sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Benfica na Champions: a insustentável pequenez


Alguns méritos não podem ser tirados a Jorge Jesus. Desde a sua chegada ao Benfica, a equipa de futebol dos encarnados redimensionou-se, potenciou jogadores e foi capaz de desafiar consistentemente a hegemonia portista. O bom futebol, os activos valorizados e o estádio com boa lotação tornaram-se regra na Luz, o que constituiu - e nisso o mérito é também partilhado com Luís Filipe Vieira - um inequívoco incremento da percepção de valor da marca Benfica. Em termos de eficácia desportiva, ainda assim, o registo interno não é superlativo: 2 campeonatos em 5 anos. Numa análise mais fina, do trio de ligas perdidas para o Porto nesse período, duas foram praticamente "oferecidas", com responsabilidades directas de Jorge Jesus, ora pela gestão negligente do quadro de jogadores e das expectativas emocionais nos momentos de decisão, ora por uma avaliação táctica nem sempre acertada nos momentos-chave da época. Mesmo retendo essas falhas, o balanço junto do universo encarnado é positivo, sobretudo depois de quase vinte décadas de penúria, a ver desfilar a caravana das vitórias azuis e brancas. Internamente, a nação benfiquista revê-se na reaproximação ao F.C. Porto, o que colocou o Benfica na órbita que a sua história impõe. 

Se abrirmos a objectiva à dimensão europeia, mormente à Liga dos Campeões, é difícil disfarçar o incómodo dos fracassos redondos que, no mesmo período de cinco anos, ditaram a eliminação precoce na fase de grupos em quatro ocasiões. É certo que, em duas delas, a migração para a Liga Europa abriu portas para o mediatismo de duas finais (perdidas), mas importa perceber a pequenez competitiva do Benfica no palco maior do futebol europeu de clubes. A Liga Europa é, como o tempo vem provando, uma competição à medida de símbolos de média dimensão, bem ao jeito dos grandes portugueses que, tendo o infortúnio de cair na Champions, logo se tornam favoritos à vitória final. Mas isso é outra questão. Porque falha então sucessivamente o Benfica no confronto com os maiores?

Há vários níveis de análise que importa destrinçar. O primeiro, e mais importante, prende-se com a definição de prioridades desportivas do Benfica e, mais particularmente, do seu treinador. O segundo deriva do discurso institucional sobre esta matéria, também ele acomodatício do insucesso. E, finalmente, o nível de exigência que chega à equipa em dois patamares: vindo da direcção e vindo do exterior, dos adeptos. 

Comecemos pelas prioridades definidas por Jorge Jesus. Desde cedo se percebeu, e bem, que atacar o campeonato seria o leitmotiv do treinador do Benfica. A urgência de devolver ao Benfica a sua identidade de clube ganhador e, mais do que isso, de romper o predomínio portista "obrigavam" a reclamar rapidamente o ceptro nacional. Até aí, tudo bem, um clube só é grande se continuar a ser grande, se o presente fizer jus ao passado. Viver de glórias de antanho era coisa de que o povo benfiquista estava farto. Nada errado, portanto, em focar a preparação competitiva da equipa para a liga doméstica. Conquistado o primeiro campeonato no primeiro ano (2009/10), com uma presença mediana na Liga Europa (saída nos quartos de final, com o Liverpool), estavam lançadas as bases para, nos anos subsequentes, ser solidificado o projecto europeu, a ambição confessada de Luís Filipe Vieira. Mas Jorge Jesus nunca entendeu uma parte nuclear do ADN Benfica. Ganhar internamente é importante, claro, mas não é a meta final. Ganhar ligas em Portugal deve ser o suporte para projectar a equipa no exterior, entre os melhores. A identidade de clube grande é urdida assim. Jesus nunca entendeu isso. Para ele, "o campeonato é a prioridade", tantas vezes se lhe ouviu a expressão. E tantas vezes, no seguimento disso, se percebeu que a gestão dos jogadores e das expectativas da época secundarizou a Liga dos Campeões, em favor do campeonato nacional, como se uma valesse menos do que o outro. Não perceber que um clube com a grandeza do Benfica tem que figurar entre os melhores, tem que ganhar entre os melhores - sobretudo nos anos em que tinha recursos para isso - é passar ao lado da quintessência do clube. E chegar à final da Liga Europa, até ganhá-la, não apaga as sucessivas débâcles na Champions. 11 vitórias em 29 partidas (ainda falta uma deste ano), nas últimas cinco edições da Champions é um pecúlio demasiado curto! Não o admitir e tentar cobrir este facto com a peneira das finais de Liga Europa é uma falácia que só serve a Jesus. 

Depois, há a questão do discurso institucional do clube. Além do treinador que assume abertamente a prioridade no campeonato, o presidente Luís Filipe Vieira tem mantido um estranho silêncio sobre as sucessivas eliminações prematuras na Champions, também se escudando na consolação da Liga Europa. Mas há um contrasenso nisso. Por um lado, fala-se em projecto europeu, em colocar o Benfica entre os melhores, no "sonho" de ganhar a Champions e, depois, nos momentos de fracasso na prova maior, não há uma palavra do presidente. Também ele toma como normal a pequenez competitiva do Benfica europeu? 

E isso entronca no terceiro nível de análise: a cultura de exigência. Depois de duas décadas de capitulação desportiva, a mística benfiquista era, antes da chegada de Luís Filipe Vieira, uma miragem. E se parte significativa dessa mística foi regenerada, sobretudo pela destreza do presidente em comprometer a família benfiquista com o projecto, não é menos verdade que certos sectores do clube, tanto nos corpos sociais, como na falange de adeptos, ainda convivem melhor com a derrota do que os congéneres portistas. Não se trata de copiar modelos desportivos ou de gestão, mas estudar o caso portista é estar em contacto com o mais completo e cabal exercício de construção de uma cultura de vitória, alicerçada em anos sucessivos de exigência, de vontade de ganhar mais. Seria inimaginável acontecerem tantas saídas sem brilho da Champions, no F.C. Porto, sem a reacção indignada da massa adepta e a consequente corroboração presidencial. O desaire não fica impune na Invicta. Ao contrário, ter um discurso fraco na hora de perder, não o assumir frontalmente, não ser capaz de acrescentar o indispensável tom crítico que suporta a cultura de exigência é abrir portas para a repetição do insucesso. E é isso que internamente o clube Benfica ainda não percebeu. A cultura de vitória é uma tarefa de todos os dias, de todos os momentos e de todos os protagonistas. Mais exigência há-de trazer mais vitórias. E Luís Filipe Vieira nunca foi suficientemente veemente quando a equipa e Jesus falharam na Champions. Tudo isto, depois, repercute-se nos adeptos. Eles são, a maior parte das vezes, o espelho do discurso institucional do clube. Se não se alimenta a cultura de vitória, os adeptos não a praticam também. E assim aceitam mais uma eliminação precoce na Champions. 

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quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Pharmakon - Bestial Burden

7,9/10
Sacred Bones, 2014

No ano transacto, quando Abandon chegou aos escaparates, já o epíteto Pharmakon havia suscitado a curiosidade de muitos melómanos fora do noise, esse nicho artístico pouco dado a fenómenos com expressão mediática maior do que as fronteiras do género e capazes de chegar a outros públicos. O sobressalto gerado pela música de Margaret Chardiet nem era propriamente resultado de uma fórmula virgem nesse domínio, mas sobretudo de perceber-se quão áspera, crua e gutural conseguia soar uma jovem de apenas vinte e dois anos (à data) e de como, na solidão catártica das suas actuações conseguia veicular, fosse na estridência e rudeza vocais, fosse na toxicidade instrumental, uma energia estranhamente hipnótica e sedutora. A busca da beleza na repulsa, a exploração das tensões e conflitos nesse absurdo paradoxal do indivíduo e, em certo sentido, a exposição visceral da sua própria natureza eram, então, as premissas maiores do assalto sensorial de Chardiet. Daí à proximidade com o radicalismo sonoro a distância era curta e, sem se deter em maniqueísmos, Chardiet colocou-nos perante um dilema de compromisso, talvez até a derradeira demanda existencialista: há na espécie humana um ímpeto de confronto que não se aquieta. Somos como somos porque mora em nós a pulsante chispa da conquista, mascarada nas múltiplas formas da ambição. Em Pharmakon, Chardiet rende-se ao lado mais assombrado e tortuoso da mundanidade: a ambição é um fantasma difícil de exorcizar.

De Abandon para cá, Chardiet viu o abismo. Operada a um tumor quase fatal, teve que conviver com a fragilidade do seu próprio corpo, na lenta convalescença que se seguiu. Bestial Burden é tingido pelo tom testemunhal desse processo de regeneração contra a traição celular e de evidência da vulnerabilidade. Também por isso, e em certo sentido, a música do disco é tão "física" quanto seria expectável, incluindo vómitos, tosse e arfadas, um roteiro cru ao tormento físico vivido por Chardiet. A mente impotente desconecta-se do corpo falido, rebela-se contra ele, quer desprender-se da frágil condição da mortalidade. No resto, a marcha das electrónicas ponderosas, as interferências abrasivas e a métrica quase industrial suportam uma voz ácida, cortante e enfeitiçada. Mas sempre, sempre humana. Porque o medo da morte é uma merda.

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