressivo (Pink Floyd in the house) e na música latina, com margem para o recurso aos deslumbramentos da experimentação, umas vezes pertinho do jazz isento de regulamentos, e, noutros turnos, nos arredores do psicadélico. A empatia com os Red Hot Chilli Peppers, na sequência da recente digressão conjunta, é prosseguida em Amputechture, com John Frusciante a emprestar a expressão realista da sua guitarra à maioria das faixas do álbum.

Amputechture não causa o espanto dos antecessores, especialmente o insofismável tomo de debute, mas conserva as faculdades de uma das bandas americanas de maior competência. As letras são impenetráveis como um desafio esfíngico, coisa costumeira nos Mars Volta, e orbitam em reflexos góticos da metafísica, plenos de misticismo e intriga. E que melhor serviço musical para esses textos do que as maquinações iconoclastas de Rodriguez e Zavala? Cada trecho é um choque visceral distinto, um dínamo de virtuosismos inesperados e ângulos tensos e uma miríade de ideias confluentes. Contudo, se cada peça é quimicamente coesa, a fluidez do conjunto encrava pontualmente, redundando num registo global menos monolítico do que se esperaria. Ainda assim, Amputechture capta as matérias essenciais dos Mars Volta e, só por isso, seria sempre uma escuta compensatória. A recompensa é que não é a esplêndida filigrana do costume.

sexta-feira, 15 de setembro de 2006

Kieran Hebden & Steve Reid - The Exchange Session, Vols. 1 & 2

Apreciação final: 6/10 (Vol. 1)
7/10 (Vol. 2)

Edição: Domino Records,
Março 2006 (Vol. 1)
Junho 2006 (Vol. 2)

Género: Música Improvisada



Sorver música com o esteio experimental dos volumes The Exchange Session não é assunto universal, ou não fosse o vanguardismo uma escola pouco estimada pelas massas, normalmente partidárias dos géneros de consumo directo. Orquestrações com olhos postos na incerteza das épocas vindouras são, as mais das vezes, produtos proscritos ou, por pura condescendência de mentes mais irrequietas e curiosas, espécimes consagrados a pequenos nichos de melómanos. Não é que o futuro não espicace o sujeito regular, antes lhe interessa o cómodo lucro de escutar música presente, sem ousar a previsão de conjecturas do amanhã. A esses, a pesquisa visionária de Kieran Hebden e Steven Reid pouco dirá. Aos outros, para melhor entenderem a lavra audaz destes músicos, talvez se imponha um breve resenha do seu trajecto.

O inglês Kieran Hebden foi um teenager rockeiro, admirador das sentenças de Hendrix e dos Led Zeppelin, e estreou-se nas lides musicais nos Fridge, trupe de rascunhos lo-fi, um registo musical díspar do seu projecto mais ilustre, o pseudónimo Four Tet, exímio laboratório de divagação electrónica. Já Steve Reid, inventor de outra geração, subscreve causas diferentes. Reputado produtor e percussionista jazz, conta centos de gravações, algumas delas como parte da comitiva de amigos célebre como Miles Davis, Dexter Gordon, Sun Ra, Archie Shepp, Fela Kuti e James Brown. Feito o obséquio das apresentações, retenhamos a atenção no porte da música.

Repartida em dois volumes, a série The Exchange Session é uma sociedade de sons pautada pelo improviso. Gravadas ao vivo, as peças não permitem mais do que animações em tempo real à orgânica de Hebden, assim compelido a seguir a escolta percussiva de Reid. Efectivamente, é a percussão que dá o mote, marcando o pulso e regendo o compasso, mas isso não esfria a detonação erudita de ruídos e samples, num ímpeto pouco domesticável. Hebden fica sem âncora e, curiosamente, a sua música adquire, na interacção com Reid, outra cinética, com margem para contorcionismos e excentricidades não escutadas na assinatura Four Tet. Depois, a parcimónia de Reid reduz a percussão à sobriedade groove mais solúvel com as megalomanias pós-industriais de Hebden, excepção feita a alguns címbalos mais calorosos, amplificação que em nada encurta o plano lacónico de Reid, por oposição à incontinência quase lunática de Hebden. Como se fossem irmãos coevos de Dr. Jekyll e Mr. Hyde. O entrosamento e as modulações são superlativos, especialmente tendo em conta que estes são os primeiros trabalhos deste par. Pode chamar-se a isto jazz livre ou futurista, no encalço dos esboços dos Spring Heel Jack, embora aqui se adensem as expressões sintéticas do fantástico e se almejem horizontes menos rigorosos: os filões de música anti-probabilidades, deformadora das estruturas convencionais e plena de inventividade.

Com sinergias mais vincadas, as construções de Vol. 2 mostram melhor fluência sequencial e, com isso, acercam-se de um auge incerto (para os próprios músicos), zénite esse que fica um tanto distante em Vol. 1, tomo mais prolixo e, consequentemente, de estruturas mais difusas. Ainda assim, o referencial dos dois volumes é muito semelhante e baseia-se numa lógica de progressão em transgressão, o que é o mesmo que dizer crescimento sem regra. E, vistas (e ouvidas) bem as coisas, a colecção The Exchange Session é uma generosa propaganda da música improvisada, a cargo de dois músicos destros nas suas artes e que encontram, melhor ou pior, calhas comuns nas atipicidades do jazz e da electrónica.


quinta-feira, 14 de setembro de 2006

Guillemots - Trough the Windowpane

Apreciação final: 8/10
Edição: Polydor, Julho 2006
Género: Pop Erudita/Indie Pop
Sítio Oficial: www.guillemots.com








A pop britânica está ao rubro. Goste-se ou não das suas diversas cambiantes, desde os massificados Coldplay e Keane, à vizinhança rock dos Franz Ferdinand e Arctic Monkeys, a verdade é que o género experimenta uma projecção mediática assinalável no Reino Unido e além-fronteiras. É neste frenesi que surgem os Guillemots (lê-se Gui-Li-Móts), quarteto sediado na inspiradora Londres mas com elementos de quatro países diferentes (um percussionista canadiano, Greig Stewart (aka Rican Caol), uma contrabaixista escocesa, Aristazabal Hawkes, um guitarrista brasileiro, MC Lorde Magrão, e um pianista clássico inglês, o vocalista Fyfe Dangerfield), com uma proposta vincadamente distinta da corrente dominante, a inventar uma pop com caprichos de experimentação, sem transbordar para o dislate, e com um diâmetro instrumental vago e amplo. Se a nível vocal o disco não firma tão declaradamente a diferença para os conterrâneos, a porção instrumental não consente objecções: estamos perante uma pop maior, de arranjos menos convencionais e ângulos expansivos, de medidas maiúsculas e imprevistas, de mutações que não estancam e que atravessam o tempo sem decreto. Como se se harmonizassem a bela modéstia do trovador Nick Drake e o lustre dos Radiohead, as subversões de David Sylvian e o sobressalto electro dos primórdios dos Soft Cell, o espectro dos Talk Talk e os adornos dos Divine Comedy, a intuição de Rufus Wainwright e a elegância de Elvis Costello, a espessura de Wagner e a exaltação dos Sparks, o pragmatismo de Brahms e o R&B dos 60's, o enigma cerebral dos Residents e o culto ecléctico de Dvorak, os alicerces de Sakamoto e os sabores brasileiros.

A fartura de substâncias de Through the Windowpane é abissal; cada trecho do álbum enche-se de estímulos simultâneos, em alvoroço sensorial único, cada qual com o seu tom e ambiente justo, a dose certa de experimentalismo e devaneio e, acima de tudo, a transcendência de evitar lugares comuns. E não há vulgaridade nos hinos deste disco, as peças são mais do que canções, aventuram-se num infinito sem falhas e denunciam cores novas. E neste dédalo de influências e intenções, espanta a destreza dos Guillemots em não malbaratarem ideias e manterem um equilíbrio raro. Não há desperdícios nem saturações em Through the Windowpane, seguramente um dos melhores discos de estreia dos últimos tempos e obra a figurar nos catálogos best of de 2006. Grandioso e idealista, o disco é uma crível sinfonia pop, uma glosa musicada sobre a inevitável temática do amor que não se rebaixa à lamechice e é ministrada com a excelência e alcance instrumental de que a pop escassamente tira partido.

quarta-feira, 13 de setembro de 2006

O último filme que vi - Carros

Já não é notícia original dizer-se que a Pixar - recentemente adquirida pela Disney - é, hoje, o estúdio de animação com maior reputação, por força do grau das fitas produzidas nos últimos anos (o par de filmes Toy Story, Monstros & Cia., À Procura de Nemo e The Incredibles - Os Super Heróis são alguns exemplos). No título mais recente, Carros, o universo dos campeonatos NASCAR americanos, aqui servido por bólides animados, é o mote cénico, numa narrativa centrada na personagem do arrogante speedster Lightning McQueen (delicioso alvitre a Steve McQueen, também ele um entusiasta dos motores). Quando as desventuras do destino o levam à erma metrópole de Radiator Springs, urbe saudosa do rebuliço de outrora, dos tempos antes do advento da via rápida que a subtraiu às rotas dominantes, McQueen vai aprender uma profunda lição de humanidade e de valores. A expressão animada dos caracteres do filme tem a plausibilidade do costume na Pixar, ajudando à definição da densidade dramática das personagens e da consistência rítmica da história. É aí, como noutros momentos destes autores, que Carros vai além dos produtos concorrentes neste género, fazendo-nos crer que, por verosímil analogia, no lugar destes carros que falam e se comovem, podiam estar seres humanos de carne e osso. E estão cá, na versão original, as vozes de Owen Wilson, Paul Newman, do comediante redneck Larry the Cable Guy e Bonnie Hunt.

Apreciação no espaço de cinema do apARTES. Clique aqui ou no link na margem esquerda do blog.

terça-feira, 12 de setembro de 2006

Agalloch - Ashes Against the Grain

Apreciação final: 8/10
Edição: The End Records, Agosto 2006
Género: Metal Experimental/Doom/Pós-Metal
Sítio Oficial: www.agalloch.org








Embora seja sucessivamente colada por terceiros aos rótulos do orbe do metal americano, a música dos Agalloch é um exemplo da transcendência de géneros. Se pode considerar-se o black metal como a doutrina-mãe, sobretudo nos contextos líricos do disco, nos métodos intrínsecos à composição e no registo vocal, Ashes Against the Grain vai um pouco além disso, seguindo o mesmo trilho do antecessor, editado há quatro anos. As matérias do vernáculo death - menos assíduas neste álbum, assim como a voz - são apenas uma contingência, uma superlativa adição a um fraseado melódico que reproduz encadeamentos rítmicos muito próximos do rock progressivo, umas vezes, do pós-rock de feição meditativa (chegam a lembrar os Mogwai), noutros momentos. Dessa mescla substancialmente versátil irrompem atmosferas de tons melancólicos ambivalentes, ora propiciados pela bonomia de uma guitarra acústica (solução nobre na alternância das compleições do disco, mais astutamente utilizada do que no passado), ora arremessados com o viço das distorções. Em qualquer dos rumos, Ashes Against the Grain alude a cenários turvos e de palpitações frias, florestas geladas e animais de cristal, almas caducas e desalento. O som é espesso e perturbante ao primeiro contacto, mas cresce com sublimidade, num ritual de experiências repetidas que se torna sacramental. É essa a demanda destes quatro cavaleiros do apocalipse que, percorrendo nas suas montadas as ruínas de um mundo descrente, se tornam apóstolos da bondade negra do caos. E musicam-na como poucos, galgando fronteiras e preconceitos, e dando corpo a uma nova ordem metal, sem cobiçar o vanguardismo derradeiro, sem ampliar pretensiosismos técnicos e sem agudizar ímpetos.

Prosseguindo a epopeia evolutiva de anunciar novos espaços para a expansão do metal, os Agalloch ergueram outro épico numa jornada encetada há cerca de uma década. Ashes Against the Grain denota algumas mutações no som do quarteto de Portland, mormente na diversidade de palatos sonoros reunidos com pertinência acrescida, e acaba por ser o trabalho mais ambicioso de uma banda de fina estirpe, servida por músicos virtuosos. E faça-se aqui o competente desengano: Ashes Against the Grain será arrumado nas estantes do metal dos retalhistas, mas dentro do receptáculo do disco compacto está uma obra pouco menos do que majestosa e de génio precursor, bem além da esfera do metal comum e que é digna de ser achada por todos aqueles de espírito amigo do imprevisto.

domingo, 10 de setembro de 2006

I'm From Barcelona - Let Me Introduce You to My Friends

Apreciação final: 7/10
Edição: Virgin, Maio 2006
Género: Indie Pop
Sítio Oficial: www.imfrombarcelona.com








O baptismo é um simpático logro deste numeroso grupo de músicos. Ao invés de terem despontado em terras da Catalunha, estes 29 aliados vêm da distante Suécia, da sulista terrinha de Jönköping, nas margens do segundo maior lago do território sueco, sítio de singular actividade piscatória. Pescadores ou não, os I'm From Barcelona são responsáveis, no primeiro longa duração da carreira, por um dos lances mais oportunos da pop veraneante deste ano. De uma trupe desta dimensão podemos contar com uma amplitude instrumental (e vocal) não muito ouvida na vaga corrente da pop; os trechos musicais tocam ambientes tão festivos que quase roçam a inocência melódica (elogio!), não por inaptidão técnica dos intervenientes mas pela simplicidade estrutural, algo que remotamente traz à memória a sintaxe básica de uns Beach Boys. Depois, além de vários estratos instrumentais ordenados com elegância, desde cordofones a acordeões, a sintetizadores e kazoos, ainda xilofones e sopros, a especulação vocal é sublime, sempre em volta de Emanuel Lundgren, o cabecilha da pândega, com coros devidamente hierarquizados a delinearem harmonias tão amigas do ouvido que roubam a alma do disco. É assim que o desfile de canções de Let Me Introduce You to My Friends contagia o menos atento dos tímpanos, especialmente na regra do refrão em júbilo que, irresistivelmente, desperta o desejo de soltar a voz, por mais dissonante que seja, e juntá-la à celebração desta assembleia de amigos.

A folia é a estampa sónica dos I'm From Barcelona. Eles não aspiram a re-inventar a roda nem a tirar a terra da sua órbita original, antes concebem um plano despretensioso (até infantil, nas letras e na música) para entreter. E, nesse fim entusiasta, sucedem a toda a linha. Let Me Introduce You to My Friends pode não ser um produto artístico essencial, nem seria esse o seu desígnio primeiro, mas é um tomo de diversão segura. E agora que o verão se desvanece e o termómetro arrefece, nada melhor do que reter um pedacinho dessa energia fugidia do estio, dar asas à puerilidade de uma boa festança e cantar de pulmão cheio. Aqui, em Jönköping ou em Barcelona, a festa dos I'm From Barcelona é de quem nela entrar.

sábado, 9 de setembro de 2006

Woven Hand - Mosaic

Apreciação final: 7/10
Edição: Glitterhouse/AnAnAnA, Agosto 2006
Género: Folk Alternativo/Experimental/Espiritual
Sítio Oficial: www.wovenhand.net








Distanciando-se gradualmente das fantasias e dos caprichos country incomuns dos 16 Horsepower, colectivo de Denver que governou desde a década de 90, David Eugene Edwards encontrou no alter ego solitário Woven Hand (em palavras lusas, o rótulo significa "mãos juntas em oração") a contextura útil para converter a sua música à doutrina de misticismo espiritual que, se era decifrada subliminarmente nos 16 Horsepower, aqui é apregoada com arrepiante generosidade. Não é estranha a esse facto a devoção cristã de Edwards, não fosse ele descendente de um pregador da Ireja do Nazareno, culto de impressão protestante de origem no sul da América. O quarto registo do projecto Woven Hand prolonga os atalhos de espiritualidade e os enigmas escuros dos antecessores, desembrulhando os atributos de temperamento religioso em sucessivas camadas de música espectral, como num renque de preces fantasmáticas do oculto, sentidas e viscerais. Assim é Mosaic, sem os louvores e aplausos em uníssono dos sons gospel, antes a profissão de fé de um eremita (Edwards é-o cada vez mais, pelo menos na apologia da contrição do vício humano) que, ciente da transitória natureza do sopro da vida, modestamente se posta perante a divindade para abrir o espírito em confissão. A música consagrada a este acto intangível é, como não podia deixar de ser, íntima e pouco expansiva, típica de Woven Hand, com estruturas simples e introvertidas, ora gravadas a guitarra ora com o auxílio de violinos, de nervo folk-country-gótico e saibo medieval. Ingrediente novo em Mosaic: as emendas de música celta (em revisão psicadélica) no final da inquietante "Slota Prow - Full Armour".

O cerimonial de Mosaic é nocturno e escatológico mas não chega a ser extemporâneo, não fossem estes desígnios teológicos coisa suficiente para meditar. Edwards é crente mas não faz do álbum um manifesto sectário, antes nos guia pelas suas reflexões e apelos, invocando repetidamente despiques maniqueístas, a sedução do mal vs. a resistência do bem (a profecia assombrada de "Elktooth" por oposição à bucólica "Whistling Girl"). Musicalmente, Mosaic não se desvia do cunho idiossincrático de Edwards, nem soma matérias originais ao seu cancioneiro. Mas esta é a música dos filhos de um Deus menor, daqueles que, desterrados do abrigo divino, acham a redenção nas sombras e na reverência obstinada da oração, em espera das graças da divindade. Edwards é um deles e reza, connosco, de mãos juntas.

quarta-feira, 6 de setembro de 2006

O último filme que vi - O Sentinela

Mais um blockbuster nascido do lastro de obsessão securitária que confiscou o espírito colectivo americano na ressaca dos atentados de 11 de Setembro, o filme retrata uma conspiração de intenções homicidas do presidente americano e os jogos de poder e traição dos serviços secretos. Tomando o capital simbólico que a série televisiva 24 trouxe a Kiefer Sutherland - que neste filme acrescenta a gravata ao inexorável Jack Bauer - e juntando-lhe um discreto Michael Douglas, na pele de um condecorado agente, a fita desenrola-se na dinâmica normal de produtos deste género, também com a insipidez de um argumento decalcado de outros filmes. Um pormenor: o lamentável erro de sintaxe do título da versão portuguesa. Alguém se esqueceu do género do substantivo sentinela.


Apreciação no espaço de cinema do apARTES. Clique aqui ou no link na margem esquerda do blog.

Oneida - Happy New Year


Apreciação final: 7/10
Edição: Jagjaguwar, Julho 2006
Género: Pós-Rock/Experimental/Psicadélico
Sítio Oficial: www.enemyhogs.com








Tal como o cineasta e comediante Woody Allen, também oriundo de Brooklyn, dispersou com astúcia pela sua obra as inúmeras faces da Grande Maçã, esculpindo nas suas fitas caracteres activamente cosmopolitas, rebentos fidedignos de uma cidade global e nervosa, quase sempre neuróticos e instáveis, autocríticos e comiseradores, os conterrâneos Oneida especulam musicalmente sobre a mesma metrópole. Sente-se na música deste trio nova-iorquino uma pouco civilizada pugna de géneros, de onde é oriundo um dínamo incatalogável de partículas energéticas, como uma fusão de genes de múltipla personalidade, de cultos vários e abertura de espírito a níveis máximos. É essa a semente com que Nova Iorque fecundou a música destes três indomáveis, dando-lhes a intrepidez para afrontarem qualquer regra padronizada da indústria musical e para não fazerem caso das famílias musicais instituídas mas, ao invés, terem o desaforo de amalgamar tudo, aparentemente sem ordens de qualquer espécie e sem o espartilho de formatações pré-definidas. Para os Oneida, cada peça musical é reprodução prática de experiências sonoras fora da lei, de ensaios anormais com as mais variadas matérias, desde o rock académico ao noise mais castiço, das nuances psicadélicas à volubilidade do experimentalismo, dos fetiches retro às alucinações vanguardistas, do ensejo artístico ao contorcionismo instrumental. Com eclectismo ou excentricidade criativa, a verdade é que o som dos Oneida é singular, preciso na construção de um caos arrebatador, um retrato anti-sinfónico da esquizofrenia nova-iorquina, necessariamente retalhado, inconsistente, complexo, agridoce.

Happy New Year, oitavo fascículo do percurso dos Oneida, segue o rasto dos antecessores e aventa fórmulas alternativas para o amanhã da folk americana, dando continuidade às proezas precursoras de Scott Walker, embora com diferente subtileza. Se Walker reinventa a canção na configuração, baralhando as matrizes estruturais e os protótipos vocais, os Oneida adicionam excentricidade instrumental, músculo sem freios e infracção ruidosa. Talvez não seja este o disco para os catapultar para a visibilidade merecida mas o carácter visionário dos Oneida permanece impoluto, descomprometido e livre, rumo ao deslumbramento de um mini-cosmos confuso que, por fim, sempre esteve latente na cidade que não dorme. Assim cantava Sinatra e assim filmou Allen. Os Oneida unem esforços para que ninguém adormeça.

terça-feira, 5 de setembro de 2006

Ms. John Soda - Notes and the Like

Apreciação final: 5/10
Edição: Morr Music, Abril 2006
Género: Electrónica Alternativa/Pop Alternativa
Sítio Oficial: www.msjohnsoda.de








Micha Acher é um baixista em voga na Alemanha. Além de fazer parte de um dos expoentes do pós-rock minimalista europeu, os consagrados Notwist, ainda integra o projecto Tied and Tickled Trio, ensemble com uma reforçada feição experimental e vanguardista. Em ambos os casos, mormente nos Notwist (onde Micha divide o protagonismo criativo com o irmão, Markus), a crítica tem reconhecido paulatinamente um punhado de edições valiosas que somaram valores aos dotes da indie de cariz electrónico da Europa Ocidental, culminando numa inesperada reunião com alguns músicos da label americana Anticon, entre outros o versátil Doseone (cLOUDDEAD) e no competente álbum 13 & God (2005), título que baptizaria também o projecto musical conjunto. Ainda sem esse peso mediático, o side-project Ms. John Soda, que Micha Acher partilha com a teclista Stephanie Böhm (dos também berlinenses Couch, com disco novo já lançado em 2006) vai ainda no segundo longa duração. Como decorre do background dos músicos, o item principal da ementa é electro, num registo sonoro de inequívocas alusões à escola berlinense, colocada aqui em obséquio a canções pop. Porque é de pop que se trata, não a pop de chiclete na boca e mão no bolso, mas a pop organicamente rica, sem dislates, orgulhosa da sua condição cosmopolita e dos favores da era digital e da programação. O laptop é o melhor amigo do músico berlinense, disso não sobram dúvidas. A forçosa sobreposição de camadas sonoras, como convém ao bom estilo alemão, também se nota aqui, ainda que nem sempre se discirna o proveito de algumas substâncias para o produto final. Mesmo que a intercalação de tais superfluidades com instantes bem executados seja uma adulteração da soma final, as melodias guardam uma réstia de sedução e são tão poppy quanto podem ser sem soar lamechas.

Se tecnicamente Notes and the Like perfilha dos princípios básicos que se vaticinariam nestes intérpretes antes de escutar o disco, o mesmo não pode ser dito do arrojo. Além dos desajustes já mencionados, os arranjos de cordas que adornam alguns trechos, mais não fazem do que traçar linhas previsíveis, manifestamente em serviço mínimo, muito aquém do uso próprio que conviria à melancolia que supostamente insinuam; as incertezas vocais de Stephanie Böhm, se povoam bem os lugares ritmados do disco, sublinhando um toque de sensualidade, deslustram um pouco quando se abeiram do monótono registo falado. As texturas electro são o deus ex machina do álbum, fazendo crer que Notes and the Like (com a excepção de "Hands" e, quiçá, de "Scan the Ways" ou "Line by Line") teria tudo a ganhar em deixar cair a voz e resumir-se ao que estes autores fazem melhor. Contudo, mesmo disciplinando os órgãos auditivos para fazerem de conta que a voz de Böhm não está lá, não se avistam muitas porções de som que valha a pena escutar senão por cortesia.

segunda-feira, 4 de setembro de 2006

O último filme que vi - A Casa Fantasma

A nova fita animada da Sony gira em torno de três teenagers, um vizinho muito mal humorado e uma casa assombrada. Entretenimento garantido para toda a família com muitos sustos e gargalhadas para os mais pequenos. Tecnicamente, o filme está servido por animações do melhor quilate técnico, cheias de realismo e verosimilhança e por um argumento que encaixa bem no imaginário infantil, ainda que não ofereça ingredientes novos ao género.

Apreciação no espaço de cinema do apARTES. Clique aqui ou no link na margem esquerda do blog.

Built to Spill - You in Reverse

Apreciação final: 8/10
Edição: Warner, Abril 2006
Género: Indie Rock
Sítio Oficial: www.builttospill.com








Há cinco anos que Doug Martsch e companhia não davam notícias. Os Built to Spill chegam ao sétimo registo de um percurso com muito bom gosto como um dos mais consistentes projectos da indie guitarreira americana. Há qualquer coisa do legado mítico de Neil Young nestas canções, ainda que a coisa se molde menos óbvia quando se espreitam as peripécias técnicas de guitarra que alimentam as manobras emocionais de You in Reverse. Aí, onde a guitarra se veste de sujeito determinante, sentem-se brisas da época dourada dos Pavement ou dos Pixies, sobem os volts e levam com eles a vibração do disco. A melodia não é descurada, antes se completa na efervescência escura das guitarras e no revérbero que enche o som dos Built to Spill, em torno de baladas rock, pequenos poemas sombrios cunhados com distorções mais ou menos tímidas. Raros são os álbuns que nos brindam com tamanha versatilidade no serviço da guitarra, expondo-lhe os diversos ângulos, a disposição flutuante, os solos em espiral, o magnetismo das expansões súbitas, como se as sessões de gravação mais não fossem do que uma trivial jam session. Em You in Reverse volta a ser notória, depois do fracassado Ancient Melodies of the Future (2001), essa paixão do quarteto do Idaho pelo virtuosismo técnico, especialmente na química inventiva que Martsch investe nas seis cordas da guitarra. A voz chega a parecer um simples acessório, não por estar a mais ou por soar inconsequente, mas porque a guitarra puxa para si os focos e agarra os tímpanos, (re)construindo a estrutura das canções, dando-lhes cor, vida e imprevisibilidade. Talvez por isso os trechos de You in Reverse quase pareçam infinitos, por pousarem nos ecos da ressonância da guitarra, a mais útil ponte para dimensões sem limites, mundos que perduram depois do fim do disco. O rock carnal à mercê do sonho.

Da competência de Martsch com a guitarra já tudo foi escrito e dito. You in Reverse é, nesse capítulo, exemplar. Ainda que num ou noutro momento se detecte um desalinho na exploração livre da guitarra, em detrimento da fixação mais firme de certas melodias, o álbum é um manifesto de maturidade, não tão triunfal como se supõe nas primeiras audições mas, mesmo sem trazer matérias novas ao catálogo dos Built to Spill, é suficientemente refinador e cuidado para reclamar a cortesia do universo indie à guitarra. Não foi à toa que neste artigo se usou a palavra guitarra mais de uma dezena de vezes. Afinal o que seria do rock (e dos Built to Spill) sem ela?

domingo, 3 de setembro de 2006

Killing Joke - Hosannas From the Basements of Hell

Apreciação final: 7/10
Edição: Cooking Vinyl, Abril 2006
Género: Metal Alternativo/Industrial/Doom
Sítio Oficial: www.killingjoke.com








Eles já andam neste ofício vai para trinta anos e, se bem que não tenha sobressaído manifestamente o sub-género do rock mais pesado que subscrevem, a verdade é que conquistaram, de pleno direito, um estatuto particular no seio do cosmos metálico, mormente pela influência que trouxeram à vaga pós-punk do final da década de 70, deixando pistas que seriam seguidas pela geração X (bandas grunge como os Nirvana, os Screaming Tress, os Soundgarden e os Mudhoney usaram algumas das praxes dos Killing Joke) ou por outras derivações do hard rock mais industrial (os Melvins ou os Ministry, por exemplo). Com um começo de carreira apadrinhado por John Peel e pautado por composições urgentes e mais próximas dos padrões do punk, de cadências galopantes (algo que ainda se sente nos tomos mais recentes), sistemas harmónicos primitivos e distorção a rodos, estes intrépidos britânicos foram crescendo para um registo com maiores obrigações técnicas e um compromisso artístico superior, por vezes assemelhado a um parente da escola progressiva, mas sem exacerbar divagações melódicas, antes buscando um transe feito de equações industriais e andamentos quase tribais. O cérebro é vital no metal dos Killing Joke, nada soa a despropósito, a dinâmica das guitarras é modelar e magnetizante (não chega a ser dançável?), a voz estentórea mantém-se, a percussão é nobre e a disposição das peças ajusta-se bem ao património do grupo. De facto, depois dos esboços menos bem esgalhados do álbum anterior (Killing Joke (2003)), onde o som parecia fazer concessões às proposições mais recentes do metal alternativo, Hosannas From the Basements of Hell é um inteligente retorno àquilo que os Killing Joke melhor fazem e que os distingue dos demais: rock negro e industrial com precisão mecânica e a induzir estímulos sensoriais que, além de agitar tímpanos, nos exportam para cenários apocalípticos gigantes, ecossistemas surreais de criaturas desfiguradas. Majestosas metáforas de uma existência com fúria no carburador.

O press release do álbum faz menção especial a um facto com relevo histórico. Matt Lusardi, o mesmo engenheiro de som das primeiras gravações dos Killing Joke, é o homem da produção no novo álbum. Mais do que prosseguir (e perseguir) a glória do passado, Hosannas From the Basements of Hell, não sendo um trabalho de rupturas inovadoras, é a prova de que os Killing Joke continuam a ser artífices capazes de acrescentar substâncias válidas à sua dotação e, com isso, consertar a aura do metal dos desarranjos do tempo e dar-lhe aquele extra que só está ao alcance dos decanos da classe.