segunda-feira, 30 de junho de 2014

Mundial 2014 : Portugal dos pequenitos


É inquietante perceber que, no rescaldo de uma participação medíocre no Campeonato do Mundo, parecem não haver consequências para ninguém. Mesmo admitindo que a fasquia das expectativas foi elevada acima do que aconselhava o juízo mais ponderado, o saldo apurado nos três jogos é francamente negativo e coloca-nos perante uma reflexão incontornável: como preparar o futuro da selecção? Respaldado no silêncio complacente da F.P.F., Paulo Bento esgueira-se entre os pingos da chuva e sente-se capaz de tomar em mãos o encargo de renovar o grupo e preparar o ciclo seguinte de grandes competições, a começar já em Setembro, com a qualificação para o Euro 2016. Em face do se viu no Brasil, a união do grupo não é mais do que a ruína que a fase de qualificação denunciou e o playoff com a Suécia apenas disfarçou. Ao mesmo tempo, o apagão competitivo de alguns elementos nucleares na equipa e a inacreditável sequência de problemas físicos, puseram a nu as fragilidades de uma preparação deficiente e de uma convocatória questionável. Também nesses domínios, a culpa vai morrer solteira. E espera-se que seja esta mesmíssima estrutura federativa e o actual corpo técnico a revigorarem o grupo, a reinventarem o espaço das selecções nacionais e a prepararem a nova geração para a próxima década dos AA's? Não estará Paulo Bento refém das suas próprias ideias e da fidelidade ao vínculo de gratidão construído com alguns futebolistas nos últimos anos?

Nas circunstâncias actuais, a renovação de quadros na selecção é uma inevitabilidade e não pode ser condicionada por privilégios pessoais que, se nunca se justificaram, agora têm ainda menos sentido. Pior do que isso, os mentideros trazem relatos de episódios de ingerência na escolha da equipa, da interferência de patrocinadores e empresários a vários níveis e, inclusivamente, de algum mal-estar entre jogadores. Com estas condicionantes, não se adivinha um processo pacífico de renovação e é legítimo questionar-se se os actuais protagonistas, tanto directivos como técnicos, são as pessoas certas para o conduzir e levar a bom porto. O espaço dos sub-21 tem que ser aberto paulatinamente aos AA's já na qualificação para o Euro 2016. Não há outra via. Mesmo respeitando o trajecto feito ao serviço da selecção, não pode iludir-se o facto de que urge "refrescar" o ambiente da equipa de todos nós. Chamar à equipa novas caras e novas ambições tem que ser a prioridade, sob pena de perder-se o timing dessa renovação e cavar-se um vazio geracional. E esse caminho de mudança tem que ser suportado num princípio basilar que respeite não outra coisa senão o momento de forma: os melhores para cada posição. No Brasil, ficou clara a capitulação desse princípio. E, aparentemente, o balanço que importava fazer não é feito, passa-se uma esponja sobre os episódios Brasil 2014 e o mundo luso segue no laxismo do costume, como se nada fosse, como se não tivesse existido o Campeonato do Mundo. Fingir que não há um problema é o primeiro passo para o ver crescer.

E depois, a questão de sempre: Cristiano Ronaldo. Ícone aglutinador de paixões, o capitão português é o pólo que agrega quase todas as atenções, numa lógica de subvalorização do colectivo que até os colegas parecem aceitar com bizarra submissão. Primeiro, foi a "novela" em torno da lesão, também embalada pelos companheiros em diversas ocasiões; depois, a sequência desconchavada de declarações públicas, em contradição entre si e sem norte. Finalmente, a pobreza inacreditável das suas prestações desportivas, algo comum a todas as grandes competições de selecções em que participou. Como aqui escrevi, julgava que o capitão português tinha atingido um patamar de maturidade emocional consentâneo com a sua posição no grupo. A realidade dos factos desmente-o categoricamente. Continua mimado, birrento e a considerar-se muito superior à selecção, como se fossem os colegas a causa do insucesso dele. E este estado de coisas tem que ser questionado, não podem permitir-se prima-donas numa representação nacional e alguém tem que ter a frontalidade de o dizer abertamente. A comunicação social nacional continua a embalar o egocentrismo insuportável de CR7 e a alimentar um fenómeno mediático que inibe os próprios colegas, mesmo que eles involuntariamente o aceitem. Ronaldo é um futebolista de eleição, é um facto, mas isso não pode dar-lhe o estatuto de nobre vaidoso entre plebeus. Haja quem afronte essa evidência com mão disciplinadora e sem medos.  Mas isso só será possível se a liderança, a todos os níveis, não estiver conotada com nenhuma cadeia de poder ou interesse paralelo, nem comprometida com outra coisa que não seja uma filosofia de renovação e de vitória. Esse tipo de independência jamais surgirá sem mudanças estruturais. E elas têm que começar na F.P.F., desde o banco de suplentes à hierarquia federativa. Iludir este facto é fingir que não existe um problema. 

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sexta-feira, 13 de junho de 2014

Ben Frost - A U R O R A

8,3/10
Mute/Bedroom Community, 2014

Da indisfarçável devoção do australiano Ben Frost às múltiplas dimensões formais da música ambiente não restam dúvidas. Afinal, ele vem erguendo uma discografia consistente e que, embora seja absolutamente incontornável no género, transbordou fronteiras estéticas e tocou pontos cardeais que não se adivinhavam na origem. A mudança para a Islândia - onde está radicado presentemente - ajudou a esse processo de expansão (e afinidade com os extremos) e à construção de uma linguagem sonora que não conhece paralelo no universo musical. Em certo sentido, esse radicalismo de Frost é transversal à sua obra e confunde habilmente escalas de trabalho: inclina-se, alternadamente e sem atropelos, entre a pequena escala de um detalhismo quase microscópico e as medidas volumosas de um bombardeamento intenso e abrasivo. Seja como for, essa aparente indefinição de escala nunca colocou em cheque a visceralidade da música do australiano, nem a forma como faz do ruído um ornato perverso e imprescindível. Assim acontece neste A U R O R A, quinto capítulo da sua discografia, que leva mais além as premissas desconstrutivas que vêm tomando o laboratório de sons de Frost.

Longe de ser um opus "clássico" de música ambiente, A U R O R A desmonta esse paradigma com noise vanguardista, denso e experimental. A sobreposição de camadas de sintetizadores dá-nos uma massa sonora do mais espesso e asfixiante Frost que ouvimos, ao jeito de uma apocalíptica lavagem cerebral, nem sempre de absorção fácil, mas sublimemente secundada pelas percussões orgânicas de Thorr Harris (Swans) e especialmente Greg Fox (ex-baterista do ensemble black metal nova-iorquino Liturgy, hoje nos Guardian Alien). Mais corpo e mais peso, portanto ("Diphenyl Oxalate" podia ser a abertura de um álbum dos Liturgy). Junte-se-lhe o multi-instrumentalismo de Shahzad Ismaily, que já produziu e tocou com meio mundo (Laurie Anderson, Bonnie "Prince" Billy, Eyvind Kang, Secret Chiefs 3, Martha Wainwright, entre outros), e estão lançadas as premissas para um disco de Ben Frost que tem um inesperado dom: contendo tudo o que faz a sua quintessência, partindo dela, esquadrinhando-a e desmontando-a, não soa a nada que ele já tenha feito. E, ainda assim, semeia no ouvinte a familiaridade própria de um puro Frost, um grandíssimo recontro entre minimalismo e maximalismo. Atrevam-se os tímpanos!

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quinta-feira, 5 de junho de 2014

Mão Morta - Pelo Meu Relógio São Horas de Matar

8,1/10
Nortesul, 2014

A obra dos bracarenses Mão Morta é transversalmente atravessada pela concepção do indivíduo enquanto parte ínfima de uma imensa (e opressiva) engrenagem universal que é, afinal, a sua mãe original e o seu capataz. Para materializar essa reflexão existencialista, Adolfo Luxúria Canibal e seus pares colocaram-se no centro de um paradigma estilístico muito pessoal, com um pé no surrealismo negro como metáfora da decadência humana e outro na distorcida redenção de um bizarro escapismo hedonista. A mistura deu-nos momentos de ácida descrença no animal humano, servidos em órbitas estéticas que, partindo de um sedimento rock, conheceram algumas derivações pontuais por outras concepções. Em todo o caso, foi precisamente quando as ideias poisaram na distorção incisiva das guitarras que nasceram alguns dos momentos mais inspirados do grupo.

Quis a evolução dos factos que, volvidos trinta anos de carreira, os Mão Morta encontrassem na circunstância da pátria lusa um terreiro apropriado como nunca para desdobrarem o panfleto do seu pessimismo. A crise financeira é aguda, o país agoniza, a contestação subiu a níveis pouco vistos. Voluntariamente, os Mão Morta juntam a sua voz à coluna dos contestatários neste Pelo Meu Relógio São Horas de Matar. Esquecida a desproporção populista do vídeo de promoção do primeiro single ("Horas de Matar") - que, atrás do sensacionalismo inevitável, presta o pior serviço aos propósitos do disco - o álbum é um monólito de coesão rock, com um alcance político em que a poesia de Adolfo Luxúria Canibal é lapidar:  "enxovalhado no trabalho / maltratado na doença / humilhado no salário / aviltado na dignidade/ resta pouco para gostar de mim / e ainda menos para amar" ouve-se na crua "Hipótese de Suícidio".  Depois, em "Nuvens Bárbaras", uma dose par: "o futuro já não é uma fonte de esperança / só nos resta a indigência / ou morrer de morte certa / como heróis de pechisbeque / neste grande fogaréu / de aparato e opulência / em que farra o capital". Palavras assim pesadas para música com músculo não são mais do que canções de intervenção, mas passadas pelo crivo tétrico dos Mão Morta. E no Portugal minguado e acomodado em que vivemos, erguer-se um disco destes tem dois méritos: firmar, em cunho rock, a independência intelectual e o arrojo dos Mão Morta - as traves mestras de um percurso consistente e sem concessões - e, en passant, atirar-nos à cara a incómoda verdade de continuarmos a ser, no melhor e no pior, um povo de brandos costumes.

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