sexta-feira, 27 de junho de 2008

Deolinda - Canção ao Lado

8/10
iPlay
2008
www.deolinda.com.pt



Desencontrado das correntes artísticas que vêem o fado como uma inspiração fatalmente eivada de taciturnidade e do peso emocionalmente denso da saudade, o projecto Deolinda reconhece-se na canção tradicional portuguesa, pelo menos enquanto referência estética, mas inunda-a de luminosidade, de júbilo e de energias positivas. O que propõe Canção ao Lado, exercício de debute do quarteto lisboeta, é uma saudável desmistificação de uma das mais finas tradições musicais lusas, a fazer lembrar as especulações pioneiras dos Madredeus, de há uns anos atrás. Aqui, escuta-se fado feito de melodias alegres e de cantares soltos, com letras revestidas pela leve comicidade de uma ou outra caricatura social de um Portugal de qualquer tempo. Em termos instrumentais, no minimalismo textural do disco, não deixa de ser curioso perceber como se produz fado sem recorrer à guitarra portuguesa, "falsificando-lhe" os trejeitos em duas guitarras clássicas, a que se une o contrabaixo. Depois, há Ana Bacalhau. Apartada dos caprichos psicóticos que deliciosamente mostrara nos Lupanar, ao jeito da saudosa Anabela Duarte e dos Mler If Dada, encontra agora na Deolinda o respaldo de placidez e doçura melódica que lhe permite explorar a imponência dos registos mais harmónicos do seu versátil espectro vocal. No mais, Canção ao Lado é um pequeno prodígio: canções brilhantes ("Fado Toninho", "Movimento Perpétuo Associativo" e "Fon-Fon-Fon" são um trio que apetece repetir), uma lógica de subversão do fado tradicional que soma mais do que subtrai e, last but not least, um humorismo disfarçado de arrazoado panfletário que é raro ver-se por estas bandas. Belíssima estreia, sem dúvida.

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quarta-feira, 25 de junho de 2008

The Great Lesbian Show - You're Not Human Tonight

7/10
Zounds
Sabotage
2008
www.lesboscorp.com



A inconstância parece ser um conceito caro aos lisboetas Great Lesbian Show. O alinhamento do ensemble foi alvo de inúmeros ajustes desde a formação no longínquo ano de 1992, emprestando uma dose significativa de incerteza à sua sobrevivência - facto confirmado com a cessação de actividades, seis anos depois da fundação e ainda sem um registo discográfico para a posteridade, e a ulterior transição para um novo arranque em 2001. Além disso, as contingências do estrito mercado editorial adiaram sucessivamente um debute discográfico anunciado, amputando a banda da amplitude comercial de uma afirmação paulatinamente conseguida em palco. Apenas em 2004 os escaparates mostraram Psykitsch Kaleidoscope, primeiro registo dos GLS que, após de três anos de penosa suspensão e indiferença das editoras, veio dar a conhecer o dissonante e insano cocktail de experiências rock de Ondina Pires (ex-Pop Dell'Arte) e seus pares. You're Not Human Tonight, embora gravado sem a urgência do antecessor e contando com uma produção mais "profissional" (de Jorge Ferraz), é um idêntico manifesto de libertinagem rock. É difícil encontrar, no panorama actual da música lusa, um disco mais diletante e despretensioso do que este, não só por convocar referências estéticas de vários quadrantes (aparentemente imiscíveis) mas, sobretudo, por ser fiel a uma ética compositiva faça-você-mesmo rara cá no burgo. A experimentação, muitas vezes disfarçada de improviso incontinente, continua ser o combustível da surreal irreverência do quinteto e de uma identidade mutante que vai do rock fumoso à electrónica sorumbática, do ruído casual à dissonância, da garagem ao clube nocturno, da charanga profana ao pecado punk. Mesmo faltando "a" grande canção a este You're Not Human Tonight - o que continuará a ser um óbice para a chegada dos GLS a outros públicos - são notórios a maturação e o crescimento artístico da banda, bem como a gestão mais apurada do desconcertante turbilhão de energias criativas que mora no quinteto lisboeta. E, se prescindirmos de qualquer requisito de congruência na apreciação do disco - coisa despropositada quando se aprecia um trabalho dos GLS porque não é essa a identidade deles - o disco ganha formas de experiência auditiva mais compensadora do que parece à primeira escuta.

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The Ruby Suns - Sea Lion

8/10
SubPop
Popstock
2008
www.myspace.com/
therubysuns



A prontidão da comunidade melómana a arrumar qualquer agente artístico sob um rótulo que o identifique com um determinado padrão estético, tem vindo a acolher os neo-zelandeses The Ruby Suns com a designação de "mini Polyphonic Spree". Se, muitas vezes, esse tipo de considerações apressadas tendem a desvirtuar a identidade musical dos visados, com que os reduzindo a um mero pastiche ou seguidismo estético, neste caso a comparação não vem totalmente a despropósito. Os Ruby Suns partilham, na essência, o paradigma estilístico do colectivo de Tim DeLaughter, pelo menos na evocação ecléctica de uma miríade de referências e, mais ainda, na experimentação com o som e as texturas e numa certa especulação psicadélica importada dos 70's. Destas premissas deriva um curioso conceito de canção - ela é a meta aqui - que, não deixando de ser fiel ao cânon da pop colorida contemporânea (leia-se Arcade Fire, Beirut, The Shins ou New Pornographers), revela também entusiasmo pelo desafio às formas mais consensuais. Ao mesmo tempo, atrás das inúmeras casualidades sonoras, das vibrações e da amálgama de estilos e culturas que enchem os trechos, há lugar para uma invulgar espiritualidade, dir-se-ia que própria de boémios utopistas. E é precisamente nessa porção onírica que a iconoclastia dos Ruby Suns ganha sentido e formosura, ao subverter conceitos e fórmulas, sem forçar a mescla dos ingredientes, assim desvendando canções harmoniosas e surpreendentes, quase naïf nos concentrados cénicos que insinuam e mágicas no deleite escapista de experimentar. Sea Lion é, por isso, uma excursão a um universo musical aberto a mestiçagens e encenações várias e à consequência da transculturalidade e, sobretudo, onde acontece uma família de canções de fino recorte. Verve indie à descoberta do mundo.

terça-feira, 24 de junho de 2008

Sigur Rós - Með Suð í Eyrum Við Spilum Endalaust

8/10
Beggars XL
2008
www.sigurros.com



O crescimento mediático do colectivo islandês Sigur Rós é imagem representativa das duas faces de um percurso fiel a uma estética singular (e, por isso, marginal aos discursos dominantes). Se, por um lado, a recorrência (e consequente depuração) de uma linguagem musical própria foi factor de angariação de fãs aderentes a esse microcosmo estético particular (forjado no lado "ambiental" da melancolia), assim se fundando a identidade inconfundível da banda, não é menos verdade que, depois de um quarteto de álbuns estruturalmente muito semelhantes, o risco de cristalização do conceito estaria presente. Antecipando a proximidade da estagnação, os Sigur Rós perceberam a necessidade de reinventar-se e da oportunidade de somar outras valências à fórmula musical que inventaram. Hvarf-Heim, prenda acústica do Natal do ano transacto, constituíra primeiro momento do fôlego revisor que, tranquilamente, trouxe o quarteto nórdico ao exercício de transição que é Með Suð í Eyrum Við Spilum Endalaust. Não se trata de fazer um motim contra o passado, tampouco de dispensar os ensinamentos do sucesso armazenado, mas há no quinto opus de estúdio dos Sigur Rós uma vontade de atalhar por outros caminhos. A esse desejo de romper o saudável hermetismo de discos anteriores, não são estranhas a produção de Flood (dos Nine Inch Nails) que, sem beliscar a toada minimalista e ambiental da banda, lhe confere expansão, e a escrita mais transgressora da banda - os corolários moram na pseudo-psicadélica na "Gobbledigook" (foi você que pediu Arcade Fire?), na luminosa "Inní mér syngur vitleysingur", ou na primeira aventura em língua inglesa ("All Alright"). Em tudo o resto, a substância maior é aquele imo de dolência deprimida que os Sigur Rós musicam como ninguém e que faz deles verdadeiramente especiais. E música como a que se escuta no impronunciável Með Suð í Eyrum Við Spilum Endalaust (a tradução livre seria: "com um zumbido nos ouvidos, tocamos sem fim") não só guarda a essência quase épica do universo Sigur Rós, como lhe abre o espírito a outras luzes. A lágrima escorre sobre um sorriso.

terça-feira, 17 de junho de 2008

Coldplay - Viva La Vida or Death And All His Friends

8/10
EMI
2008
www.coldplay.com



Com mais de trinta milhões de discos vendidos e a consequentemente sólida afirmação no panorama editorial como um dos activos mais relevantes da pop contemporânea, os Coldplay tinham, à partida para a tarefa de conceber um quarto álbum, duas vias alternativas: ou seguiam o caminho mais conformista (que, neste caso, é sinónimo de generalista) e limitavam-se a repisar os códigos musicais dos registos anteriores, ou ousavam investir em causas menos divulgadas antes e mais experimentais, assim se expondo ao risco de desagradar o extenso bando de séquitos mais incondicionais do melodismo simples e, ao mesmo tempo, revigorar a maturidade artística da banda. Ao escutar Viva La Vida or Death and All His Friends é notório o desinvestimento nos refrões faustosos que fizeram a imagem da marca do quarteto britânico e a aposta firme numa toada de subliminar experimentalismo nos instrumentais e, sobretudo, na forma como as melodias se definem. O novo opus é, afinal, o testemunho da integridade artística de Chris Martin e seus pares e da emancipação das suas artes face à pressão de uma editora em crise (EMI), num mundo cada vez mais orientado pelo pastiche das fórmulas bem sucedidas e pela plutocracia dos resultados comerciais e menos remunerador da reinvenção, da criatividade e da ousadia. Pode dizer-se que Viva La Vida or Death and All His Friends tem a natureza de um exercício objector (não chega a ser revolucionário), no sentido de caminhar no sentido oposto àquele que poderia esperar-se de uma banda sabedora do preço (e peso) que tem no mercado pelo simples facto de existir e se mostrar, mas claramente à procura de evitar os vícios da comodidade e da habituação ao sucesso. Assim se percebe porque disseram os músicos, em entrevista recente, que este disco não é para fãs de Coldplay. Não só a escrita baralha aqui a herança melódica do grupo com o risco da experiência, como a produção de Brian Eno e Markus Dravs (o obreiro da magia alquímica dos Arcade Fire) empresta um equilíbrio sem mácula à mistura, expondo as composições a especificidades técnicas menos comuns no cardápio Coldplay, como sons orquestrais e electrónicas do espaço. A cosmética não enfraquece as virtudes que se conheciam nos londrinos, antes as agita e descentra, aprofundando a feição meditativa e "adulta" que a banda sempre teve, atrás dos êxitos mainstream mais ligeiros. E em Viva La Vida or Death and All His Friends a superficialidade é coisa rara numa colecção de canções que demonstra inequivocamente que melodia pop e essência artística não são mundos inconciliáveis.

domingo, 15 de junho de 2008

Foge Foge Bandido - O Amor Dá-me Tesão/Não Fui Eu Que Estraguei




Por detrás do projecto Foge Foge Bandido está quase uma década de acidentais encontros de Manel Cruz com a sua própria verve. Não é segredo para ninguém que o antigo vocalista dos Ornatos Violeta e mentor dos subsequentes (e já extintos) Pluto, é um dos mais fecundos inventores de música que o panorama artístico nacional conheceu nos últimos anos e esta edição é testemunho de uma identidade criativa que vai bem além daquilo que publicamente mostrou. Recolhendo, no desregrado baú dos esboços inacabados e das ideias preteridas de outros tempos e de agora, a matéria para encher um duplo álbum com 80 (!) trechos, entre canções com estrutura e verbetes casuais (aqui chamados de "separadores"), Manel Cruz oferece-nos uma extensa síntese, não só dos caminhos incertos (e até experimentais) que o levam ao acto de criação de música, mas também dos desvarios deixados de lado pelo critério de escolha das melhores ideias. O Amor Dá-me Tesão/Não Fui Eu Que Estraguei tem, assim, o pendor de uma compilação atípica, porque não deriva do catálogo editado do músico. O que aqui se reúne, além de canções inteiras, são esquissos guardados na gaveta, experiências e sons casuais. Nesse sentido, embora servidas em conjunto com um livro de 140 páginas que lhes empresta dimensão física e conceito, as propostas do duplo álbum nada têm de "conceptual" e menos ainda de estrutura narrativa. Aquilo que aqui se escuta é, partindo do legado incontornável que Manel Cruz inscreveu nos Ornatos Violeta, o prazer do compositor ao inventar outras sugestões nas texturas, subliminarmente mais especulativas e sem preconceitos formais e estéticos. Aí, nesse deleite transformista, aquilo que uma colecção tão vasta de pedaços musicais perde em harmonia ou sentido estético - coisas para as quais não terá sido sequer pensada/destinada - lucra em surpresa. E é esplêndido redescobrir Manel Cruz e, mais do que isso, visitar algumas das faces menos divulgadas de um músico cujo talento inquestionável se encontra aqui (e se expõe) num fôlego mais diletante.

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sexta-feira, 13 de junho de 2008

N.E.R.D. - Seeing Sounds

6/10
Star Trak
Universal
2008
www.n-e-r-d.com



Embora o contributo de Pharrell Williams e Chad Hugo para a notória revivificação do universo hip hop e a consequente caminhada para o mainstream, a partir da segunda metade da década de noventa, não seja facilmente quantificável, certamente a história virá a fazer justiça ao par de produtores americanos enquanto forças motrizes da primeira linha desse movimento. Ao emprestar originalmente alguma excentricidade estética às austeras premissas estruturais do cânon hip hop, então somando-lhe o colorido exótico de sons espaciais e futuristas e a irreverência de percussões novas, o par Williams/Hugo ergueu, sob a alcunha The Neptunes, um conjunto de novos postulados texturais para o hip hop. A notoriedade do duo nesse orbe foi crescendo paulatinamente, à medida que os Neptunes produziram gente com o peso simbólico de N.O.R.E. (ex-Noreaga), Kelis, Ol'Dirty Bastard, Jay-Z, Snoop Dogg, Mystikal, P. Diddy, Busta Rhymes ou Usher. A latente consagração do "som Neptunes" criou motivos para a curiosidade do mundo melómano face à possibilidade da dupla saltar para a frente da mesa de misturas e, mais do que dar a conhecer uma química de arrumação de sons original, mostrar composições próprias. Com Shay Haley, Williams e Hugo formariam os N.E.R.D., aí encontrando o espaço criativo para, não só aproveitar as inovações técnicas entretanto consagradas, mas levá-las a outros níveis de emancipação e ambição, nomeadamente à conjugação de um código sonoro a apalpar convergências entre o hip hop, o funk, a música soul e o rock.

E depois de um primeiro disco algo discreto (In Search Of..., de 2001) e de um sucessor mais consistente (Fly Or Die, de 2003), e do hiato para aventuras a solo de Pharrel Williams e algumas colaborações e produções pontuais em trabalhos de terceiros, os três voltam a juntar-se para recuperar o fôlego da experiência e retomar o caminho sugerido pelo par de registos anteriores. Uma vez mais, a meta chama-se canção pop e as luzes e cores de inspiração misturam influências de origens várias, como é timbre dos N.E.R.D. e das linguagens que subscrevem. A nota dominante, além do eclectismo de Seeing Sounds, é um irrepreensível equilíbrio entre as anotações verdadeiramente retro que se espalham pelo disco e o complemento vanguardista que brota dos instrumentais. Todavia, ao contrário da inventividade que habitualmente sai das mentes de Williams, Hugo e Haley, as canções ficam longe do triunfalismo da produção de cátedra e resvalam, com excepções pontuais ("Everyone Nose", "Spaz" e "Yeah You" são os pontos altos), para uma mediania que embacia os méritos dos N.E.R.D..

Posto de escuta Everyone NoseISpazIYeah You

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Matmos - Supreme Balloon

7/10
Matador
PopStock
2008
www.myspace.com/
matmos1



Adeptos de travessuras surrealistas da era digital, Martin Schmidt e Drew Daniel fazem do conceito Matmos um dos expoentes mais originais do concentrado universo da electrónica left field corrente, sobretudo no tocante à investigação das virtudes ambientais e melódicas, se quisermos o lado mais ligeiro e "populista", de um género musical cuja complexidade estrutural normalmente afasta as massas. Foi no berço IDM (e no nicho da musique concrète) que Schmidt e Daniel encontraram embalo para um percurso de rara congruência estética, fazendo das raízes minimalistas um substrato sempre presente, e, partindo desse esteio estruturante, evolver para um registo sonoro de impressivos coloridos sintéticos, com traço melódico e fôlego experimentalista. O processo de crescimento produziu dois momentos magnos, um de minimalismo, construído apenas a partir da acústica de uma sala de operações, A Chance to Cut is a Chance to Cure, de 2001, e, outro, um manifesto de música concreta em The Rose Has Teeth in the Mouth of a Beast, o penúltimo e sétimo disco, de 2006.

A proposta orgânica de Supreme Balloon é comprimida em regra única: a orgânica do disco é construída exclusivamente com sintetizadores, sejam eles de qualquer era ou origem. Esse purismo analógico da obra tem uma leitura imediata, ao definir um legítimo (e nostálgico) recuo dos Matmos ao quinhão mais significativo das suas fundações, desligando o duo de San Francisco das recentes derivas pelo "concretismo musical", assim emprestando às especulações e obliquidades harmónicas das composições um pendor mais maquinal e, sobretudo, o exotismo de desvendar curiosos fetiches entre os prazeres antigos das "velhinhas" teclas de um Roland ou de um Korg, tão em voga nos 70's e 80's, e os computadores e tendências modernas. Atrás disso, vêm alguns harpejos encantadores, pontuais delírios 8-bits, insinuações cósmico-espaciais e um ou outro rifão mais "cerebral". Ao escutar Supreme Balloon percebe-se que a mudança formal, não só não contaminou a criatividade da dupla, como lhe acrescenta outros ângulos e dimensões, abrindo espaço para ocasionais instantes de nostalgia dos primeiros passos da electrónica (leia-se Kraftwerk, Jean-Michel Jarre, Vangelis) ou, em referências mais desfocadas, aos cosmos bizarros de Terry Riley e Keith Fullerton Whitman (o artífice da música concreta também aparece nos créditos do disco). Nesse sentido, o novo trabalho dos Matmos tem mais de memória do que de invenção pura e, a despeito da excelência do corte de alguns momentos ("Rainbow Flag" ou "Polychords" dão nota disso) e da limpidez e coerência dos ambientes, paira no ar uma sensação de breve discrepância entre a assinatura esdrúxula da dupla americana e o necessário ascetismo (ou limitação técnica) da electrónica clássica. A passada analógica parece curta para a ousadia da verve de Schmidt e Daniel. Em todo o caso, Supreme Balloon é um documento recomendado a espíritos curiosos e antiquários da electrónica.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Sparks - Exotic Creatures of the Deep

7/10
Lil'Beethoven
2008
www.allsparks.com



Embora só tenham conhecido verdadeira atenção mediática há seis anos, com o superlativo exercício de pop sinfónica que foi Lil' Beethoven, a verdade é que os californianos Sparks somam já mais de três décadas "esquecidas" de intensa actividade discográfica. A distracção dos públicos que deixou numa injusta periferia uma banda com uma discografia tão consistente e consequente quanto a dos Sparks, é apenas desculpável pelo facto de os irmãos Mael, Ron e Russell, terem uma das mais originais e mutantes linguagens da música pop contemporânea, coisa identitária de um tal dinamismo e volatilidade que os distancia de uma definição estética que fidelize séquitos. É, de resto, essa inesgotável capacidade da banda se reinventar - que, em certos momentos do percurso, se pode confundir com eruditismo - e, sobretudo, a imunidade aos códigos mais ligeiros e condescendentes da pop de grande escala, a causa para o distanciamento entre públicos e a música dos Mael e para, ao mesmo tempo, a sua sacralização enquanto objecto de culto de um nicho estrito de melómanos.

Não espanta, portanto, que ao vigésimo primeiro registo eles continuem a ser uma incógnita para as massas e a sua música uma causa com poucos aderentes. Exotic Creatures of the Deep não mudará essa ordem de coisas, pois recalca os argumentos técnicos mais recentes da discografia dos Sparks, mormente a visão "classicista" da canção pop - numa curiosa convergência entre tecidos electrónicos e condimentos próprios da música de câmara (o piano em staccato, por exemplo) - um certo minimalismo sinfónico e vocais em coro. Em todo o caso, o novo opus mostra maior diversidade instrumental do que o antecessor, ao juntar amiúde a electricidade das guitarras à mistura de opereta. O resto é, como é timbre dos Sparks, a pura ironia de erguer genuínos monumentos de musicalidade, partindo de ideias que, por vezes, chegam a roçar o absurdo. O dislate excêntrico é, para os manos Mael, uma matéria inspiradora, o pilar humorado de peças maduras e construídas com inteligência (também com o suporte lírico mais certo), de genuíno barroco modernista, de afectação "intelectualista", é certo, mas pejadas de motivos de interesse. Exotic Creatures of the Deep é, portanto, um puro Sparks em tudo, mesmo nos desvios, nas bizarrias, nos motejos e (até) nas incongruências de estilo de que, afinal, eles fizeram imagem de marca.

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quarta-feira, 4 de junho de 2008

Man Man - Rabbit Habits




Não parece haver uma explicação aceitável para o facto de o quinteto Man Man ainda se manter na obscuridade da cena musical americana, sendo uma das suas mais inventivas, entusiasmantes e bizarras trupes. Para Honus Honus, Sergi Sogay, Critter Crat, Pow Pow e Chang Wang (há no universo conhecido melhor combinação de pseudónimos que esta?) a música é um inacreditável manifesto hedonista, sem quaisquer preconceitos formais e técnicos e, sobretudo, sem receio de transgredir descaradamente os postulados estéticos dos cânones. Aliás, a relação dos Man Man com a prudência ou o formalismo é manifestamente antipodal, ou não representassem eles uma das mais fidedignas acepções do psicadelismo, tão bem ilustrado na imaginativa prosápia com que se situam no espectro musical, algures entre o impacto cénico de um hipotético vaudeville da era viking e as andanças de um jazz cigano tresloucado. E a música deles, tão absurda e fantasista quanto esses rótulos, é pejada de instrumentos (pianos, saxofones, trompetes, clarinetes, flautas, baixos Fender, xilofones, marimbas, percussões) e delírios circenses e especula com as retorsões "clássicas" dos Captain Beefheart - talvez a referência mais pacífica - ou dos momentos menos convencionais dos mestres Tom Waits ou Frank Zappa.

Há dois anos, o inusitado (e precioso segundo álbum) Six Demon Bag (2006) subira os argumentos de musicalidade da banda a níveis quase surreais, ao conciliar causas de arroubamento rock, transcrições mais ou menos rabiscadas da festividade balcânica, improváveis charamelas de metais, entusiasmos vanguardistas pelo jazz psicadélico e, claro, os mais diversos pigmentos experimentalistas. O quadro não é menos colorido neste Rabbit Habits mas, em contraponto da descentração imoderada e da tensão do antecessor, o novo opus revela uma escrita mais fluida e focada na canção. O próprio Honus Honus acautelou, em entrevista recente e anterior à edição, a reacção dos fãs para aquilo a que chamou o "disco mais pop" do catálogo da banda, sublinhando então a identidade menos desenfreada que poderiam encontrar no álbum. Mas, depois de o escutar atentamente, a apreensão que sobreveio dessa entrevista, afinal, não encontra correspondência na música de Rabbit Habits. Mesmo com canções mais "organizadas" e racionais (dois adjectivos perigosos para a química dos Man Man), a verdade é que continua a haver lugar para o desvario, a paródia e inconformismo e isso é sinónimo de que a charanga de Honus Honus é tão brilhante como antes. Mesmo reduzindo a dose de alcalóides.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Spiritualized - Songs in A & E

7/10
Castle
Fontana Universal
2008
www.spiritualized.com



Quando Jason Pierce fundou os Spiritualized, em 1990, depois da falência dos icónicos (e esdrúxulos) Spacemen 3, colocando então um decisivo ponto final num dos mais incompreendidos projectos musicais da vanguarda da música britânica dos anos 80, poucos acreditariam que, na forja, pudesse estar a desvinculação do minimalismo psicadélico com que fez escola e se apresentou ao mundo melómano. E, em substância, os Spiritualized acabaram por afirmar-se como um sucedâneo improvável e mais refinado dos Spacemen 3, derivando de uma ética de especulações alucinogénias e informes, para a paulatina afirmação de uma discografia menos incontinente no "intelectualismo" e, no oposto, mais vocacionada para ver a meta na canção enquanto produto estruturado. Essa demarcação pelo cuidado na forma e, sobretudo, pelo investimento em causas mais consensuais (em certos casos até sinfonistas) da escrita de música, sem contudo perder o fôlego experimentalista e a vontade de desafiar limites, deu aos Spiritualized uma aura, porventura redutora (porque deixa "de fora" a espiritualidade e a empatia com o ruído, por exemplo), de banda dream pop. Não obstante a evidência da menor arbitrariedade do cancioneiro Spiritualized (quando comparado com o dos Spacemen 3), o rótulo é, neste Songs in A&E menos desajustado do que noutros registos. A música que aqui se inscreve é feita de embalos melódicos, de afinidade das texturas com sons orquestrais e das virtudes atmosféricas de misturar uma coisa com a outra, com uma ou outra peça a fugir a essa matriz.

Pondo termo a um silêncio de cinco anos sem gravações e marcado por um internamento hospitalar (daí o A&E do título) anterior às gravações, Songs in A&E é o sexto registo dos Spiritualized e demonstra, como outros tomos antes deste, que Jason Pierce reproduz na música a solução catártica para os ecos das angústias emocionais. Em todo o caso, a inspiração do álbum não se resumiu ao desconforto do infortúnio, ou não fosse verdade que grande parte do repertório já estava escrito antes da doença. Os sinais dessa catarse parecem esgotar-se nos breves interlúdios instrumentais, esses sim imaginados no hospital, ao passo que as canções são convictas e positivas, chegam a ser luminosas, e centram-se, como imporiam as idiossincrasias dos Spiritualized, na reflexão existencialista e na fragilidade da condição humana. O resto é uma experiência musical interessante, com a pompa nos arranjos e a fluidez de escrita que melhor servem uma colecção de canções íntimas e profundamente pessoais.

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segunda-feira, 2 de junho de 2008

Tricky indeed...

O esperado regresso de Tricky aos discos está perto - a edição londrina está anunciada para 7 de Julho - e o single de avanço é uma amostra de trip hop musculado e nervoso e desvenda um investimento vocal nunca antes escutado no músico britânico. "Council Estate" mostra-nos duas notícias numa só: exclusividade de Tricky nos vocais e um dos registos mais inflamados do seu percurso. Ficam abertos os apetites para Knowle West Boy...

Aimee Mann - @#%&*! Smilers

7/10
SuperEgo
2008
www.aimeemann.com



Já lá vão mais de oito anos desde que o soberbo documento de contrastes humanos que é Magnolia somou ao intimismo e despojo da música de Aimee Mann um valiosíssimo complemento cénico. Mais do que meramente oferecer às canções da americana o protagonismo de levarem o filme pela mão, embalando-o no equivalente musical da triste redenção das personagens da narrativa, Paul Thomas Anderson soube inteligentemente encontrar enlaces emocionais certeiros entre história filmada e canção, sem se perceberem hierarquias de causa e efeito. Assim aconteceu a Aimee Mann, depois de um quarteto de álbuns nos discretos 'Til Tuesday, o raro privilégio de afirmar-se, não só pela singeleza da música, mas sobretudo pela fortíssima impressão de ver as canções projectadas na tela e, assim, assumirem-se como metáfora com dimensão "física" e realismo. São, aliás, o realismo, o espírito crítico e o resvalo do bicho humano para os abismos da emoção as substâncias que inspiram a sagacidade de Aimee Mann, como volta a acontecer neste @#%&*! Smilers, o séptimo capítulo do percurso individual.

Abandonadas as equívocas premissas conceptuais do antecessor The Forgotten Arm (se deixarmos de lado o disco de Natal que foi One More Drifter in the Snow), o novo álbum não monopoliza o espaço narrativo do disco num enredo único, antes se subdivide - como de resto aconteceu nos melhores momentos da carreira de Mann - em lacónicos retratos das frestas do espírito humano, como nos amores descrentes de "Phoenix", no desalento de "Freeway", nos lamentos "trintões" de "31 Today", nas confissões de "Medicine Wheel" e nas onerosas despedidas de "It's Over". É precisamente aí, nos motins da emoção, que Aimee Mann tão bem passa à forma de música, que as canções de @#%&*! Smilers herdam com mais propriedade a tangibilidade da banda sonora de Magnolia. Em rigor, embora merecendo pontualmente uma produção mais expansiva e com detalhes mais rebuscados do que as que musicaram o filme, estas canções convocam o mesmo imaginário e juntam-se para o momento mais inspirado de Aimee Mann desde Bachelor N.º 2. E isso são boas notícias, mesmo que alguns trechos puxem o registo para baixo, ao acusarem subliminarmente o estafamento de uma fórmula que Aimee Mann vem tentando regenerar a cada capítulo.