quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Os melhores do ano

O ano que agora finda não foi particularmente inspirado em termos musicais. Marcado pela recuperação de espaço mediático de algumas das estéticas electrónicas normalmente vetadas pelos grandes públicos e, sobretudo, pela febre dos regressos ao palco de míticas bandas do passado, 2008 trouxe-nos, como sempre acontece, boa música, algumas decepções e outras tantas revelações. Espreitemos, então, os melhores do ano desta casa. A primeira nota de destaque, mormente pelo simbolismo de regeneração da escola de sons mais ou menos “perdida” do rock matemático, é a natural consagração da estreia em disco dos americanos Battles como título máximo do ano. Eles não só deram novo fôlego e expressão a uma feição rock mais angular e técnica como, em paralelo, a apresentaram às novas gerações, garantindo a sobrevivência de um género que, por ser pouco dado a seguidismos e modas de momento, é normalmente posto à margem dos canais de distribuição dominante. Do outro lado do Atlântico, o misterioso Burial fez coisa parecida com o seu segundo álbum e merece a segunda posição do pódio, embora noutra órbita, desvendando dimensões novas do dubstep, assim confirmando virtudes do género bem além do habitat natural underground londrino. No último lugar da trindade de excelência, suplantando por muito pouco o magnífico quarto álbum dos conterrâneos The National – claramente os incontestáveis ganhadores do orbe pop-rock – surge a grande revelação da música americana para este ano, os Yeasayer e um disco de estreia esteticamente ambicioso e voltado para as novas coordenadas da folk.

Nos lugares seguintes da tabela, dois esteios da música escandinava: os dinamarqueses Efterklang – que finalmente parecem ter encontrado o complemento de criatividade mais oportuno para o pragmatismo técnico que já se lhes conhecia – e o debutante sueco Alex Willner (The Field), adepto incondicional do minimalismo techno. A estes, seguiu-se a bizarria de Noah Lennox (Panda Bear) que, aproveitando uma pausa dos Animal Collective, nos ofereceu um disco recheado de belas especulações pop. Ainda no domínio dos chamados “projectos paralelos”, o canadiano Spencer Krug (Sunset Rubdown), editou o melhor dos seus discos individuais, demonstrando que a sua verve (e a sua carreira) não depende dos Wolf Parade. O último par de discos dos primeiros dez do ano é encerrado por dois projectos europeus. Sascha Winkler, artisticamente chamado Kalabrese, é o underdog do ano e um valor seguro para anos vindouros, com um impressivo primeiro álbum a merecer escuta atenta. A fechar, os germânicos Einstürzende Neubauten, senhores doutos do rock industrial europeu que, ao fim de trinta anos de carreira, ainda são capazes de reinventar-se.

Cá pelo burgo, o ano de 2008, trouxe uma tardia consagração comercial a Jorge Palma (foi preciso o homem escrever um disco mais comercial para muitos portugueses o ouvirem pela primeira vez!) e confirmou a solidez do estatuto de David Fonseca. JP Simões, o compositor português que deu luz aos Belle Chase Hotel e ao Quinteto Tati, escreveu um dos melhores discos do ano, numa clara homenagem à sua predilecção pela geração setentista da música brasileira. Este foi, também, o ano de afirmação definitiva de três projectos: os Micro Audio Waves que, depois de algum reconhecimento além-fronteiras, viram finalmente a sua música a merecer alguma exposição e o reconhecimento devido, os lisbonenses Hipnotica, cada vez mais um valor firme das tendências mais abstractas da música lusa, e Old Jerusalem, o espaço solitário com que o cantautor portuense Francisco Silva nos vem deliciando. Nas revelações, destacando-se da miríade de edições avulsas que subitamente invadiram o mercado nacional, merecem referência os experimentalistas Tropa Macaca, projecto de Ju-Undo e Símio Superior, com uma belíssima estreia em vinil, o conceito The Partisan Seed, onde o ex-Kafka Filipe Miranda desvenda posturas intimistas e DJ Ride, com uma impressiva primeira aparição, a prometer altos voos num futuro próximo. A finalizar, e porque os últimos podem ser os primeiros, o destaque maior do ano nacional foi o regresso do homem dos sete instrumentos, Júlio Pereira, num sublime exercício de redescoberta das raízes da música lusa e respectivas convergências com espaços e referências sonoras de outras partes do planeta.

E assim se fez música em 2007.

Os dez mais (internacionais):

1.º Battles, Mirrored
2.º Burial, Untrue
3.º Yeasayer, All Hour Cymbals
4.º The National, Boxer
5.º Efterklang, Parades
6.º The Field, From Here We Go Sublime
7.º Panda Bear, Person Pitch
8.º Sunset Rubdown, Random Spirit Lover
9.º Kalabrese, Rumpelzirkus
10.º Einstürzende Neubauten, Alles Wieder Offen

Os dez mais (nacionais):
1.º Júlio Pereira, Geografias
2.º Tropa Macaca, Marfim
3.º JP Simões, 1970
4.º Micro Audio Waves, Odd Size Baggage
5.º Hipnótica, Better Communities For Better Days
6.º DJ Ride, Turntable Food
7.º Mário Laginha Trio, Espaço
8.º Old Jerusalem, The Temple Bell
9.º Blasted Mechanism, Sound in Light
10.º The Partisan Seed, Visions of Solitary Branches

Para consultar a lista completa dos trinta melhores discos do ano, clique aqui.

domingo, 23 de dezembro de 2007

Robert Plant & Alison Krauss - Raising Sand

7/10
Rounder Records
2007
www.robertplantalisonkrauss.com



O facto de os protagonistas desta dupla virem de órbitas musicais normalmente pouco "conciliáveis" (mesmo em termos ideológicos), alimentou a curiosidade dos melómanos sobre a convergência artística que o "histórico" produtor/compositor da música americana (e das mais finas estirpes da folk do seu país) T. Bone Burnett imaginou e passou à prática. Além de ter operado a improvável aproximação entre Robert Plant, voz dos anais rock com os Led Zeppelin (o colectivo está na iminência de um regresso anunciado), e Alison Krauss, estrela multi-premiada da country/bluegrass, Burnett reuniu à volta deles uma trupe de músicos do escol americano que, entre ele próprio e outros, juntou o seminal artesão de experiências vanguardistas Marc Ribot (colaborador regular de John Zorn), o lendário guitarrista Norman Blake (tocou com gente como Steve Earle, Bob Dylan, June Carter, Joan Baez, Johnny Cash ou Kris Kristofferson), o instrumentista Mike Seeger e o baterista Jay Bellerose.

De Burnett já se conhecia o alento ocasional de pedagogo e historiador das potencialidades da folk, com orgulho nas raízes e, sobretudo, com o firme propósito de inspirar atalhos futuros. Mais do que ser um mero colector ou um reverente admirador/intérprete, o mestre sempre deu mostras de buscar soluções contra qualquer tipo de estagnação criativa no género e, desta vez, nada melhor do que convocar um agrupamento de músicos e vozes para servir uma homenagem à tradição musical americana. Trata-se, afinal, de erguer uma consistente colecção de revisões de canções celebrizadas por Gene Clark, Sam Phillips, Tom Waits, Townes Van Zandt, Roly Salley, Allen Toussaint, os Everly Brothers ou Little Milton. A música é intencionalmente poeirenta e oldie, como bem convém ao melhor estilo blues-country, num registo amplo o suficiente para passar pelo sujo assombramento ("Rich Woman"), pelo romantismo ("Sister Rosetta Goes Before Us") ou pela deriva atmosférica ("Trampled Rose") com a mesmíssima eficácia. Depois, as vozes de Plant e Krauss conseguem, aqui e ali, instantes de pura magia, mormente quando são chamadas a mostrar-se fora dos padrões habituais ou, como no bem sucedido tema de abertura, se ancoram mutuamente. Do delta do Mississipi a New Orleans, do Texas ao Kentucky, Raising Sand é uma interessante síntese da história recente da música americana e, embora nem todas as peças sejam uniformes nos atributos (salve-se dessa incerteza a produção, sempre excelente), não deixa de ser uma oportuníssima declaração.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Dirty Projectors - Rise Above




O conceito por detrás deste disco pareceria, por si só, um devaneio curioso e desafiante do trajecto experimentalista dos Dirty Projectors. Senão, vejamos: Dave Longstreth, guru desse quarteto nova-iorquino, propunha-se regravar, fazendo uso apenas das reminiscências da sua memória, o álbum Damage, clássico punk que, em 1981, deu a conhecer os Black Flag (e, com eles, o então "novato" Henry Rollins). Volvida mais de uma vintena de anos da edição desse registo e da pertinência do discurso panfletário (e eivado de cólera vocal de Rollins...) subscrito pelos Black Flag, Rise Above é reflexo de uma admiração moldada pelo tempo e, por isso, bem distante das matrizes hardcore em que se inspira. A proposta aqui, como poderia antecipar-se pelas raízes nova-iorquinas dos Dirty Projectors e pela tendência recente da escrita de Longstreth (evoluiu da folk "clássica" para escalas melódicas mais errantes), é um puro deleite de experimentação. Chame-se-lhe rock especulativo de câmara ou deriva math rock com corais, a verdade é que estamos perante um exercício tenso e anguloso, com impaciência rítmica e múltiplas esquizofrenias, no mesmo jeito com que os Deerhoof vêm trabalhando, nos últimos anos, uma nova arquitectura da canção rock.

Depois, mais do que meramente contemplar a luminária de Rollins e companhia, Longstreth mostra-nos uma genuína reciclagem de formas e conteúdos, onde a "sagrada" hostilidade dos Black Flag e o pragmatismo instrumental da matriz punk se convertem numa tensa fantasia de abstracções. Ao invés da catarse explosiva de Damaged, dir-se-ia que Longstreth ensaia outro tipo de purgação, assumidamente mais luminosa. Nesse festim cabem o psicadelismo, as gradações de estilo (entre o pastoral, a pop, a matemática rock, o tribalismo africano, a música de câmara, as cordas e as distorções...), a afeição pela anomalia, as descontinuidades nos tempos, a excitação com o irregular. No final, não só fica feita uma celebração ímpar (sobretudo, pelo contraste estético) da importância inspiradora do punk, como sobra um documento genuinamente pós-modernista, algo grotesco e obtuso, sem receio de assumir-se bizarro, mas não menos compensador por isso. E um ou outro excesso pontual, se afasta mentes menos prevenidas e adeptas de produtos mais conformistas, há-de fazer as delícias daqueles que subscrevem incondicionalmente a cartilha da aventura.

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segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Sunset Rubdown - Random Spirit Lover


8/10
Jagjaguwar
Sabotage
2007
www.sunsetrubdown.net




Ramificação directa dos mediáticos Wolf Parade (algumas vezes iniquamente desconsiderado com o rótulo de projecto "secundário"), o quarteto Sunset Rubdown começou por ser uma invenção individual de Spencer Krug, crescendo depois para o formato de banda, como noutros casos da cena musical de Montreal - onde cada vez mais (e melhor) se aproveitam sinergias criativas (o próprio Krug está nos Wolf Parade, nos Sunset Rubdown, nos Frog Eyes e nos Swan Lake). Assim se reuniu, nos últimos anos, uma família de intérpretes que, conhecendo nos Arcade Fire o topo do reconhecimento internacional de uma estética cheia de particularidades e derivações, vai construindo um cancioneiro pop para o novo século. No caso dos Sunset Rubdown, e marcando distâncias para o pendor mais pragmático dos Wolf Parade, a coisa assume proporções quase vaudeville, sobretudo na forma como são exploradas as dimensões mais teatrais (e hiperbólicas) de melodia, ora com a tentação das vertentes progressivas e arty do rock, ora no recato dos registos mais minimalistas. Em qualquer dos casos, Random Spirit Lover é um produto manifestamente tenso e nervoso, obcecado com o detalhe e as sucessivas mutações e nunca deixaria de ser um álbum de absorção lenta. Demora a chegar-se à intimidade com um discurso tão variegado e de arquitectura tão minuciosa e ambivalente entre a delicada transparência e a labiríntica opacidade. Mas, uma vez dados os ouvidos ao dédalo - com a paciência para desfiar pormenores e preciosidade melódicas "encobertas" - a surpresa faz-se regra a cada variação tonal, a cada camada de som que se acrescenta às outras e a cada flutuação da voz. Isto é pop sem receio da ambição, a tentar os máximos do épico (pelo menos tanto quanto pode ser-se épico nos dias de hoje) e, com subtileza, elegância e elevação técnica, o resultado é glorioso. Basta deixar que a perplexidade das primeiras audições dê lugar ao conforto de perceber que, por detrás da imensa pompa instrumental e da encriptação da música, há circunstâncias novas para desvendar em cada peça e em cada visita.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Flykkiller - Experiments in Violent Light

7/10
Flykkllr Records
2007
www.flykkiller.com



Depois da emersão de uma parte significativa da cultura underground de Londres para o espaço mediático com a emancipação do movimento dubstep, não estranha a novel curiosidade dos públicos (e críticos) por outras descendências da electrónica que moram na capital inglesa. A última sensação dessas actividades "marginais" são os ainda anónimos Flykkiller, projecto de convergências entre o produtor Stephen Hilton, parceiro de David Holmes no quarteto The Free Association, e a vocalista de origem polaca, Pati Yang. Aceitando electrónicas multiformes (na estética e nos tempos) como esteio estruturante das composições, o debute da dupla revela ímpetos experimentalistas em redor de um ideário beats com referências importadas do underground rap, a que se somam, com curioso sentido de oportunidade, poeiras e interferências de electrónicas esparsas, breves cuts de "classicismo" de cordas à Craig Armstrong, aparições pontuais de instrumentações acústicas, ruídos ocasionais, mandamentos pop e uma ou outra derivação pela world music ou pelo chill out. Com tamanha panóplia de substâncias na mescla, o risco de erguer uma linguagem desconexa ou "desorientada" era uma circunstância crítica mas, em boa verdade, Experiments in Violent Light não só não dá mostras de deslizes na consistência, como ainda suplanta cepticismos quanto à eventual imiscibilidade orgânica dos ingredientes, sobrando uma rara sensação de completude e coerência. A par disso, o disco sugere ambientes vários de exotismo e sensualidade, de negro e sinistro, de tangências ao psicadelismo e à cenografia (pormenor particularmente evidente no último terço do alinhamento, onde algumas breves cedências à previsibilidade chill out penalizam o opus). No final, uma electrizante remistura do tema-título pelo "padrinho" David Holmes recoloca Experiments in Violent Light na rota certa. Uma revelação interessante.

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terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Mazgani - Song Of the New Heart

7/10
Naked
Independent Records
2007
www.myspace.com/
mazgani



Quando a prestigiada publicação Les Inrockuptibles fez nota de destaque sobre a música do iraniano Sharyar Mazgani, há coisa de um par de anos, então incluindo-o num rol de músicos-revelação a observar nos anos seguintes, poucos seriam os melómanos portugueses a conhecer a sua música e a saber da ligação de quase duas décadas do compositor a Portugal. De então para cá, o músico radicado em Setúbal viu crescer à sua volta um ainda injustamente pequeno (tendo como referência a dimensão artística e a qualidade do conceito) culto de admiradores - a vitória no festival Termómetro Unplugged de 2005, já com a companhia de Sérgio Mendes (guitarra), Rui David (bateria) e Victor Coimbra (baixo), foi apenas uma etapa na consagração que se previa - rendidos a um som de nostalgias folk, com o norte nos cânones "clássicos" de Nick Drake ou dos primórdios de Leonard Cohen (assumidamente uma das bússolas do iraniano), mas com oportuníssimas divagações pelos ensinamentos das escolas rock contemporâneas, sobretudo na forma como, na guitarra, o acústico se enlaça com o eléctrico para o desenho das melodias. O resto é ténue pó de melancolias e uma voz assombrada pela intimidade, tão capaz de mostrar-se levitante e utópica como, de seguida, render-se ao ónus das evidências e deixar-se resvalar para o grave arrastado. Em qualquer dos registos - aí fazendo jus ao título do disco - as eufonias de Mazgani são de puro romantismo, de redenção e espiritualidade, cruzando esperança e saudade. E isso é feito com subtileza e sentido de proporção e, mesmo sem desvendar uma fórmula musical especialmente inovadora, acaba por permitir a descoberta (para aqueles que ainda não o conheciam) de um intérprete para seguir com efectiva atenção no futuro próximo.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Sigmatropic - Dark Outside

6/10
Tongue Master Records
2007
www.sigmatropic.gr



Apesar de estar sediado num país (Grécia) distante dos principais círculos de distribuição de música na Europa, o projecto Sigmatropic despertou a atenção da comunidade melómana quando, há quatro anos, reuniu na mesma edição (Sixteen Haiku & Other Stories) uma ilustre trupe de convidados para emprestarem a sua voz a uma colecção de textos musicados e escolhidos na obra do poeta ("nobelizado" em 1963) Giorgos Seferis. Do impressivo rol de ajudantes constavam nomes como Robert Wyatt, Cat Power, James Sclavunos, Howe Gelb, Lee Ranaldo, Mark Eitzel e Laetitia Sadler. Alguns repetem conivências neste Dark Outside, conferindo ao disco uma diversidade vocal muito interessante e, mais do que isso, demonstrando inesperadas paridades com as coordenadas musicais de Akis Boyatzis (o guru-compositor dos Sigmatropic), especialmente quando a órbita das composições os obriga a distanciaram-se do conforto do habitat natural. Musicalmente, a proposta é a natural descendência da obra de debute, dando mostras de evolução da linguagem electro-folk e, em consequência disso, da tecedura mais consistente das canções. Ao mesmo tempo, e marcando um certo contraponto com o antecessor, Dark Outside é banhado por uma luminosidade não escutada antes, tanto no talhe melódico como na presença ocasionalmente menos taciturna das vozes (Anna Karakalou, nova voz residente do projecto, não brilha menos do que Robert Fisher, Howe Gelb ou Carla Torgerson). Único senão: no meio de uma família de vozes tão fecunda, o monocordismo (ou a previsibilidade) da voz de Boyatzis - particularmente notório em "Position One" ou "Monologue" - destoa e acaba por estorvar a afirmação de qualidade que os momentos altos ("A Song in My Wallet" ou "White") do disco faziam adivinhar. Ainda assim, Dark Outside conjuga substâncias suficientemente interessantes para merecer uma escuta de cortesia.

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sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Phosphorescent - Pride






Apressadamente entronizado pela crítica especializada como um dos mais fidedignos herdeiros de algumas das ramificações genealógicas da folk americana "tradicionalista", Matthew Houck tem no conceito Phosphorescent um espaço de curiosas manifestações musicais. Mais do que meramente fazer jus a esses rótulos que quiseram colá-lo ao legado Dylan, a música de Houck desvenda não só os reflexos de um aturado processo de transcrição dessas referências para a modernidade, mas também uma imensa vontade de afirmar um cunho próprio. Nesse particular, e num registo que pede meças às órbitas mais inspiradas de Will Oldham, marcam pontos uma voz de belas inflexões e com peso melódico impressivo e a profundidade estrutural das composições. De resto, Pride - terceiro tomo de Houck - é um disco que aposta em duas dimensões da emoção, aquela que se refugia na íntima e melancólica balada sem artifícios técnicos, ou, a outro nível, aquela que se ampara em revestimentos levemente mais psicadélicos (aí se reconhecendo algumas afinidades, ainda que distantes, com os Animal Collective - ouça-se o tema de abertura) ou de espiritualidade tipicamente sulista. O resultado é ambíguo, simultaneamente vulnerável e possante, distante do típico registo de cantautor e com momentos de belíssima construção melódica com arranjos. E os ápices de criatividade acontecem quando, em impressivas multiplicações de si mesmo e da sua voz, Houck se desassombra com os seus próprios fantasmas e personalidades solitárias e nos encanta ao mostrar faces diferentes de uma mesma verve. A soberba tríade "A Picture of Our Torn Up Praise" / "Wolves" / "My Dove, My Lamb" eleva faíscas acima das competências do resto do alinhamento mas isso não macula o desempenho global do opus. Todavia, fazendo bitola da mágica sedução desse trio de peças, fica a sensação de que há em Houck um impressivo filão de recursos à espera de ainda melhores obséquios. E que está na calha, para os anos vindouros, um disco ainda melhor do que este.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Black Dice - Load Blown

5/10
Paw Tracks
2007
www.blackdice.net



Embora não haja um segredo tecnicamente depurado na sonoridade dos Black Dice, tampouco uma dinâmica passível de grandes flutuações, a música deste trio nova-iorquino traduz uma expressão artística que pouco tem de "estacionária". Normalmente erguidas sobre um lastro melódico mínimo (muitas vezes, ele não é imediatamente perceptível), as composições aceitam, depois, o propósito transgressor de buscar interferências gravitantes de ruídos e distorções multiformes e abrasivas. Essa filosofia subversiva punha acento tónico, especialmente numa série de edições avulsas anteriores ao primeiro longa-duração do grupo, no recurso à distorção, então mostrando uma semente de noise rock pungente (ao jeito dos momentos mais ácidos de John Zorn, por exemplo) que, paulatinamente, o trio foi deixando cair em favor de uma catarse mais electrónica. Se o eufemismo sintético conheceu ápice de inspiração em Beaches & Canyons, apressadamente entronizado há cinco anos como um acto de criação maior, de então para cá a fórmula motivou alguns reveses, ora perdida no assombroso emaranhado de probabilidades estéticas que criou, ora indecisa na preferência entre a acidez do passado e o escapismo electrónico de hoje. Load Blown, quarto longa-duração dos Black Dice, mesmo afastando parte significativa dessa irresolução ao confirmar o empolgamento da banda com o psicadelismo corta-e-cose electrónico (e a aparentemente definitiva dispensa das distorções avant-core da génese do grupo), não ajuda a repor equilíbrios, recuperando composições editadas pela banda nos EP's Manoman (DFA, 2006) e Roll Up/Drool (Paw Tracks, 2007) e juntando-lhes cinco peças novas. O conjunto soa a família disfuncional, muitas vezes confundindo repetição com preguiça e bizarria com hipérbole. Não pode dizer-se que seja um disco inconsequente, não o é em essência, mas fica a anos-luz da transcendência de Beaches & Canyons e nem sequer toca o "pragmatismo" melódico do antecessor, Broken Ear Record. "Scavanger" - muito ao estilo de Panda Bear - ou "Gore" são os fragmentos de criatividade que ressaltam da mediania geral.

Posto de escuta MySpace da banda

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Subtle - Yell & Ice

8/10
Lex Records
EMI Music
2007
www.subtle6.com



Activa há cerca de uma década, a etiqueta Anticon foi a invenção colectiva de uma trupe de músicos decididos a oferecer espaço editorial a um género musical com pouca divulgação nos canais mainstream e que, entre inúmeras derivações estéticas e tangências experimentalistas com outros géneros - aí se tornando o palco de genuínos híbridos musicais - acolheu aquilo a que as convenções chamam de underground rap como axioma dominante (ou, para todos os efeitos, como "rampa de lançamento" para outros horizontes). Não demorou até que, num mercado global (e, a uma escala mais pequena, nos Estados Unidos) habitualmente "amarrado" a convenções estéticas e, por isso, guardando uma reserva de gente sequiosa de sensações rap novas, começassem a despontar a ousadia e as abstracções dos protagonistas da Anticon, então solenemente apresentados ao mundo num colectivo com o mesmíssimo nome da editora e um tomo único, com o pomposo (e ambicioso) título de Music For the Advancement of Hip Hop. Corria o ano de 1999 e esse testemunho "progressista" conjunto de gente como Alias, Jel, Odd Nosdam, Sole, Doseone ou Pedestrian deu uma impactante pedrada no charco, sacudindo espíritos ociosos e, sobretudo, demarcando-se das tendências mais ligeiras (e previsíveis) para que o universo rap (ou como, depois, se rebaptizou ao serviço de géneros mais levianos, o orbe hip hop) paulatinamente se havia voltado. Lançada a novel onda de criatividade, a solo ou em grupo, os membros da editora (e suas afinidades artísticas e projectos paralelos), ergueram um catálogo diversificado, um verdadeiro caleidoscópio de manipulações do underground rap (maioritariamente) e algumas especulações e proximidades com fórmulas do indie rock ou da electrónica. cLOUDDEAD (Doseone + Odd Nosdam + Why?), Themselves (Doseone + Jel + Dax Pierson) , 13 & God (Jel + Doseone + Notwist) ou Subtle (Doseone + Jel + Dax Pierson + Alexandre Kort + Marty Dowers + Jordan Dalrymple), ou mesmo os projectos individuais Dosh, Why? ou Bracken, tornaram-se faces notadas da editora e da sua postura, dando mostras da imparável verve dos seus membros-fundadores e amigos e, acima disso, definindo uma linguagem artística singular que, fruto de ambições pessoais dos músicos ou do apetite crescente dos mercados discográficos, se foi dispersando por outras editoras.

Também assim sucedeu com os Subtle, uma espécie de ampliação do conceito Themselves que, além de Doseone (vocais), Jel (percussão) e Dax Pierson (teclas), acolheu o guitarrista Jordan Dalrymple, o violoncelista Alexander Kort e o clarinetista Marty Dowers. O "crescimento" instrumental deu outra amplitude ao traço costumeiro da tripla, depressa afirmando um colectivo com vontade de ensaiar outras invenções. A fórmula conheceria, em pouco tempo, a consagração merecida - depois de anos a ficarem-se pela "palmadinha nas costas" da crítica especializada - com o magnífico For Hero: For Fool, do ano transacto. Se esse disco se soltara definitivamente de quaisquer amarras estruturais (nesse particular, marcando diferenças as inflexões vocais de Doseone), cruzando uniformidades rap com cores e bizarrias da electrónica ou do rock experimental, Yell & Ice é uma breve (nove trechos) colecção de revisões de alguns dos temas emblemáticos do antecessor. Mais do que fixarem objectivas na mera tarefa de remisturar as construções, os Subtle desmontam as canções em partes, baralham-nas, somam novas vozes (Tunde Adebimpe, dos TV on the Radio, Chris Adams, de Bracken, Yoni Wolf ou Dan Boeckner, dos Wolf Parade), cortam excertos, alongam, desconcertam. Pelo meio, com títulos novos como se impunha (tal a quase impossibilidade de associar novas proles e os originais que as inspiraram), cabem também peças integralmente originais. Assinado com os predicados do costume, o novo opus não só não destoa do cancioneiro Subtle (e da maravilhosa baixela de sons com ele imediatamente conotada), como fica muito próximo do brilhantismo encriptado e escuro de For Hero: For Fool. Óptimas notícias, portanto. Fica o aviso: fulgurante e irresistível vício à vista...

sábado, 1 de dezembro de 2007

Belleruche - Turntable Soul Music

5/10
Tru Thoughts
2007
www.belleruche.com



Inerente ao conceito de turntablism está, na essência, um mapa genético de manipulação de sons que, em última instância, mais não é que uma via de artificialismo na criação musical. Seja pelo recurso a samples importados de discos de veneração, aos jogos malabares com as batidas para a inserção de loops ou outra qualquer forma de trabalho manual, a expressão foi criada em meados da década de noventa, para fazer destrinça entre a mera função de passar música e o DJ que usa o misturador como um instrumento. Ao trazer esse conceito para o seu referencial estético e, mais do que isso, ao colá-no à expressão soul para baptizar o seu primeiro registo discográfico, o trio londrino Belleruche coloca-se perante um enigma de critério. Cruzar a alma soul - aqui muito bem representada num registo vocal (de Kathrin DeBoer) à procura de confortos "intemporais" (Nina Simone é luminária instantânea) - com construções manipuladas é coisa a que dificilmente se dá sabores de novidade, de tal maneira se estafaram esses argumentos com as modas passageiras do trip hop. Amarrado a essa limitação à nascença, Turntable Soul Music acaba por soar deslocado no tempo e, pior do que isso, desvenda uma incapacidade gritante para dar novo fôlego às fórmulas gastas (os Break Reform entram-nos na memória quase imediatamente e, mais longe, um espectro Massive Attack). As canções tocam, aqui e ali, uma negligente e confrangedora previsibilidade, vivendo de melodias (e melancolias) preguiçosas, raramente abrindo espaço para a surpresa ou o instante de inspiração. Salva-se um ou outro trecho - a nervosa "Bump" ou a paradigmática "Balance" vão acima do serviço mínimo - mas fica a sensação de que, o álbum se fica pela cortesia de recuperar um género sem conseguir induzir-lhe uma faísca de revitalização.

Posto de escuta MySpace da banda

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Yeasayer - All Hour Cymbals

8/10
We Are Free
Sabotage
2007
www.yeasayer.net



Depois das promessas antecipadas pelo muito interessante primeiro single ("Sunrise"), os nova-iorquinos Yeasayer concluem cerca de um ano de actividades com a edição do álbum de estreia. Mais do que ser uma mera resposta às expectativas sustentadas pelo cartão de visita, All Hour Cymbals desvenda um colectivo fértil em ideias e genuinamente nómada na hora de assentar arraiais nesta ou naquela referência estética. Dito isto, melhor se percebe que além de assumirem reverente descendência da pop madura de David Byrne, os Yeasayer colham ensinamentos de outras doutrinas, ora aceitando um certo saudosismo da cartilha psicadélica (com os Beach Boys ou os Jefferson Airplane à cabeça das referências), ora afinando melodias pelas escalas progressivas ou, em jeito de luminária mais ténue (mas não menos presente), bebendo de fontes de reminiscências africanas e orientais. Concentrar semelhante profusão de estéticas e filosofias num discurso uno não seria tarefa fácil, tal o risco de dispersão de ideias ou, pior do que isso, de construir um disco demasiado poroso para ser levado a sério. A verdade é que All Hour Cymbals desvenda exactamente o oposto, ao denotar um sentido de harmonia incrível, não só dando mostras da aptidão do quarteto em adaptar a miríade de influências a um equilibradíssimo denominador comum, mas também, e sobretudo isso, do desejo de afirmação de uma identidade própria, beneficiária das sinergias do processo criativo, é certo, mas com um vincado cunho pessoal. Depois, as canções têm o dom da surpresa, enchendo a mente de recordações e, ao lado destas, sugerindo um irresistível desfile de estímulos novos e refrescantes. Um esplêndido debute e uma das belíssimas surpresas da colheita americana deste ano.

Posto de escuta Sunrise2080Forgiveness

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Signal - Robotron

7/10
Raster-Noton
AnAnAnA
2007
www.raster-noton.net



Quando três intrépidos alemães com traquejo nas electrónicas minimalistas (Olaf Bender, Carsten Nicolai e Frank Brettschneider) fundaram o selo Raster-Noton estavam, no fundo, a montar um palco de divulgação de um género acostumado à marginalidade. Em pouco mais de oito anos de sobrevivência, a editora (saída da fusão entre a Rastermusic e a Noton) ergueu um catálogo que, tirando do anonimato alguns dos artífices minimalistas mais talentosos - gente como o conceptualista William Basinski ou o "microscópico" IDM Ivan Pavlov (CoH), entre muitos outros - ajudou ao recrudescimento de uma espécie vanguardista de agentes electrónicos. A par das edições de terceiros, Bender (como Byetone), Nicolai (sob o celebérrimo pseudónimo Alva.Noto) e Brettschneider (com a assinatura Komet) construíram discografias individuais, aí destapando linguagens e ciências próprias que, ocasionalmente, fizeram convergir em dois projectos conjuntos: Produkt (neste, junta-se ao trio Tilo Seidel) e Signal.

Robotron é o segundo produto da sigla Signal, depois de Centrum, de há sete anos, e, tal como esse, é uma colecção de material avulso gravado pelo trio num período de anos anteriores à edições. Desta vez, a recolha cobre um sexteto de anos, de 2001 a 2006, em sessões de improviso tripartidas entre Berlim, Tóquio e Chemnitz. A nota de destaque do disco, além do inevitável pendor minimalista, eventualmente menos tímido (ou formalmente menos rígido) do que noutros trabalhos destes senhores, é a aposta na integração de muito lacónicas (e, por isso, oportuníssimas) texturas noise para suprir os vácuos. Depois, as peças insinuam um jogo de alternâncias, extremamente hábil diga-se, entre o recato da batida mínima (e contínua) e a tensão crescente da sobreposição de camadas de som. A fórmula nem sempre toca os mesmos êxtases ("Rawema" e "Epirex Motor" são portentos!), resvalando por breves instantes para a monotonia do piloto automático, mas demonstra uma solidez irrepreensível e uma geometria de sons que, não soando a produto "novo" (nem o pretenderia...), tem o inegável mérito de diluir, na mesma solução sónica, os juízos de três mestres do minimalismo. E isso é, por si só, motivo mais do que suficiente para encontrar gozo neste Robotron.

Posto de escuta Excertos do álbum

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Letters Letters

7/10
Type
AnAnAnA
2007
www.typerecords.com



É bem possível que mesmo os melómanos mais atentos ao fenómeno musical não identifiquem imediatamente o nome de Mitchell Akiyama. Embora o panorama sonoro de Montreal tenha ganho uma notoriedade acrescida com a recente explosão de alguns projectos locais, sobretudo os ubíquos Arcade Fire, não é menos verdade que esse impacto mediático não chegou a muitos dos protagonistas underground da metrópole canadiana. Um desses artífices na margem é precisamente Akiyama que, em paralelo com um incerto percurso a solo, concebeu, agora, o projecto Letters Letters, uma parceria criativa com dois amigos da cena musical canadiana. A saber: Tony Boggs, cúmplice de Akiyama nos Désormais, e Jenna Robertson, o cérebro por detrás do conceito Avia Gardner.

A proposta de Letters Letters não é, como seria de esperar de Akiyama, um mosaico de mera especulação electrónica como os seus trabalhos individuais. Aqui, o plano conceptual é de outra substância, é um rascunho de pop poeirenta e algo assimétrica, sem receio de misturar o pragmatismo estrutural de "canção" (e a formatação que essa matriz construtiva envolve) com o devaneio psicótico de subliminares sabores noise. Trata-se, essencialmente, de redescobrir texturas e atalhos de uma linguagem mais directa - porque mais "emotiva" - e que põe enfoque nos arranjos e numa orgânica de pormenor para erguer composições que trazem à memória, aqui e ali, a técnica de uns Boards of Canada e, luminária mais distante, o frio romantismo dos finlandeses Husky Rescue. Os sintetizadores e as caixas de ritmo fazem o discurso dominante, quase sempre num arrastado devaneio de arritmias, provocando-se mutuamente, saindo de órbita como num sonho incorpóreo, para só baixarem à mundanidade e à disciplina com a regra melódica das vozes (soberbo o expressionismo metamorfoseado de Jenna em "Want To"!) e das guitarras minimais. A desproporção em equilíbrio com o minimalismo é uma dúvida que paira no ar ao som de Letters Letters, atirando incertezas para cima da música do trio canadiano. Esta coisa da razão e da fome de certezas no bicho humano é coisa tramada! O que vale a Akiyama, Jenna e Boggs é que o disco, a despeito de um ou outro tiro de pólvora seca, acerta amiúde na mouche. E o homo sapiens pode descansar outra vez.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Na sala de espera

Num ano particularmente activo no seio das electrónicas, mais uma sugestão para satisfazer apetites de final de ano. Trata-se da primeira proposta em longa-duração do francês Chloé que, depois de um par de EP's promissores, nos apresenta agora um discurso escorreito e bem construído, numa orgânica minimalista e a espreitar cenografias próprias do lo-fi mais escuro. O primeiro avanço do álbum The Waiting Room é este "Be Kind to Me".



quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Burial - Untrue

8/10
Hyperdub
Flur
2007
www.myspace.com/
burialuk



A promoção de alguns artífices das órbitas dubstep londrinas das margens para a primeira linha da música britânica, no ano transacto, demonstrou o interesse dos públicos por uma forma de musicalidade com identidade urbana e, por isso, marcada pela densidade emocional das depressões e misantropias modernas. Escuro na essência e formalmente descomprometido, quer no tempo quer nas suas referências estruturantes, o entendimento que protagonistas como Burial (e, depois dele, Kode9, o boss da Hyperdub) fizeram da expressão musical acabou por consistir, também, num fino retrato do desconforto do sujeito urbano face às exigências imprescindíveis da sociabilização nas metrópoles. Nesse particular, a geração dubstep dá voz musical a uma espécie de segunda vaga de misfits, depois da leva rebelde que ergueu o punk ao estatuto de discurso libertário no 70's, na época com a visibilidade e o bizarro impacto que se conhece. Claro que, sob o ponto de vista formal, não se adivinha anarquismo (ou sequer uma insinuação distante dele) na música de Burial. Trata-se, sobretudo, de música feita para acomodar intelectos mais inquietos com o mundo à sua volta mas que, ao invés de apontarem frustrações e sentimentos de exclusão (essa a premissa explosiva do punk) a qualquer alvo fácil, se viram para dentro e buscam respostas solitárias de sobrevivência. É, portanto, uma revolução silenciosa, acima de tudo mental e pessoal, tímida e contemplativa.

Depois de um primeiro álbum homónimo muito aplaudido, continua a saber-se pouco sobre este Burial. Dele se percebera, nesse primeiro exercício, que ser um discípulo dubstep não é necessariamente um embaraço para buscar outras fórmulas formais. Untrue reforça essa ideia, trazendo-nos grande parte das iguarias do debute (é inconfundível a matriz de beats deste senhor) mas somando-lhes, por comparação com o antecessor, um ênfase maior nas vocalizações. Esse compromisso acrescido com as vozes, ainda que filtradas e espectrais, dá ao som de Burial uma dimensão mais "humana" - por oposição aos frios maquinismos do primeiro registo - e com uma impressão melódica mais contínua (a magnífica "Archangel" é o melhor exemplo disso). Depois, além da miscigenação mais ou menos evidente com outras descendências da música de dança londrina, é notório o cuidado no detalhe das construções, fazendo de Untrue uma obra de estruturas mais complexas do que o primeiro disco, sem prejuízo da natureza esparsa típica da sub-cultura Burial. Ele é porta-voz de um silencioso motim de desajustados (os tais misfits de segunda geração) que, afinal, partindo das íntimas inquietudes e assombros da alma (a sua e a dos ouvintes-seguidores), não é mais do que o desejo de integração nas urbes modernas, despidas de afeições e tomadas pelo amor próprio. Untrue pode muito bem ser a luminária invisível com que esses espíritos inquietos se esquivam do egoísmo para respirarem melhor. E é, indiscutivelmente, um grande disco.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Duran Duran - Red Carpet Massacre

7/10
Epic
Sony BMG
2007
www.duranduran.com



A dada altura da década de oitenta os britânicos Duran Duran eram o símbolo máximo da pop europeia no que toca à exploração acertada das virtudes da imagem ao serviço da música. Não só ficaram célebres algumas realizações do agrupamento no capítulo dos vídeoclipes - pioneiros no aproveitamento de uma dimensão visual então pouco "rentabilizada" da indústria musical (muitas vezes, em apoio à sétima arte) - como também fez história o conceito indumentário de Simon LeBon e companhia. Tais condimentos estéticos, medidos na exacta proporção de qualquer manual de como fazer uma super-estrela, serviram como o complemento perfeito para o punhado de singles que projectaram o grupo para a primeira linha da música inglesa e para uma fase de grande fulgor mediático que duraria até pouco mais de meio da década. Embora nunca tenham vivido um período de cessação efectiva de actividades, os Duran Duran conheceram, depois desse auge, um balbuciante fluxo de edições que, invariavelmente, ora os foi empurrando para uma (injusta) meia-luz mediática, sobretudo pela ausência de canções inspiradas o suficiente para induzir a propulsão necessária em sentido contrário, ora os "diluiu" nos projectos musicais paralelos dos seus membros. A recuperação do tempo, do espaço e do dinheiro perdido, veio a conta-gotas e sem grande brilho, em razão das sucessivas alterações no alinhamento da banda e da indiferença de críticos e públicos à música que os Duran Duran iam oferecendo.

Astronaut, de há três anos, marcou a primeira reunião em disco do quinteto fundador dos Duran Duran desde 1986 (Notorious, desse ano, contara ainda com Andy Taylor em quatro trechos), mas não foi o exercício regenerador que, porventura, os cinco tinham imaginado. Três anos volvidos, nada melhor do que recorrer às alquimias do produtor do momento (Timbaland, pois então) e à caneta de Justin Timberlake para somar a notícia à música. E, se o efeito mediático dessas colaborações estaria afiançado, dando à partida um crédito de curiosidade à segunda etapa do "regresso" dos Duran Duran, impor-se-ia perceber em que medida o envolvimento dessa dupla valeria à personalidade sonora dos britânicos. Em boa verdade, resulta surpreendentemente bem a "modernização" que Timbaland opera nas texturas do grupo, renovando-lhe algumas das causas identitárias e trazendo-as ao que hoje se escuta, sem as contaminar e, acima disso, sem lhes subtrair arrojo e os finos sabores a alternativo que, mesmo nos dias áureos como figura mainstream, nunca saíram da ementa rítmica da banda. Depois, as canções desvendam uma (inesperada) criatividade, não necessariamente no sentido de se distanciarem do ideário Duran Duran que é conhecido, mas enquanto produtos sólidos de um desejo de reafirmação ("Nite Runner" ou "Skin Divers" são belíssimos exemplos de novos atalhos). E, como em todos os fôlegos de renascimento, há ápices de entusiasmo e instantes de menor inspiração, o que não impede Red Carpet Massacre de ser o melhor que os Duran Duran escreveram em anos e uma boa surpresa do que Simon LeBon e seus pares ainda têm para dar ao mundo pop.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Guitarra estrela...

Depois de se ter tornado um protagonista relevante no orbe electrónico com a alcunha Mondo Grosso, tendo erguido uma discografia consistente nas áreas do house ligeiro, do chill out ou do acid jazz, o japonês Shinichi Osawa lançou recentemente o primeiro registo de originais com o seu nome de baptismo (depois de dois mix LP's). O avanço inicial do álbum é uma revisão do clássico "Star Guitar", dos Chemical Brothers (é parte de Come With Us, de 2002), e conta com convidadas de nomeada, no vídeo e nas vozes. Nem mais nem menos: as nova-iorquinas Au Revoir Simone. Vale a pena ver e escutar. Outros trechos do registo The One estão disponíveis no MySpace de Osawa, basta clicar aqui.


segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Okkervil River - The Stage Names

8/10
Jagjaguwar
2007
www.okkervilriver.com



Dos três discos anteriores destes texanos, já se conheciam as habilidades de Will Sheff na hora de passar a palavras as casualidades do quotidiano, sempre num registo pautado por um certo negrume e por quimeras desordenadas, no limiar da depressão que não transpõe a derme. Ainda assim, embora subscrevendo essa submissão "natural" aos arbítrios do destino e, sobretudo, essa introspecção consciente sobre as suas próprias limitações enquanto personalidade humana, Sheff não fez da música dos Okkervil River um mero lenitivo de depressões pessoais, optando por usar a canção folk-rock noutras dimensões mais abertas e, dessa forma, eximindo-se dos clichés auto-centrados. O que não tinha ficado claro nos três registos anteriores da banda é que, além da perícia nas letras, também houvesse em Sheff e seus pares matéria melódica muito competente. E, embora Black Sheep Boy, de há dois anos, tivesse demonstrado um crescimento notório nesse particular, trazendo os Okkervil River a uma órbita mediática que não tinham experimentado antes, The Stage Names é o definitivo exercício de maturação do septeto. A nota de destrinça face ao antecessor é a franquia emocional deste álbum, claramente a apostar em ambientes menos introspectivos, graças à limpidez da produção e dos arranjos e, também, a composições mais escorreitas e animadas. O desfecho é, naturalmente, uma forma de expressão mais pop do que em qualquer outro registo dos Okkervil River. E isso não é, neste caso, sinónimo de cedências ou aligeiramento das capacidades artísticas que a banda sempre revelara; é, isso sim, como muito bem desvenda The Stage Names, o encontro dos poemas de Sheff com o equivalente musical que há muito mereciam. Excelentes notícias, portanto.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Boys Noize - Oi Oi Oi

7/10
Edição de autor
Flur
2007
www.myspace.com/
boysnoizemusic



Embora se trate de um tipo de som talhado essencialmente para os apreciadores dos sons electrónicos e, por essa via, acabe por estreitar as suas próprias margens de progressão noutros públicos, a música do projecto Boys Noize tem vistas largas na hora de escolher referências estéticas. Afinando pelo mesmíssimo conceito estrutural que consagrou recentemente gente como os Digitalism, os Simian Mobile Disco, os MSTRKRFT (estes há mais tempo) ou Justice, por exemplo, Alex Ridha - é ele o mentor escondido no epíteto Boys Noize - explora as ambiguidades (e consequentes pontos de convergência e divisão) entre a padronização mais consensual da chamada música de dança e a perversidade do experimentalismo inflamador. De resto, Oi Oi Oi, debute discográfico deste produtor alemão, terá sido pensado como uma obra intencionalmente perversa na essência, como bem convém à estética maximal que por aí anda e assenta, sobretudo, numa predisposição para potenciar o lado mais agreste (e ácido) dos sons digitais. Visto (e escutado) sob esse pressuposto, percebe-se melhor a matriz esdrúxula que as composições desvendam em cada uma das suas substâncias, desde os sintetizadores incrivelmente distorcidos (ou retorcidos?), às linhas de baixo a carregar nos graves e às estruturas repetitivas e insistentes. Todavia, o recurso à panóplia de manobras de diversão maximal não esconde a venturosa personalidade do álbum e o espírito subliminarmente ecléctico das propostas, a insinuar importações dos Daft Punk e outras derivas menos "clássicas". Traços de originalidade ligados a correntes de alta voltagem, está bom de ver.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Animais artificiais...e pop de estirpe!

Eles são uma das revelações do ano na música francesa e foram apresentados com o tema "U Turn (Lilly)", parte do filme Je vais bien ne t'en fait pas, de Philippe Lioret, do ano transacto. A canção é ilustrada com excertos da película (onde brilha a belíssima Mélanie Laurent) e faz parte do muito interessante álbum da banda parisiense Aaron (Artificial Animals Riding On Neverland), lançado no início do ano. Vale a pena escutar. O resto do álbum pode ser ouvido aqui.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Venetian Snares - My Downfall (Original Soundtrack)

7/10
Planet Mu
2007
www.venetiansnares.com



Embora tenha experimentado um trajecto consistente desde as fundações, o canadiano Aaron Funk (é ele quem assina como Venetian Snares) apenas viu reflexos mediáticos do seu trabalho há um par de anos, com o impressivo Ross Csillag Allat Szuletett, opus magno do seu catálogo, onde ensaiou afinidades improváveis entre a sua hiperactiva e impaciente máquina de beats e fragmentos de música erudita - alguns dos quais importados de Béla Bartók - ou da órbita jazz. Não obstante a aparente "conflitualidade" estética dos géneros, a verdade é que a mescla, além de empreender genuínas pérolas (a título de exemplo, escute-se "Öngyilkos Vasárnap" e a magnífica integração de um sample de "Gloomy Sunday", clássico de Billie Holiday, de 1933), também mostrou o engenho de Funk na hora de afinar convergências e montar cenários comuns entre a "agressividade" típica das suas electrónicas breakcore e a oposição plácida dos elementos clássicos.

Sabendo-se dessa expressão simbólica que Ross Csillag Allat Szuletett tem no catálogo de Aaron Funk, é de uma sublime ironia que o primeiro álbum em que são retomados alguns pressupostos conceptuais desse disco seja baptizado de My Downfall (Original Soundtrack). Não se tratando de uma banda sonora para a sétima arte, é como se voluntariamente o músico/compositor assumisse o casamento breakcore/clássica como um retórico declínio da sua arte e, perante ele, se propusesse erguer um acompanhamento musical ilustrativo. Efectivamente, tal como já o tinham sido as causas criativas de Ross Csillag Allat Szuletett, as revelações deste My Downfall são de algum alheamento face ao mero uso do breakcore de per si nas composições, denunciando um artífice em busca de outras linguagens e renovando as sinergias com os formatos clássicos de música, aqui sobretudo marcadas pelo envolvimento cenográfico e pelas construções harmónicas de cordas. O anunciado "declínio" é, afinal, um exercício de continuidade de Ross Csillag Allat Szuletett e isso são óptimas notícias para os adeptos de Venetian Snares. Se Aaron Funk continuar a censurar-se e a inventar as suas próprias "decadências" como nesta obra, o mais provável é que, impelido por ele enquanto figura de proa do movimento, o breakcore dê o salto emancipador que sempre adiou. My Downfall pode não ser disco para puristas desta estética - não o é, na essência - mas destapa virtudes artísticas e potencialidades que o género não deve ignorar. E não há qualquer decadência em admiti-lo.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Tropa Macaca - Marfim




Olhando o passado recente de ambos os protagonistas no underground da música nacional, não podia esperar-se que o debute discográfico como Tropa Macaca trouxesse a Joana da Conceição (chamam-lhe Ju-Undo) e André Abel (também assina como Símio Superior) algum senso convencionalista. Para eles, pouco importa o conceito de composição enquanto processo construtivo, talvez por ser racional demais; preferem ver a música como uma fruição subversiva do ruído e outros estímulos, quase casualmente conjugados. Dir-se-ia, nesse sentido, que os Tropa Macaca produzem música "incidental", tão episódica quanto pode ser a captação de uma qualquer causa (ou coisa) inspiradora. E tudo, mesmo tudo, pode ter servido de inspiração a este Marfim, apresentado em sumptuoso vinil branco, a comunicar-nos esse método de criação quase fortuito, recheado de especulações e derivas, sobretudo tentando retratar ondas, tensões e oscilações que, livremente, ocorrem indiferentes (e imunes) ao processo. É como se esta "música" já estivesse perante nós, mesmo antes de Joana e André a inscreverem nos tímpanos e isso confere a Marfim uma intimidade rara neste conceito sonoro. A orgânica das electrónicas e das máquinas (de Ju-Undo) é absolutamente esdrúxula, não tem epicentro nem coordenadas, é uma fera anidiana num indomável tropel sem regra de ritmo ou tom (ou rumo). A ela, junta-se a guitarra eléctrica (de Símio Superior) transfigurada, quase irreconhecível num disfarce de coisa electrónica (sublime a alquimia de efeitos!), afinal a mais conveniente veste para se juntar à extática fantasia de ruídos. E o pacto entre máquinas e guitarra conhece, agora, convergências mais firmes do que no passado do duo tirsense, num trio de peças contagiadas pelo psicadelismo e pelo desejo mutante.

"Tronco Nu", primeira aresta do LP, cresce do frio minimalismo para a fantasia tortuosa mas catártica, fechando-se a si mesmo em aliterações inflamadas da guitarra, sob o metrónomo das texturas electrónicas. Quase vinte minutos depois, entramos na "Zona do Bicho" ao som de um sucedâneo de vergastas e assim se desfia a composição, pendular e domadora, até o bicho electrónico se agitar em convulsões, se insurgir irascível, antes de se deixar tomar pela fadiga e amansar, com o chicote a zurzir. "Poço da Morte" é o mais escuro e labiríntico dos ensaios, a trazer à memória fragmentos ácidos dos Wolf Eyes, de pura abstracção e subliminar hostilidade, ao jeito de uma marcha militar doentia, ferina e aguda. No final, sobra a sensação de um abalo cerebral que impressiona e, em último caso, escrutina a validade de Marfim como um dos melhores produtos de vanguarda da música portuguesa dos últimos anos. Falta saber se os melómanos lusos (e não só) estão prontos para ir à tropa...

sábado, 10 de novembro de 2007

A Place to Bury Strangers




O aparato com que estes debutantes se apresentam sob o epíteto de banda mais volumosa de Brooklyn, por si só, é demonstração de uma postura ambivalente: ou a afirmação é pejada de arrogância (e espírito provocador) típica de recém-chegados à cena rock ou, pelo contrário, é sintomática da confiança que o grupo deposita na matéria criada. Ao mesmo tempo, dessa afirmação identitária derivam duas outras reflexões indirectas: uma é do domínio da contextualização, ao situar a música dos A Place to Bury Strangers no cenário criativo de uma das cidades da Grande Maçã, alinhando-os geograficamente com o berço de projectos como os Clap Your Hands Say Yeah, as Au Revoir Simone, os Oneida ou os Black Dice (todos de Brooklyn); a outra, mais eloquente quanto ao produto musical de per si, reside na utilização do trio nova-iorquino de um adjectivo conceptualmente tão encriptado para etiquetar a sua música. Volumosa.

Dizem os dicionários que, quando associada a vibrações sonoras, essa adjectivação exprime um som forte e cheio. E, de facto, assim são as substâncias do disco, em volumes altos, distorções redundantes e pedais, efeitos e ruídos. E densidades importadas do shoegaze. Coisa mais ou menos normal, depois da aventura (falhada?) de Oliver Ackerman, guru do projecto, nos precocemente extintos Skywave, onde se entretinha a descobrir os manuais da dream pop de olhos no chão. Agora, a tecedura é outra. E as influências primazes estão fora da América. Com os Jesus and Mary Chain (estes acima dos outros), os My Bloody Valentine ou os Spacemen 3 como luminárias, Ackerman e seus pares, partem em busca da pedra filosofal - o que é o mesmo que dizer de um novo Psichocandy. Afinal, os Jesus and Mary Chain também tiveram na estreia o auge de um percurso de quinze anos! Claro que comparar o primeiro opus dos A Place To Bury Strangers com uma obra tão emblemática quanto essa pode ser uma deriva de entusiasmo exagerado, mas não deixa de ser verdade que o disco capta como poucos (e foram muitas, imensas, as tentativas passadas de o fazer) a feição mais electrizante, misantrópica e perturbada do shoegaze. E tecnicamente o conceito é simples: texturas de guitarra em distorções ecoantes e filtradas por efeitos de pedal, feedback e estática, linhas de baixo robustas e um sentido colateral de percussão. Depois, a voz é volante, vagueia como um espectro e, mesmo num registo aparentemente estéril e sem ansiedade, tem o condão de imprimir um romantismo depressivo (e surpreendentemente "melódico") às canções. Melhor sucedâneo para saudosistas dos Jesus & Mary Chain não há, mesmo que trepando algumas décimas na escala de dBs.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Youssou N'Dour - Rokku Mi Rokka

6/10
Nonesuch Records
2007
www.youssou.com



Embora Youssou N'Dour seja um daqueles artesãos de música que imediatamente é conotado com o nicho generalista da world music - preguiçosa tipificação que pouco mais faz do que juntar na mesma estirpe tudo o que está nas margens das latitudes e longitudes da primeira linha da música mainstream - a verdade é que, também ele, adquiriu uma projecção mediática além desses mercados "secundários". E isso deveu-se, em primeira instância, à exposição crescente da sua voz na segunda metade da década de oitenta, mormente em discos consagrados de Paul Simon (Graceland, de 1986) e Peter Gabriel (So, do mesmo ano) e, também, ao activismo pelos direitos humanos que o levaria a dividir palcos, numa digressão da Amnistia Internacional de 1988, com gente como Bruce Springsteen, Tracy Chapman, Sting e o próprio Peter Gabriel. Paulatinamente, a música de N'Dour adquiriu expressão planetária, galgando as fronteiras do Senegal e, num plano mais ambicioso, vencendo barreiras estéticas próprias do som africano. A consagração internacional, em 1994, no celebérrimo dueto com Neneh Cherry (em "Seven Seconds", parte integrante do álbum Wommat) constituiu o corolário lógico de um percurso sempre em ascensão e confirmava, se dúvida ainda houvesse, as novas afinidades com correntes de som bem distantes das suas raízes m'balax (fusão de harmonias pop com colorações rítmicas afro-caribenhas) no grupo popular Super Étoile de Dakar.

Hoje, com mais de vinte discos editados e um trajecto irrepreensível no desejo de casar cadências e sabores africanos tradicionais com adornos importados da modernidade (chame-se-lhe "experimentalismo"), N'Dour é um seguro baluarte do que vale a pop africana ou, numa esfera mais íntima, do que é digna a diversidade sonora do Senegal. Ele tem, afinal, um duplo protagonismo: enquanto embaixador de linguagens ancestrais, transporta substratos do mais fino atavismo e tradição e, ao mesmo tempo, soma-lhes um espírito renovador. As vantagens conceptuais dessa mescla, como os altos e baixos da discografia de N'Dour confirmam, nem sempre são certos. Em boa verdade, Rokku Mi Rokka não é, nem de perto nem de longe, um disco magno. A presença incrivelmente catalizadora do ngoni de Bassekou Kayate - um dos sublimes instrumentistas da corrente cena maliana - não chega, em grande parte do álbum, para corrigir a decepção das melodias. Um recurso tão magicamente engenhoso quanto a voz de N'Dour - lembrem-se as sublimações derivações sufi do antecessor Egypt, de 2004 - merece outro serviço. E isso, a despeito da produção hábil do disco e de alguns instantes de boa poda ("Sama Gàmmu", "Létt Ma" ou "Dabbaax"), não chega para fazer de Rokku Mi Rokka um documento à altura do melhor Youssou N'Dour.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Depois dos ventos...

Depois de ter assentado a poeira levantada pelos novos ventos do rock contemporâneo, sobraram entusiasmos exacerbados - em que cada novo disco era uma espécie de balsâmo messiânico em salvamento do rock - e ondas de consagração hiperbólicas de algumas bandas que, sujeitas, depois disso, à exigência de dar continuidade a boas primeiras impressões, resvalaram irremediavelmente para a mediania (ou pior). Uma das interessantes excepções foram os suecos The Hives que, chegados ao quarto álbum de um percurso de passos discretos mas firmes, parecem ter assistido incólumes a esses exageros instantâneos e à lógica rei-morto-rei-posto da crítica e ressurgem, agora, com uma linguagem convicta e pronta a receber a atenção (e o crédito) que já lhe era devida. "Tick Tick Boom" é primeiro avanço do surpreendente The Black and White Album, lançado entre nós no final de Outubro.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Om - Pilgrimage

7/10
Southern Lord
2007
www.holymountain.com/om



O prelúdio da aventura dos Om nas lides musicais confunde-se com a cessação de actividades dos respeitados Sleep, agrupamento stoner californiano que, durante a década de noventa, ajudou à emancipação de uma linguagem musical que, à época, ficava na sombra de outros géneros rock mais condizentes com as formatações mainstream. Pese embora essa resistência dos públicos que, em último caso, atrasou a emergência de Al Cisneros (voz, baixo), Matt Pike (guitarra), Justin Marler (guitarra, abandonaria o ensemble em 1992) e Chris Haikus (bateria) como figuras relevantes do rock alternativo mais pesado, os Sleep firmaram um som de alucinações cruas e lentas, cravadas a guitarras possantes e insistentes e vocalizações guturais. A dissolução da banda, algures em 1997, no seguimento de uma sucessão de desentendimentos com a London, mormente a recusa da editora em produzir Dopesmoker como uma peça única de sessenta e três minutos (o título seria lançado em 2003, no formato original apresentado pelos Sleep), deixou o orbe stoner órfão de uma das suas mais capazes descendências. E foi apenas alguns anos mais tarde que Al Cisneros e Chris Haikus - que, entretanto, tinha passado pelos The Sabians, com Justin Marler - convergiram recursos no projecto Om, pondo o definitivo ponto final no percurso dos Sleep.

De então para cá, e com dois álbuns editados antes deste Pilgrimage, os Om vêm tentando definir uma identidade musical própria, algures entre a necessária demarcação do legado Sleep e a reinvenção de si mesmos sob as restrições de fazer música com apenas dois instrumentos. Variations on a Theme, de 2005, dava já sinais subliminares de outras demandas estéticas, embora com o mesmo revestimento ácido que celebrizara os Sleep e, nesse sentido, era mais um exercício de continuidade do que propriamente a declaração de identidade dos Om. Conference of the Birds, do ano seguinte, muito por culpa da seminal "At Giza", redefiniu o paradigma dos Om, desvendando um som mais contemplativo e, sobretudo, uma estruturação melódica que, retendo as energias negras e os compassos repetitivos do passado, emprestava outro cuidado à construção e ao detalhe. Esses pormenores são particularmente notórios em "Pilgrimage", a peça que abre o álbum homónimo, bem ao jeito de um extenso mantra, cheio de espiritualidade psicadélica, construído sobre um fraseado do baixo, filigranas de percussão tribal e verbalizações sussurradas. Sem princípio, meio ou fim claros e sem coordenadas para orientar o ouvinte, o resultado é uma copiosa reticência...ou uma suculenta incerteza. Os dois trechos seguintes, claramente mais carnais (e próximos das recordações Sleep), mostram a face acerba da espiritualidade, elevando volumes e distorções em volta de uma colérica viagem de riffs repetitivos e detonações de bateria que, afinal, se revelam um cântico de catarse. E a coisa termina como começou, com uma revisão do tema principal. O retorno aquieta o espírito atordoado pelo remoinho de emoções, devolvendo-o à contemplação do desfile sarcástico dos fantasmas que desaparecem de mansinho. Como se cá não tivessem estado.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Sigur Rós - Hvarf/Heim

6/10
EMI/XL Records
2007
www.sigur-ros.co.uk



Dificilmente o novo trabalho dos Sigur Rós se tornaria um acontecimento mediático extraordinário pela música nele contida, em virtude do duplo CD dos islandeses vir recheado de material já conhecido dos indefectíveis da banda. O primeiro disco (Hvarf), com apenas cinco faixas para trinta e cinco minutos de música, dá porte de estúdio a algumas composições que a banda mostrou em palco nos últimos anos mas que não conseguiram espaço em gravações anteriores (faça-se a excepção a "Von", recuperada do debute discográfico homónimo). Na essência, o quinteto de peças não foge muito da matriz característica do cancioneiro Sigur Rós; hoje por hoje, contando mais de uma década de actividade, os islandeses são uma entidade reconhecida do pós-rock contemplativo, feito de melancolias planantes, com forte impacto cénico e pejadas de insinuações "orquestrais". Depois, há o mágico falseto de Jon Birgisson, afinal o mediato cicerone para o glacial (e, porque não dizê-lo, labiríntico) universo de sonhos que a caravana de instrumentos tão bem desenha acima da vulgaridade. O único óbice, de resto perfeitamente notório neste Hvarf, é que a consistência e a fidelidade estética dos Sigur Rós ao estilo que fundaram começa a confundir-se com estagnação e, em consequência, acaba por revelar algum conformismo e inaptidão da banda para derivar por outros atalhos do seu próprio cardápio de ideias. Valha-nos a particularidade de o segundo disco (Heim) destapar revisões acústicas de alguns dos temas mais conhecidos dos islandeses, com a bem-vinda ajuda das cordas e alquimias das compatriotas Amiina. Aí, sem o alarde cosmético dos efeitos de estúdio, percebe-se melhor o sucesso da equação Sigur Rós. Mostradas na sua dimensão mais visceral, as canções seguram uma impressiva carga emotiva e convertem-se num curioso exercício de música de câmara, onde o recato e a intimidade somam outros planos às melodias verbalizadas sem mácula por Birgisson. E, com essa renovada estruturação, até esquecemos por momentos que já conhecíamos estas canções e que a fórmula já está um bocadinho gasta...

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Devastations - Yes, U

6/10
Beggars Banquet
2007
www.devastations.net


Apesar de terem as suas raízes na Austrália, os Devastations radicaram-se em Berlim ainda numa fase prematura do seu percurso, talvez em busca da emancipação mediática das apressadas (e castradoras) comparações com que a imprensa especializada do seu país os considerava a nova descendência de Nick Cave. É certo que não devem desconsiderar-se algumas analogias estruturais entre a proposta musical deste trio e o legado das melancolias Cave, mas a música dos Devastations sempre foi mais do que um mero pastiche desse substrato. Neste terceiro registo são peremptórias as afirmações de identidade do trio aussie, desde logo na reinvenção de uma estética outrora tingida por insinuações "góticas" e por uma toada baladeiro-depressiva (no que também lhes rendeu algumas comparações com os Tindersticks) e, agora, importadora de um certo vanguardismo instrumental, seja pela incorporação de ruídos etéreos (muito ao estilo dos capítulos berlinenses de Bowie) ou pela introdução de electrónicas espectrais. Também o registo vocal de Conrad Standish (uma das vozes do trio) está menos mimético (em Coal, de 2006, ele parecia um sucedâneo de Stuart Staples) e menos rígido, ensaiando inflexões tonais não conhecidas antes. Porém, apesar das vantagens orgânicas que essas variações trouxeram à música dos Devastations, Yes, U revela alguns auges de criatividade ("Black Ice", "Rosa", "The Pest" ou "Mistakes"), num misto trip-hop-slowrock sombrio, mas desaponta a maior parte do tempo, mormente na previsibilidade ou, mais do que isso, na monotonia das composições.

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quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Duas faces dos novos sons da América

Exercício alucinante de colagens vídeo, o novo clip dos Black Dice representa uma curiosíssima transposição do universo de esquizofrenias sónicas do grupo nova-iorquino para os domínios da imagem. E o resultado é, como é regra na música dos Black Dice, um desafio a qualquer convenção estética. O álbum chama-se Load Blown.



A outro nível, uma nota de destaque para o primeiro avanço de Invitation Songs, dos The Cave Singers. Eles vêm da mesma Seattle que tornou célebres as flanelas grunge mas estreiam-se em disco com uma sedutora proposta de folk psicadélico, como bem fica demonstrado nesta "Dancing on Our Graves". O vídeo é construído em volta de uma cenografia retro a preto e branco que serve como uma luva ao conceito musical do trio americano.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Soulwax - Most of the Remixes...

7/10
Parlophone
EMI
2007
www.soulwax.com



O generalizado aplauso com que os públicos europeus se foram sucessivamente rendendo ao trabalho dos irmãos Dewaele (Stephen e David), primeiro enquanto animadores nocturnos e editores de sets - é deles a celebérrima chancela das edições 2Many DJ's - e, depois, nas incumbências de banda de corpo inteiro (com o epíteto Soulwax) e de produtores/remisturadores de elite, não foi mais do que uma consagração natural. Com um estilo muito peculiar (e, em grande parte, inovador...) de emprestar ritmos próprios da música de dança a estímulos e canções importadas das órbitas rock ou da pop, estes intrépidos belgas ergueram uma assinatura respeitada no orbe electrónico das remisturas que, posteriormente, ampliaram e assumiram como identidade criativa nas suas próprias composições como Soulwax. Most of the Remixes... é um paradigmático exemplo da alquimia da dupla nas remisturas, ao compilar grande parte das reconstruções mais significativas dos últimos anos, algumas das quais dispersas em edições avulsas. Aqui, mais do que meras intervenções pontuais nas peças originais de LCD Soundsystem, Klaxons, Gossip, DJ Shadow, Gorillaz, Daft Punk ou Robbie Williams (entre outros) desvendam-se recriações autênticas, pouco restando das canções primitivas além da sugestão melódica, como se tivessem sido desmontadas em partes para, depois, merecerem nova montagem (e identidade). É, de resto, essa premissa (des)construtiva e, sobretudo, a aptidão para encontrar novos ordenamentos e lógicas para canções pré-existentes que faz dos manos Dewaele dignos representantes do melhor que se faz no capítulo das remisturas. Esta compilação prova-o à saciedade. E ainda traz um mix extra, num segundo disco, com pérolas não reveladas no primeiro. Tentador!

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segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Norberto Lobo & Lobster



Mudar de Bina
8
/10
Bor Land
2007
www.norbertolobo.com


Sexually Transmitted Electricity
7
/10
Bor Land
2007
www.wearelobsters.com


Com sete anos a divulgar protagonistas menos conhecidos da música portuguesa, muitas vezes atrevendo-se à exposição de uma erudição estética que não encontra muitas saídas editoriais no estreito (e ainda muito arreigado em convenções) mercado discográfico português, o selo nortenho Bor Land é já um marco assinalável. Com mais de trinta títulos reunidos em volta de uma filosofia que, ao invés de promover denominadores estéticos comuns entre os artistas publicados, a Bor Land aposta essencialmente em abrir portas (e mentalidades) a músicos criativos e em busca de um espaço de reconhecimento. E, mesmo que alguns deles não venham a dar o "salto" mediático (como sucedeu com Old Jerusalem) que a sua música parece supor, ficará sempre a certeza de que a congruência editorial faz da Bor Land um precioso recanto onde têm o seu porto seguro algumas das fantasias experimentalistas mais originais da música que se faz por cá. Estão aí mais dois exemplos que, com premissas estruturais radicalmente diferentes (o acústico celestial de Norberto Lobo em oposição ao eléctrico libidinoso dos Lobster), certificam as vistas largas da editora e nos mostram dois caminhos alternativos para excitar os tímpanos.

Norberto Lobo é um lisboeta que a Bor Land apresenta ao mundo editorial com este Mudar de Bina. Sem ornamentos de estúdio além daqueles estritamente necessários para ambientar as texturas da guitarra clássica, o álbum desvenda sobretudo a intimidade e a alma de música genuinamente pessoal, quase individualista. Trata-se, de facto, de um exercício sem suporte para o guitarrista, apenas ele, o instrumento e a música. Trazida assim a primeiríssimo plano a vitalidade das estruturas harmónicas, dos arpejos e das melodias (porque são elas, afinal, o esteio disto tudo), percebe-se que, mais do que ser apenas uma manifestação dos esperados sentimentalismos individuais e contemplações que normalmente "poluem" este tipo de obras, o disco é também uma agradável surpresa pelo desembaraço com que sugere outros planos de emoção mais extrovertidos, menos pessoais e mais abertos. Essa dinâmica no pendor emocional das composições, ora fechadas e "egoístas", ora coloridas e contagiantes, afasta o preconceito previamente engatilhado de que música feita apenas de guitarra não é de consumo fácil. Norberto Lobo prova-nos o contrário. Se isso não chegar para convencer os mais resistentes, há ainda outro desafio em Mudar de Bina: descobrir como tão bem se conjugam as linguagens da tradição (a relembrar os legados de John Fahey ou Robbie Basho) e do popular (há aqui duas revisões de canções do povo) com um gracioso traço de modernidade.

A capa do disco dos Lobster desmonta qualquer ilusão: a música de Guilherme Canhão (guitarra) e Ricardo Martins (bateria) não é para meninos de coro. Deles se conhecia o estilo incendiário com que tomaram alguns palcos por aí e que agora tem descendência em disco. Desenganem-se aqueles que imediatamente associam Guilherme Canhão à placidez e aos ambientes canónicos do pós-rock de '86, lançamento do ano transacto da netlabel Merzbau. Aqui, a guitarra surge pujante e esquizofrénica, corrosiva e disforme, cortante e hedónica. O lastro da percussão não é menos imparável, cheio de arritmias e acelerações, pausas antes da fuga em frente e muitos, muitos espasmos. Depois, o opus dos Lobster tem inúmeros parentescos formais, acolhendo caoticamente e num deleite psicadélico coordenadas de várias escolas rock (com mais ou menos peso), do punk aliterante e urgente, do noise ácido ou da ordenação artística do math rock e, claro, doses espessas das energias próprias deste duo. Sexually Transmitted Electricity é um pungente ataque aos tímpanos - porque é "doloroso" e não se absorve imediatamente - e um quebra-cabeças. Mas não deixa a recompensa por dar. Enfim, um abanão musical tão intenso e incitante que faz lembrar (com quase o mesmo resultado final) aquelas estaladas de fêmea despeitada que, as mais das vezes, acabam redimidas debaixo dos lençóis. Sem queixas dos efeitos secundários, o último dos Lobster é um potente orgasmo eléctrico.