sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Putas Bêbadas - Jovem Excelso Happy


8,0/10
Cafetra Records, 2013

Já se tinha percebido que a Cafetra se viria a tornar um genuíno antro de delinquência musical, um espaço editorial que acolheria algumas das mais desafiantes expressões artísticas do panorama nacional. Em sensivelmente cinco anos desde a sua criação, a etiqueta atirou aos leões projectos musicais que, noutros tempos, dificilmente veriam reconhecida a sua libertinagem estética, o inconformismo e a predisposição para derrubar preconceitos. O caso do quarteto Putas Bêbadas tornou-se emblemático da filosofia editorial do selo lisboeta, sobretudo por tratar-se de um projecto surgido das sinergias entre os elementos mais desvairados do roster da Cafetra. Miguel Abras (voz, baixo), João Dória (o Nória, guitarra d' Os Passos em Volta), Hugo Cortez (guitarra dos Kimo Ameba) e Leonardo Bindilatti (bateria, também dos Kimo Ameba) são nomes a reter para o futuro próximo, especialmente depois do inesperado reconhecimento de Julian Cope, um dos insignes senadores do mundo alternativo que certamente voltará holofotes internacionais para as trupes doidivanas da Cafetra. E para este Jovem Excelso Happy, primeiro exercício do quarteto.

Trata-se de um disco formalmente desarrumado, ainda que assente num extremismo punk imediatamente percebido no galope de percussões e guitarras e na urgência dos trechos. Mas é muito mais do que isso. Além de uma noção de construção que tem mais afinidades com o caos do que com quaisquer amarras conceptuais - a título de exemplo, ouça-se a esquizofrenia rítmica, o acelera-desacelera de "Abras" -, há lugar para ruído corrosivo, seja nas distorções ou no feedback sem bússola. A voz faz-se matéria psicadélica, vem camuflada atrás de inúmeras fantasias de estúdio, em linha com o ambiente "sujo" e de baixa fidelidade que norteia o disco (e é comum ao catálogo da Cafetra). E quando a irreverência natural de quem faz música simplesmente porque sim se confunde com incontinência (no sentido de absoluto e delirante desgoverno) dificilmente deixaria de tornar-se uma de duas coisas: infantilidade ou cacofonia. E, em boa verdade, Jovem Excelso Happy - porque é deliciosamente imprudente - tem o melhor das duas coisas. É (intencionalmente) pueril na aspereza da produção, mais interessada em expôr impurezas e dar-lhes tribuna do que em tapá-las, e é cacofónico nas ingerências do ruído, no abuso das distorções e até na relação transgressiva entre os vários conteúdos instrumentais. No fundo, é um disco primoroso nas suas entropias e imperfeições (que se chegue à frente o primeiro que perceber as letras todas do disco) e faz prova de que há no burgo gente capaz de rasgos de criatividade tão lunática que é impossível ficar indiferente, ame-se ou odeie-se. Não é um conselho que se dê aos filhos, mas vamos seguir estas putas, bêbadas ou não, estejam onde estiverem!

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quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Blood Orange - Cupid Deluxe


7,5/10
Domino, 2013

Mesmo tendo tido um papel nada despiciendo na cena musical britânica dos últimos anos, sobretudo em razão dos serviços de escrita prestados a gente como Chemical Brothers, Basement Jaxx ou Florence and the Machine, Devonté Hynes não granjeou ainda a afirmação a título próprio que muitos lhe antecipavam há anos. Apesar disso, a assinatura dele tem revelado impressionante ubiquidade, seja em bandas-sonoras, seja em livros ou seja nas (mais habituais) colaborações com artistas de reconhecido calibre mediático. A título de exemplo, fez recentemente furor a confissão pública, no Twitter, de que nenhuma das suas criações para o disco de Britney Spears (a lançar nos próximos dias) faria parte do alinhamento final. Seja como for, com o heterónimo indie-pop Lightspeed Champion em hibernação há sensivelmente três anos, Hynes deitou mãos à continuidade do seu alterego mais new wave/soul/funk, de que não havia novidades desde o debute discográfico, no Verão de 2011.

Da sua escrita, sempre se soube ser um reflexo humanista e relativamente cru de experiências pessoais em que o denominador comum é a angústia de um desfavorecido, de alguém que era frequentemente maltratado na escola e que cresceu envolto na desigualdade social e no lado mau da vida. Não surpreende, portanto, que este Cupid Deluxe se dimensione em volta desses princípios de consciência social e verse o submundo dos desalojados dos subúrbios de Nova Iorque, mormente o fenómeno crescente da prostituição gay e transgénero.

Tecnicamente, o álbum não se limita a recalcar as pisadas do antecessor Coastal Grooves, indo mais longe no privilégio das  electrónicas enquanto matéria soul/funk. Claro que essa investida abre a paleta a orientações de várias escolas, perdendo-se um pouco o norte estético do registo. A despeito disso, a profusão de contributos vocais e técnicos introduz uma dinâmica interessante. Do elenco fazem parte David Longstreth (Dirty Projectors), Adam Bainbridge (Kindness), Mike Volpe (produtor que assina como Clams Casino), o rapper Despot, Samantha Urbani (Friends), Skepta, Caroline Polachek (Chairlift), entre outros. Muita gente, como conviria a uma mente aberta (e ecléctica) como a de Hynes. E, bem vistas as coisas, a aparente vagueza do disco não é sinónimo de desleixo, nem sequer de falta de rumo. Nesta viagem de Cupid Deluxe não é sequer o destino que importa; o trajecto, esse sim, mesmo que vacilante, é a recompensa. Vale a pena fazer trinta por uma linha para chegar a boas canções pop.
 
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segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Pharmakon - Abandon


7,8/10
Sacred Bones, 2013

O grito agudo que inaugura a audição do álbum não deixa dúvidas sobre a expressão artística extrema que se segue. É efectivamente o extremismo noise o terreno sónico em que se move o projecto Pharmakon, espaço sinuoso da nova-iorquina Margaret Chardiet. Isso nem é novidade para quem já conhecia os seus rituais de palco em que, qual fantasma abandonado entre fumos e máquinas, se rende a possessões estranhamente serenas, levando-as para o meio do público, olhos nos olhos, como se buscasse o exílio da demonização que transporta na voz agonizante. É assim mesmo a implosão musical de Chardiet, uma massa densa de diatribes vocais, ruídos em loop e feedback e com aportes claros da música industrial e de ambientes ácidos como os dos Wolf Eyes. Em essência, a proposta não é absolutamente inovadora, tem até tangências estéticas óbvias com o legado power electronics dos pioneiros Whitehouse, mas há em Abandon singularidades que importa esmiuçar.

Ao contrário de muitos produtos da órbita noise, mormente os de feição mais radical em que é comum perceber-se o apoio no improviso e no factor surpresa, Chardiet prefere, mesmo ao vivo, laborar em cima de certezas para firmar a agressão e o choque. O cuidado na temporização dos loops e na sua alternância é prova disso mesmo, assentando num formulismo quase "matemático". Esse trabalho de precisão funciona como um importantíssimo fio-de-prumo para a voz. Se não há surpresa nas texturas - o álbum seria terrivelmente "chato" se fosse instrumental -, é na exploração de um espectro invulgar de registos vocais que Chardiet marca pontos. Em suplício estridente ("Milkweed/It Hangs Heavy" e "Ache"), em preces apocalípticas à Diamanda Galás ("Pitted") ou atrás do Auto-Tune ("Crawling on Bruised Knees"), a voz é invariavelmente um portento de terror sulfúreo, capaz de resistir às montanhas de ruído, apoiada em conteúdos líricos obcecados com a atrofia corporal, a doença e a definhamento físico. Dir-se-ia que Pharmakon (e este Abandon) é produto da "insanidade" explícita de alguém que, aos vinte e dois anos, convive com o desassossego da autodescoberta e da revelação dos demónios que lhe lambem as  feridas. A catarse é tão agressiva e desgastante que se torna um sortilégio de arcanjo negro. Escutai, senti a dor sacrificial e vergai-vos, ó espíritos decadentes!

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sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Filho da Mãe - Cabeça


8,3/10
Edição de autor, 2013

Talvez seja a honestidade orgânica que apregoa, ou até a visceralidade emocional com que soa, a atrair, aqui e ali, músicos adestrados na electricidade para a guitarra acústica. Esse percurso de um universo sónico pautado pelo peso dos décibeis para a nudez orgânica do exercício músico/guitarra envolve uma depuração de espírito que não está ao alcance de qualquer protagonista. Além da reconversão técnica que evidentemente se impõe, no sentido de "tirar" da guitarra acústica a plenitude da sua expressão enquanto instrumento intrinsecamente minimalista, a transição para esse acto solitário depende de um apuradíssimo sentido de equilíbrio na composição e na definição harmónica. Essa condição sine qua none para a robustez do som acústico vem sendo devidamente ensaiada por Rui Carvalho, o homem por detrás do epíteto Filho da Mãe. O "estágio" no orbe tonitruante dos If Lucy Fell deu-lhe as ferramentas todas para, hoje, ter um entendimento cabal das valências e limites de electricidade e acústica e, sobretudo, de como ambas as linguagens se adequam a propósitos diferentes. Nesse particular, o primeiro tomo a solo (Palácio, 2011) demarcou fronteiras estéticas, estabelecendo o Filho da Mãe como uma verdadeira entidade acústica, embora ainda à procura de domar (ou recontextualizar) a acelerada sanha rock que lhe morava na medula.

Dois anos depois, Cabeça é um documento mais sereno, sem ser menos copioso em ideias. Mas não se pense que a aparente serenidade trouxe sangue frio à música de Rui Carvalho, é intensíssima a entrega ao instrumento, tanto nos momentos em que recorre à endiabrada ansiedade do antecessor e parece despejar o peso do mundo nas cordas da guitarra, como naqueles em que alinha com a brandura e nos guia a ambientes mais introspectivos. Em qualquer deles, a música de Cabeça torna-se o sobrevivente de um redemoinho de emoções ao rubro e em conflito entre si. Ao mesmo tempo, essa energia arfante (importada do rock?) é posta ao serviço de composições multidimensionais, ora próximas da alma musical genuinamente portuguesa (leia-se Carlos Paredes), ora voltadas para outras latitudes e influências (as cadências aceleradas do punk, os contrastes entre o silêncio e o drone e os loops como ajudantes, por exemplo). E é exactamente aí, na exigência da gestão dessa mistura, que se percebe o equilíbrio do disco e o crescimento da relação de Rui Carvalho com o discurso acústico. Tem Cabeça, é certo, mas é feita de ímpeto e coração. Que mais é preciso para arrebatar?

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terça-feira, 19 de novembro de 2013

Death Grips - Government Plates


8,5/10
Edição de autor, 2013

Desde a sua génese, o trio Death Grips parecia ter um encontro marcado com um destino iconoclasta, não apenas por estar assente numa formação aparentemente pouco convencional - dadas as proveniências estéticas dos integrantes -, mas sobretudo por não se anteciparem simbioses estéticas pacíficas entre os mesteres de cada um deles. Zach Hill é um terrorista da percussão (também produtor) que já trabalhou com meio mundo, de Mike Patton aos Hella, de Omar-Rodriguez Lopez aos Boredom;  Stefan "MC Ride" Burnett é um dos mais estrondeantes mic man do momento; Andy "Flatlander" Morin é um alquimista das teclas e da programação. Com premissas deste calibre e tendo em conta a militância intrépida do grupo em nome de causas mais ou menos "polémicas", todas a redundarem no combate ao preconceito, não admira que a música do trio de Sacramento já tenha merecido adjectivos e rótulos de toda a espécie, sempre em volta do ideário rap. Em boa verdade, a música que produzem continua a ser virtualmente inclassificável, mesmo depois de dois álbuns e algumas edições avulsas.

Na abordagem à paleta de sons deste Government Plates aconselha-se prudência, como não podia deixar de ser. É sabido que este trio é radical, gosta do confronto e do choque e verte essas afinidades na sua música. Música à parte de convenções, de preconceitos, de regras, de padrões. Alguém inspiradamente chamou a isto hip-hop satânico e se a definição peca é por defeito. Aqui há toneladas de sujidade electrónica, em várias formas e andamentos, percussões com cadências mutantes (entre o tecnho, a música industrial, o underground e outra coisa qualquer) e a voz panfletária, cortante. Tudo junto, é puro caos insano e devaneio de três mentes indiscutivelmente empenadas. E o destino bombástico cumpre-se na íntegra. E apetece dizer: Holy-fuckin'-shit! Is this what you're lookin' for, Kanye?


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sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Laurel Halo - Chance of Rain


8,3/10
Hyperdub, 2013

Antes do debute discográfico do ano transacto pela Hyperdub - o muito bem recebido Quarantine - Laurel Halo já havia acumulado episodicamente, em várias editoras e sob nomes diferentes (além do nome próprio ela também assinou como King Felix), uma quantidade razoável de gravações que engrossaram um currículo versado em múltiplas métricas do universo electrónico e que, apenas no primeiro álbum, encontrou a linguagem certa para unificar e dar coerência a essa disparidade de estímulos. Esse momento de afinação estética correspondeu, em concreto, à identificação de uma matriz sonora que "arrumou" a casa das máquinas de Halo e dispensou incongruências. A coisa tem justa sucessão neste Chance of Rain, novo atestado da mesmíssima esquizofrenia electrónica e da ciência desconstrutiva que se conheceu no antecessor. Como antes, embora estas matérias possam ser dançáveis, não estamos em presença de um disco feito para as pistas convencionais. Cada trecho resulta de uma relação pouco amistosa entre ritmo e texturas, em busca da improvável simbiose que há-de nascer da dissonância (escute-se o tema-título, por exemplo). Nesse sentido, Chance of Rain é um álbum de equilíbrios ténues: desafia-se a si mesmo em cada segundo, tentando obsessivamente encontrar os frágeis pontos de contacto entre esses dois mundos. Mas é essa aparente fragilidade, essa proximidade vertiginosa do caos completo e a sufocante percepção dessa curta distância para a cacofonia intragável, a sua força maior. Sentimo-nos seduzidos pela ruína anunciada na amálgama espessa de sons, o compasso faz-se disruptivo, os ritmos esbarram subitamente em gigantes paredes de som grave e esvaecem-se. Fogo-fátuo a brotar da negrura.

Mas Chance of Rain tem outro leitmotiv. É, também, um disco pressionado pela incerteza, onde não há lugar para formalismos estéticos (techno de vanguarda?, reverência kraut?, experimentalismo?, engodo de música ambiental?), nem definições melódicas. O jogo está em tentar adivinhar o que vem depois, qual a variação que se segue. Psicadelismo, pois claro, e sem esconjuro - Halo abre guerra ao ouvinte e não desperdiça munições no risco de extenuar quem escuta. A norte-americana não faz a coisa por menos, aponta descaradamente à disfuncionalidade e acerta na mouche, com sarcasmo. Afinal, música assim fragmentada e abrasiva é um puro exercício de tantalização, uma porta aberta para a miríade de prazeres roboticamente garatujados na mente, mas sem presença física. Um amor platónico.

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quinta-feira, 14 de novembro de 2013

The Astroboy - Flow My Tears


7,7/10
PAD, 2013

Fez-se consensual a assunção de que as linguagens mais especulativas do universo musical são electrónicas e esse paradigma foi construído sobretudo em razão de duas valências reconhecidas ao género: a elasticidade formal e a expressividade. De facto, a música electrónica - mormente aquela mais experimental - é, em certo sentido, um produto anárquico por excelência, ao permitir-se uma liberdade de forma sem paralelo na música convencional e, através dela, veicular códigos de som (e respectivas dimensões emocionais) que, não só desafiam a mente, como a expõem a cenários e enigmas. Esse pendor figurativo é, de resto, a justificação para o chavão "cinematográfico" muitas vezes colado a edições da electrónica de laboratório.

O rótulo deve ser usado com cautela quando se aborda o mundo de Luís Fernandes, o cérebro por detrás de The Astroboy. Resumir-se a proposta sonora do bracarense a esse nicho seria não perceber que, completado agora um quarteto de álbuns, aqui não mora simplicidade estrutural, tampouco o "melodismo" de amplitude larga como um ecrã de cinema. Flow My Tears não renuncia às repercussões cénicas que nascem dos sintetizadores, é claro, mas não é, de todo, esse tipo de música. Estamos em presença de uma obra que, além de inspirar-se na narrativa (e no cenário, lá está) futurista e claustrofóbica de Flow My Tears, the Policeman Said (Vazio Infinito, em Portugal), de Phillip K. Dick,  reflecte a maturação de um conceito sonoro que vem sendo trabalhado nos últimos anos e que explora habilmente a desmultiplicação dos sintetizadores no espaço e os conceitos de crescendo e redundância, com indisfarçáveis referências ao movimento da kosmiche musik (vide as participações de Hans-Joachim Roedelius, símbolo do experimentalismo germânico dos últimos quarenta anos, e dos seus Qluster no disco). Música abstracta, portanto. Nesse sentido, Flow My Tears é tão técnico quanto se esperaria e, por isso mesmo, nunca seria de absorção rápida. Além disso, é talvez o registo mais sombreado de Luís Fernandes, marcado por uma tensão pungente e necessariamente menos luminosa do que noutros trabalhos. E é nos ecos cósmicos do disco, nas planantes reverberações de cada um dos seus oito trechos que abstracção e introspecção confluem num delicado equilíbrio. O cosmo distópico de Phillip K. Dick está em boas mãos. Outra vez.

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sábado, 9 de novembro de 2013

Sky Ferreira - Night Time, My Time


7,4/10
Capitol, 2013

É um curioso statement de emancipação que uma personagem musical de tenros 21 anos diga que teve que debater-se pela integridade do som que imaginava para o seu disco de debute. A regra comum no universo pop é a de não cedência das oligarquias editoriais naquilo que se instituiu como o normativo de construção de um ícone e isso envolve, naturalmente, um certo condicionamento das suas opções estéticas. São as regras mercantilistas do mundo moderno e a elas não escapa a grandíssima maioria dos artistas sem estatuto no orbe musical e que optam por veicular a sua música nos canais "tradicionais" das majors. O caso da americana Sky Ferreira é excepção a essa regra; a jovem assinou contrato discográfico ainda na adolescência (aos 15 anos) e, de então para cá, dedicou-se à construção solitária de uma colecção considerável de canções que, agora, encontram resumo neste Night Time, My Time, depois de sucessivamente não passarem o crivo editorial, até este ano. No decurso deste processo de rejeições consecutivas, o facto de alguma da sua obra ter sido tornada pública, com algum êxito, na forma de singles  ou EPs, contribuiu para a manter sob os radares da crítica especializada e aguçar a curiosidade para a chegada do tão aguardado longa-duração. Com o mediatismo dos seus trabalhos de manequim e de alguns episódios embaraçosos com drogas estava lançada a controvérsia: estaríamos perante alguém que cabia no rótulo de músico ou apenas uma pseudo-estrela de expectativas goradas?

Agora que o disco está finalmente editado, percebe-se que não estamos em presença de uma proposta pop inteiramente convencional, no sentido de não abraçar o ideário contemporâneo. Assim se entende porque ela teve que defender este trabalho perante a desconfiança da Capitol. Há um fundo electrónico de sintetizadores oitentistas ("24 Hours" é exemplo emblemático desse pendor) a percorrer o alinhamento de uma ponta à outra e que insinua um certo anacronismo que, como é bom de ver, não encheu as medidas da editora. O que até já se adivinhava em "Everything is Embarassing", impactante single de 2012 (não presente no disco). Mas a coisa não se fecha nos sintetizadores; moram aqui indiscutíveis matérias pop-rock (ouçam-se "Omanko", a mais "deslocada" faixa do disco, "You're Not the One" ou "I Will") que apontam a outros horizontes estéticos. Uma nota para a produção que mergulha os momentos mais efusivos - e, portanto, mais próximos do resvalo para a banalidade - num curioso (e cheio) nevoeiro de sons que lhes acrescenta vigor, sem sufocar o registo vocal. Além disso, e como convém a um disco pop estão cá os indispensáveis instantes orelhudos, aqueles que supostamente virão a alimentar as tabelas de vendas. No final, sobram sensações mistas, a de se saudar o recurso a referências musicais interessantes, assim fintando a "chata" padronização da pop contemporânea e, também, a de perceber a mediania de alguns trechos. A exposição na capa, em fotografia do realizador argentino Gaspar Noé, também deu celeuma mas, bem vistas as coisas, atrás da aparente intenção de mostrar candura, o que se vê é apenas mais um capítulo da crescente (e dispensável) tendência das estrelas pop confundirem sensualidade com exibicionismo bacoco.

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sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Júlio Resende - Amália por Júlio Resende


7,3/10
Valentim de Carvalho, 2013

A aproximação recente do pianista Júlio Resende ao universo do fado, mormente na colaboração com alguns protagonistas do meio, fazia antever que, mais ou ter mais cedo, o músico se entregaria a um trabalho nessa estética. Para inaugurar esse percurso anunciado, Resende entendeu prestar um tributo ao riquíssimo legado de Amália Rodrigues e promoveu uma revisitação, na glória delicada do piano, de onze das suas mais emblemáticas canções. E é disso mesmo que se trata, de uma revisitação, uma vez que o intérprete não se coíbe de imprimir o cunho da sua linguagem musical, com ligeiras nuances de improviso que, sem melindrarem minimamente a integridade destas canções, lhes emprestam uma aura diferente na substância, mas não na carga emotiva. No fundo, a única forma de dar às notas de piano a intemporal intensidade vocal de Amália passaria por convertê-las no mais sentido exercício de devoção, tal como aqui se apresenta. Pôr o piano "a cantar" é um serviço de alma, de sentimento e, nesse particular, o disco é também um manifesto muito pessoal de Júlio Resende, uma expurgação da mais fina alma lusitana que mora na sua verve, tradicionalmente mais voltada para as especulações criativas do jazz. O melhor que pode dizer-se é que Amália por Júlio Resende não é uma intervenção revolucionária ou uma qualquer empreitada de reconstrução; desenganem-se aqueles que vêm à procura de um disco que vira do avesso um património musical "sagrado" como é o de Amália. O que mora nesta obra é, isso sim, o preito cortês de um músico que, nas sombras da memória e nas teclas do piano, se embrenhou nas memórias colectivas de Amália e se muniu da elegância do seu discurso para simplesmente dizer obrigado. E nós com ele.

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quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Matt Kivel - Double Exposure


7,9/10
Olde English Spelling Bee, 2013

Aparte alguns projectos experimentais em que esteve envolvido, o facto de ser filho de um actor de segunda linha (Barry Kivel) e de ter sido baixista em algumas bandas (Princeton, Sleeping Bags) e guitarrista noutra (Gap Dream), pouco se sabe sobre Matt Kivel. O rapaz vive em Los Angeles e estreia-se agora a título pessoal, recolhendo em disco dez temas compostos no último par de anos e que a crítica vem aproximando do legado de Nick Drake. Essa proximidade não é completamente descabida, sobretudo porque o pendor acústico e intimista deste Double Exposure reporta ao mesmo imaginário do britânico, embora servido num minimalismo de substâncias diferentes. Aqui, além do indispensável recurso aos dedilhados da guitarra acústica (o baixo dificilmente seria ingrediente primeiro), Kivel apoia-se em electrónicas ambientais que preenchem pontualmente o espaço do silêncio e constroem um elegantíssimo jogo de contrastes com a delicadeza acústica das canções. De resto, os arranjos (e a voz) são tão subtis que não maculam a belíssima fragilidade das composições e, mais do que isso, emprestam-lhes a leveza certa para planarem na mente. Num ou noutro instante, particularmente na peça instrumental "Kes" ou no tema-título, percebem-se devaneios psicadélicos que, mais do que surpreenderem no conceito, são um agradável acrescento ao conceito do disco, ao invés de soarem deslocados como teoricamente pareceriam. Pelo contrário, é a passagem por essas surpresas, também por pontuais elementos de contraste estético, que ajuda a situar melhor os ambientes emocionais que Matt Kivel aqui explora. Double Exposure é, em essência, um manifesto de serenidade, de alguém que esquadrinha sem assombro as várias dimensões do ente humano e encontra a paz de saber-se conformado consigo mesmo. E música assim, murmurada com esta fineza, deixa-nos a flutuar nas nossas próprias inquietações.

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terça-feira, 5 de novembro de 2013

Juana Molina - Wed 21


8,4/10
Crammed Discs, 2013

Apesar de se ter sido como comediante que se tornou figura mediática nas latitudes hispânicas da América Latina, Juana Molina vem trilhando um trajecto consistente nas lides musicais. Embora possa ser pouco mais do que uma incógnita para muitos, Molina completa agora um sexteto de compactos iniciado em 1996. Nessa colecção de discos, mesmo não tendo ainda erguido uma verdadeira obra-prima, a compositora e instrumentista desvendou uma sólida e curiosa relação com a invulgaridade. A música de Juana Molina não é convencional, nem sequer tenciona sê-lo. Buscando convergências orgânicas entre a música ambiental, as sugestões electrónicas de vanguarda e a música de cantautor, Molina fundou um espaço sonoro muito próprio e que lhe rendeu, em algumas ocasiões, comparações com Björk. E há, de facto, algumas simetrias entre o seu universo de sons e o da islandesa, embora na estrutura estejamos a falar de matérias substancialmente diferentes. Tomando como exemplo este Wed 21, as composições partem de um esqueleto de loops a que se somam, depois, o pulsar pontual de percussões em várias formas e cadências, a aleatoriedade de electrónicas ruidosas e até alguns acrescentos instrumentais. Da mistura, acaba por sobrar uma interessantíssima relação de afinidades entre orgânica, voz e ruído, mesmo nos instantes em que um se sobrepõe aos outros, a caminho da confluência que lhes dá o sentido final. Trata-se, portanto, de música construída com conhecimento da importância do detalhe e dos malabarismos necessários à moldagem dos loops, sem cair na banalidade. E, nesse particular, o álbum resulta muito bem enquanto produto que finta a redundância, com proporção nos elementos e a dose certa contenção. Torna-se familiar (não confundir com previsível) na estranheza, por soar tão robótico, estranho, psicótico e delirante. É já indiscutível que Juana Molina possui uma visão musical praticamente sem paralelo na música experimental contemporânea e cada disco seu é um ingresso para um mundo extraordinário. E este Wed 21 pode muito bem ser o melhor que ela nos deu até hoje.  

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segunda-feira, 4 de novembro de 2013

M.I.A. - Matangi


7,6/10
Interscope, 2013

Golpe de marketing ou não, correu o rumor de que os recorrentes adiamentos no lançamento do mais recente trabalho de M.I.A. se prendiam com discordâncias conceptuais entre a britânica e a Interscope. Ao que parece, a editora americana manteve-se renitente, durante cerca de um ano e até ao último minuto, em dar cobertura a um disco de pendor "demasiado positivo". A cantora manifestou publicamente o seu descontentamento em diversas ocasiões, expondo-se ela própria à pressão pública sobre a Interscope e ameaçando vir a optar, em momento futuros, por outras formas de distribuição da sua música. Deixando de lado essas considerações de lana caprina, o disco está aí e nunca seria acontecimento despercebido, ou não fosse M.I.A. um ícone ímpar no universo musical, seja pela frescura com que conseguiu sobrepôr a sua linguagem inovadora ao conformismo pop, seja por se assumir abertamente como alguém com gosto pela polémica panfletária que, mesmo com alguma dose de fantasia de permeio, não tem medo de afrontar poderes instituídos, tenham a forma que tiverem. De resto, esse espírito militante, umas vezes mais cáustico do que noutras, é um dos conteúdos que marca a sua música desde as primeiras manifestações e que não podia deixar de estar presente neste Matangi, quarto compacto de estúdio.

Este é também um documento desregrado como outros de M.I.A., com um tal sentido de mestiçagem estética que torna quase impossível situar referências sem que elas se confundam entre si, fora e na obra da inglesa. Deve dizer-se que a voz e a percussão continuam a ser o núcleo energético das composições; ao par, junta-se depois uma implosiva carga de interferências e ritmos. Em ambos os aportes, sente-se a óbvia actualização da contemporaneidade e, mais do que isso, um cunho ecléctico que toca pólos tão distantes quanto a pop amistosa e a electrónica de absorção lenta. Pelo meio, há passagens camufladas pela Índia, há insinuações incontornáveis aos patrimónios mutantes do hip hop - cultura sempre presente - e escalas rítmicas por outras tendências em voga (até o kuduro aqui aparece). Um verdadeiro caleidoscópio, a resgatar os momentos mais inspirados de M.I.A., depois do auto-admitido flop criativo que foi Maya, há três anos. Matangi é um trabalho de colagens tão pejado de tensão que chega a tornar-se desgastante, sobretudo se ouvido de um trago só. Não esqueçamos que, além da querela com a Interscope, M.I.A. enfrentou recentemente uma dura batalha judicial pela custódia do filho e está a braços com a intimição da NFL por gestos impróprios durante a actuação no Superbowl. Mas como se percebe neste Matangi, a adversidade serve-lhe de inspiração. Em alguns momentos da incontinente guerra tribal de ritmos e estéticas que é o disco, há alguma da melhor música que M.I.A. nos deu, sem dúvida, mas só no dia em que ela domar as convulsivas energias que lhe habitam a verve é que nascerá a obra-prima que se vai adivinhando na sua mente.  

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sexta-feira, 1 de novembro de 2013

La Chanson Noire - Macumba Stereo


7,3/10
Necrosymphonic Entertainment, 2013

Só o mais hipócrita puritanismo pode explicar porque é que o projecto La Chanson Noire nunca passou da marginalidade da cena musical nacional e chegou ao fim sem merecer honras de um espaço mediático a que o seu património musical teria legitimamente direito. Assumindo-se como um "manifesto artístico de música impopular portuguesa", o espaço criativo de Charles Sangnoir professou, durante meia-dúzia de anos de actividade, um mosaico musical assente numa curiosa miscigenação de géneros próximos da decadência humana, ora na sua vertente gótico-depressiva (e portanto carregada de negrume), ora nas máximas do hedonismo e do deboche. Em termos estéticos, nunca se chegou a perceber poiso firme - tal a alternância entre o rock (pequeno e grande, lento e rápido) e o cabaret, o mantra sombrio e a áspera crítica panfletária, o kitsch e a elegância. O que é o mesmo que dizer que a iconoclastia dos La Chanson Noire era um dos mais desafiantes conceitos anti-estilos da música nacional. Depois, a escrita desabrida (em português ou inglês) e sem tabus chocava sistematicamente com convenções, instituições e símbolos, expondo-se ao escrutínio pouco complacente dos melómanos cá do burgo, amestrados pelo conformismo e nada benévolos perante títulos tão sugestivos como "Ode a Satã", "Pura Merda" ou "Bordel de Lúcifer". Depois de dois EPs (incluídos no alinhamento) e dois compactos (Música para os Mortos, 2010, e Cabaret Portugal, 2012), chega este Macumba Stereo, requiem compilatório de algumas faixas emblemáticas do grupo (com roupagem nova) e outras que ficaram por editar e nasceram nos primórdios do projecto. O documento não é um best of e é necessariamente menos coeso do que um álbum de corpo inteiro, mas acaba por servir o propósito de apresentar a teatralidade poética dos La Chanson Noire a quem (ainda) não conhece.

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Arcade Fire - Reflektor


8,5/10
Merge, 2013

Já passou quase uma década da generalizada aclamação do debute discográfico dos Arcade Fire (Funeral, 2004) e, em virtude de uma inspirada sucessão de discos subsequentes, o fenómeno não esmoreceu e deu origem a uma extensa fileira de admiradores da banda (e à rendição da crítica especializada), dando-lhe a dimensão planetária a que parecia predestinada desde a primeira hora. Por isso mesmo, cada edição da trupe canadiana é antecedida por uma vaga de expectativas e discussões cibernéticas de gente ávida pela novidade vindoura como se do Santo Graal se tratasse. A ajudar ao festim de anunciação deste Reflektor, o quarto registo, a revelação espaçada no tempo de alguns detalhes exponenciou a ansiedade geral, ora por saber-se que James Murphy (do extinto LCD Soundsystem) estaria ao comando da engenharia de sons, ora pela alegada participação de David Bowie - confesso adepto da banda - e do saxofonista Colin Stetson no tema-título, ora pelo facto de vir a tratar-se do primeiro duplo-álbum dos Arcade Fire,  ou ainda, mais recentemente, pela divulgação do vídeo de "Afterlife" com imagens do filme Orfeu Negro, a revisitação de 1959 do mito de Orfeu e Eurídice (na versão de favela carioca de Vinicius). Tudo junto, mais o pormenor de saber-se que o artwork do disco reportava à escultura Orphée et Eurydice de Rodin, os dados estavam lançados: os Arcade Fire teriam em mãos um disco iluminado pelo funéreo mito de Orfeu, o encantador da lira, que acreditou resgatar a amada Eurídice da morte, mas só perecendo veio a reencontrá-la. E se esta contextualização dramática não é estranha à espiritualidade que atravessa a obra de Win Butler e seus pares, faltava apenas saber que veículo sonoro a serviria, se a extravagância barroca de Funeral, se as sombras góticas de Neon Bible ou a efusão pop de The Suburbs.

A resposta não pode ser categórica em face de 75 minutos de música. Há um pouco dos três, sem dúvida; um reset absoluto seria impensável. Contudo, há uma vibração diferente, não apenas por força do sublinhado da electrónica que James Murphy não deixaria de fazer, mas também pelo risco conceptual que isso encerra. Não é um mero golpe de teatro, é uma mexida estrutural que pode, em incautas primeiras audições, insinuar uma clivagem estética que, afinal, não se confirma. Está cá tudo o que é matéria idiossincrática dos Arcade Fire: as melodias em crescendo, o cuidado nos arranjos, a diversidade nas texturas e instrumentos. O balanço é que é diferente, uma paranóia de ritmos, a tirar a percussão e o baixo do fundo (cortesia de Murphy, pois claro), a limpar as vozes, a insinuar espacialidade e dança, sobretudo no primeiro tomo do álbum. O segundo não disfarça o contraste rítmico e move-se em alegorias mais contemplativas e necessariamente menos aceleradas. No final, sobra a sensação de estarmos perante um exercício consequente de reinvenção que, não quebrando as ligações nevrálgicas com o passado, é fuga segura ao comodismo. Fazer isso quando se está no auge comercial/mediático em que estão os Arcade Fire merece todos os louvores. Até esquecemos que o disco talvez seja longo de mais.

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