sexta-feira, 29 de junho de 2007

Goran Bregovic - Karmen (With a Happy End)




Se há compositor imediatamente associado aos sons dos Balcãs, ele é o bósnio Goran Bregovic. A "culpa" desse nexo instantâneo é dos inesquecíveis trilhos sonoros que imprimiram outras dimensões do bizarro aos ímpares universos das fitas do premiado realizador sérvio (também ele, um músico) Emir Kusturica. Dono de uma extensa discografia dedicada essencialmente à divulgação da música cigana da sua terra-natal, Bregovic acabaria por afirmar-se como um dos mais respeitados compositores do leste europeu e, por inerência, um dos porta-vozes da herança musical e cultural dos Balcãs. Ele é um genuíno esteta do alcance celebrativo dos clássicos ensembles de sopros da europa oriental - legado histórico das grandes orquestras militares dos decanos impérios - e dos sublinhados corais da mais pura tradição das festas gitanas. No novo trabalho, o maestro inspirou-se na intemporal ópera de Bizet e reconta a história do amor impossível entre a caprichosa Carmen (a cigana, lá está!, que captura os homens pelo coração) e o pacato sargento Don José, imprudentemente vencido pelos dilemas morais de uma paixão obsessiva. As referências estruturais à obra de Bizet ficam-se, sobretudo, pelo vago recurso a um ou outro apontamento melódico próximo dos fraseados originais e, claro, nas insinuações cenográficas que rapidamente se instalam no ouvinte conhecedor do libretto primário. Mais do que isso, Karmen (With a Happy End) desvenda uma curiosíssima (e elegante) volubilidade emocional, como se os trechos marcassem o compasso dos sentimentos de um enredo que afinal não existe, pontuando-lhe altos e baixos e, com isso, configurando as chicanas de um argumento imaginário. No final, o remate festivo de "Lamour" é insuspeito: na Karmen de Bregovic não há lugar para as lágrimas da desventura. De ópera só um bocadinho, porque a charanga não pode parar!

Posto de escuta (Real One Player) Gas GasPampur GalbenoKoferi

quinta-feira, 28 de junho de 2007

Neurosis - Given to the Rising

8/10
Neurot
2007
www.neurosis.com



Desde os primeiros riffs de Given to the Rising (nono álbum de estúdio em nome próprio) se percebe porque é que os californianos Neurosis se tornaram, decorrida cerca de uma vintena de anos desde o debute discográfico, um dos ensembles mais entusiasmantes e influenciadores da cena metal. Steve Von Till e seus pares são inventores para quem o conformismo nunca foi opção e, por isso, o lastro da identidade mutante que criaram tem suscitado um largo espectro de seguidores e sub-géneros. Para eles, não é um devaneio ambíguo mesclar, na mesma composição, coordenadas góticas e/ou industriais com sons atmosféricos, ou misturar melodias instrumentais funéreas (muitas vezes com laivos de rock progressivo) com o mais acerbo (e "pesado") e sombrio ritualismo pagão. Tampouco a estrutura métrica das peças é linear, alternando entre as texturas ambientais ao jeito de negros sermões cheios de espiritualidade (os vagarosos compassos de Stephen O'Malley inspiram-se aqui) e as pujantes implosões de guitarra, ora pausadas e cíclicas, ora tentando outro nervo. Mas, mais do que apenas gerirem equilibradamente este extenso rol de substâncias, os Neurosis erguem uma obra de intensidade sufocante e com uma escrita de contrastes irrepreensíveis. Given to the Rising é, assim, mais uma afirmação peremptória de estatuto e dilata distâncias para os mimetistas do costume. Vinte anos depois, os Neurosis não saíram do auge.

quarta-feira, 27 de junho de 2007

Dntel - Dumb Luck




De Jimmy Tamborello sabemos mais ou menos o que podemos esperar, não fosse ele um dos mais renomados protagonistas da moderna cena indie-electrónica americana. As inúmeras identidades artísticas pensadas ou partilhadas por ele - além dos conceitos Dntel e James Figurine, divide os The Postal Service com Ben Gibbard (Death Cab For Cutie) e Jenny Lewis - denunciam, de resto, um pretexto comum: a electrónica como ferramenta básica para a construção de abstracções em volta da definição paradigmática de canção pop. Todavia, foi a progressiva conquista de espaço mediático do projecto The Postal Service - nesse particular, a sintonia com o consagrado Gibbard rendeu sinergias decisivas - que escancarou as portas da comunidade melómana para as tapeçarias digitais de Tamborello. Não fora isso e poucos saberiam que este é já o segundo tomo do projecto Dntel, o primeiro pela major Sub Pop, depois de Life is Full of Possibilities, lançado há meia dúzia de anos. Nesse registo, sob causas minimalistas importadas da escola glitch e aspergimentos de amplas camadas sintéticas de som, desfilavam construções orgânicas com um fio melódico subtil. Esse quadro estético é repetido neste Dumb Luck, um trabalho que sublinha a sagacidade especulativa da escrita de Tamborello e que confirma a utilidade da sua visão onírica e dispersa da pop. Mais surpreendente do que isso é a mágica alquimia dos inúmeros estímulos sonoros que parecem desabar avulsamente em cima das melodias, em retalhos fortuitos, como que casualmente desprendidos de um universo paralelo, ao jeito de deus ex machina redentores. A esse festim digital (com um ou outro desarranjo momentâneo) juntam-se algumas vozes ilustres: Lali Puna, Jenny Lewis, Conor Oberst (Bright Eyes), Mia Doi Todd e Edward Droste (Grizzly Bear). Pena é que, debaixo de semelhantes substâncias e de um aparato cosmético tão inteligentemente urdido, nem sempre existam fraseados melódicos com proporcional inspiração.

terça-feira, 26 de junho de 2007

Editors - An End Has a Start

6/10
Pias
Edel
2007
www.editorsofficial.com



Justamente consagrados, depois de um debute discográfico promissor (The Back Room, de 2005), como uma das mais estimulantes surpresas da música britânica contemporânea, os Editors acabaram por tornar-se herdeiros quase "naturais" de uma linhagem sonora com ramificações no pós-punk britânico professado por gente como os Echo & The Bunnymen, os Joy Division ou os The Chameleons, sobretudo na incontestável predisposição para colher ensinamentos na cartilha do rock de tons escuros. Os ecos desse referencial estético voltam a propagar-se imparavelmente no alinhamento deste An End Has a Start, deixando a incómoda impressão de um certo imobilismo que facilmente pode confundir-se com fidelidade à fórmula de sucesso da estreia. De facto, o segundo tomo dos Editors acaba por pôr a nu um facto ironicamente embaraçoso: a banda está refém de uma linguagem própria que construiu (indo bem além do mero mimetismo das óbvias referências "históricas" de The Back Room) mas a que parece, agora, incapaz de somar novas virtudes ou, mais do que isso, de evitar o auto-plágio. E, para um segundo disco, esperava-se um pouco mais de substância e é difícil ser-se indulgente com a mediania que reveste, com uma ou outra excepção, este grupo de canções.

Posto de escuta MySpace

domingo, 24 de junho de 2007

Júlio Pereira - Geografias

8/10
Som Livre
2007
www.juliopereira.pt



Volvidos cerca de trinta e cinco anos de um percurso extremamente coerente e, sobretudo, fiel a uma filosofia permanente de redescoberta, Júlio Pereira conserva intactos os atributos que dele fizeram um dos compositores e instrumentistas imprescindíveis do cancioneiro luso contemporâneo. Dedicado estudioso das raízes da canção popular portuguesa e dos seus instrumentos tradicionais (o cavaquinho é-lhe, de resto, imediatamente associado desde o ímpar êxito comercial de Cavaquinho (1981)), Júlio Pereira retoma, no novo disco, um amor antigo (e que nunca deixou para trás), resgatando o bandolim (um dos seus "sete instrumentos"...) para o reunir, em enlaces oportuníssimos e bem gizados, com a guitarra portuguesa. O pacto instrumental, ainda que exibindo traços referenciais da música tradicional portuguesa (o fado, as modinhas minhotas ou o corridinho algarvio, por exemplo) e das habituais afinidades com os ritmos africanos ou as melodias orientais, guarda um transbordante sentido de universalidade, tocando com jeito leve de pincel, uma infinidade de ângulos e latitudes sonoras. Essa transversalidade é tónico dominante de Geografias e, não obstante o consequente (e inevitável) alargamento do espectro estético do disco e suas soluções acústicas, o registo nunca perde o norte e desvenda uma impressionante homogeneidade. E, claro está, a luminosa verve de Júlio Pereira continua a presentear-nos com belíssimas estrofes melódicas e rendilhados de cordas, a que se juntam, pontualmente, os coloridos vocais de Sara Tavares, Marisa Pinto (do projecto Donna Maria) e Isabel Dias (da trupe minhota Raízes). Geografias é, assim, um produto do engenho descobridor de Júlio Pereira que, não se confinando à erudição reconhecida do músico nas raízes dos sons lusos (e não só), se abalança num imaculado manifesto de homenagem à música de outras paragens. Assim se faz, com um brilhantismo raro, a mais genuína das globalizações. E se desenham, em vibrações de cordofones, mapas de outras geografias.

Posto de escuta MySpace de "Geografias"

sexta-feira, 22 de junho de 2007

Montag - Going Places

6/10
Carpark Records
2007
www.montag.ca



Ainda que ciclicamente ignorado pelos primeiros mercados da indústria discográfica no exterior do seu país, o canadiano Antoine Bédard (o homem que assina como Montag) vem construindo um interessante ânimo reformista dos paradigmas da canção pop. Embora conhecendo, há cerca de cinco anos, uma jornada inicial (apenas com edição nacional canadiana) formalmente menos resoluta e especialmente vocacionada para o experimentalismo com as texturas electrónicas que, ainda hoje, pontuam o seu trabalho, Bédard foi avançando para peças menos abstractas, adaptando as suas especulações digitais a formatos mais próximos da ideia de "canção". Alone, Not Alone, de 2005, dava já sinais firmes e inquestionáveis de uma mistura de sons mais estruturada, embora a primazia das matérias de síntese ainda encobrisse o fôlego pop das composições. Para superar essa relativa opacidade dos trechos (as mais das vezes, em claro prejuízo da sua eficácia melódica), nada melhor do que chamar alguns amigos do orbe musical. A lista é interessante: Owen Pallett (o bizarro trovador do projecto Final Fantasy), as Au Revoir Simone ("meninas bonitas" da indie pop americana corrente), Anthony Gonzalez (o francês que, depois da partida de Nicolas Fromageau, assumiu sozinho os ambientes do conceito M83), Amy Millan (a voz dos conterrâneos Stars) e Victoria Legrand (voz dos Beach House e sobrinha do compositor francês Michel Legrand).

No global, Going Places embrulha num revestimento electrónico de fino recorte (não obstante um ou outro exagero kitsch de sons de vídeojogo - ouça-se "Best Boy Electric"), um interessantíssimo sublinhado 60's e pontuais momentos de impacto cinematográfico (com a orgânica de pequenas sonatas), umas vezes tentando reflexos mais amplos e grandiosos, noutras buscando um certo resguardo minimalista. Um pormenor: a faixa título do disco é (alegadamente) um mosaico de sons recolhidos numa convocatória aberta (no sítio do músico) a todos os que quiseram dar o seu contributo. A apreciação que é devida a esse trecho serve também de resumo às artes do álbum: sopros curiosos sobre formas modernas da pop com alguns méritos (as melhores faixas são as que contam com presenças vocais além do monótono registo de Bédard), mas nem todos necessariamente (ou igualmente) profícuos.

quarta-feira, 20 de junho de 2007

The White Stripes - Icky Thump

8/10
XL Recordings
Popstock
2007
www.whitestripes.com


A importância da dupla White Stripes na história recente do rock tem tanto de inegável como de improvável. Com um punhado de registos sólidos e uma das canções rock da década ("Seven Nation Army", é claro) no bornal, Meg e Jack White firmaram uma estética própria e um estilo peculiar de versar os cânones do rock clássico (leia-se Led Zeppelin, por exemplo). Pode dizer-se que eles representam um dos mais suculentos paradoxos retro-modernistas da música contemporânea, no sentido de mesclarem uma certa nostalgia do rock de medidas largas de outras eras com uma impressiva capacidade para emendarem esse impulso seguidista com uma escrita crua (no seu minimalismo psicadélico), simples e versátil. Icky Thump, sexto registo de originais, segue as mesmas premissas de Get Behind Me Satan (2005), exercitando as potencialidades eclécticas de uma fórmula sonora que, parecendo organicamente destinada à misantrópica intimidade do rock de garagem, depressa transborda esse perímetro estético imaginário. Para esse efeito, ao invés da aposta preferencial do antecessor numa ferramenta acústica (piano) para a construção das melodias, o novo opus procura reaver o alvoroço eléctrico da guitarra nessa atribuição. Necessariamente mais "pesado" e mais próximo dos genes Stripes - o que pode ser interpretado como um manifesto de subsistência face às dúvidas que se levantaram sobre o futuro da dupla, mormente depois do êxito do side project de Jack White, os Raconteurs - Icky Thump regenera o ideário blues. E fá-lo, sem perder o fio de prumo habitual, somando novos azulejos ao mosaico de sons (nesse particular, a estreia das gaitas de fole com duas caras - na pastoral "Prickly Thorn, But Sweetly Worn" e na avariada "St. Andrews (This Battle is in the Air)" e os sopros mariachi são modelares) e aceitando interferências de outros universos (a revisão de "Conquest", cantada por Patty Page nos 50's, ou a quase "metaleira" "Little Cream Soda" são sobressaltos bem-vindos). O mais acertado epítome para Icky Thump faz-se em poucas palavras: basta dizer-se que os Stripes estão de volta e tão eléctricos e cativantes como nas primeiras núpcias. O que é o mesmo que afirmar que não dá para ficar indiferente.

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Digitalism - Idealism

7/10
Virgin
2007
www.thedigitalism.com



Diz-se que os rapazes deixaram saudades por cá, depois da apresentação pública do seu primeiro álbum no festival Creamfields, em Maio passado, no Parque da Bela Vista. São de Hamburgo e professam uma sonoridade muito próxima do electroclash (de resto, assumem essa a referência estrutural como uma doutrina), coisa típica numa metrópole onde tem recrusdescido, por oposição à electrónica de cânone de Berlim, uma vaga regeneradora do dance-rock que tem, agora, no duo Digitalism um dos vértices mais expressivos. Jens Moelle e Ismail Tuefecki são adeptos de um curioso cruzamento entre o fôlego desregrado (e alucinantemente robótico) da electrónica rave (é aí que o digitalismo demonstra o seu verdadeiro vigor) e os incitamentos hedonistas do rock (eles até já nos tinham dado versões remisturadas de Franz Ferdinand ou dos Klaxons...). Embora tendo sido erguido em torno de uma fórmula substancialmente pouco inovadora (por vezes, a coisa "tresanda" a Daft Punk ou Chemical Brothers), Idealism não se fecha na revisitação de conceitos e, mais do que isso, afoita-se numa perigosa - pelo risco evidente de inconsistência - mescla de estéticas dançantes, do minimalismo à disco, do house à vanguarda. A ironia suprema é que é o rock (directamente ou como miragem à distância de uma memória) a matéria unificadora da mistura. E o seu certificado de consistência. Afinal, basta um disco bem construído para desmontar as teses maniqueístas que cavam distâncias entre a música para as pistas de dança e o rock.

Posto de escuta Sítio da Boomkat

domingo, 17 de junho de 2007

Maher Shalal Hash Baz - L'Autre Cap




Apesar de algumas visitas recentes à Ásia, os nipónicos Maher Shalal Hash Baz são pouco mais do que desconhecidos na sua terra natal. Não obstante esse facto, a verdade é que Tori Kudo e seus pares, sediados na Escócia, contam já mais de duas décadas de uma estranha (e não menos efectiva) militância de uma temática sonora que transcende fronteiras estéticas ou referências culturais. É, sobretudo, uma irónica atracção pelo "erro" (conceito caro aos universos jazzísticos de improvisação em que Kudo cresceu musicalmente e que é assumido pelo próprio como a maior das suas utopias) que faz da música dos Maher Shalal Hash Baz um híbrido ímpar e virtualmente inclassificável. Debaixo de um manto de nostalgia que não passa despercebido, L'Autre Cap é, ao jeito de outros produtos do ensemble japonês, uma colecção de breves retalhos onde convivem (e disputam ambientes emocionais) um genuíno fôlego rock (coisa mais intuída do que assumida, ao jeito de um desejo reprimido que jamais abandona a mente), o desprendimento de uma big band (com os sopros adultos e o embalo jazzy) e uma nebulosa aptidão para o psicadelismo mais recatado. Pouco importa o rigor técnico - é sabido que Tori Kudo recruta alguns não-músicos para o colectivo! - quando o que se busca é a essência da criatividade, mesmo que ela seja mostrada em infalível cacofonia e na mais ingénua (e, por isso, tocante) imperfeição e sem contaminações técnicas. E das mais rudimentares ferramentas (e artífices) podem, afinal, nascer ápices do mais cortês encantamento.

Posto de escuta Sítio da Boomkat
Clique na imagem para ampliar
Júlio Pomar, D. Quixote e os Carneiros (1963)

sábado, 16 de junho de 2007

Black Diamond Heavies - Every Damn Time




Deles se conhecem as origens americanas sulistas, lá do mesmo estado do Tennessee historicamente castigado pelos confrontos da Guerra da Secessão e onde, rezam as crónicas, se propagou um fôlego criativo quase ímpar na história da música americana, desde os primeiros anos do século XX. Do simbolismo da capital Nashville (ainda hoje considerada a metrópole por excelência da música country dos Estados Unidos), ao recrudescimento de Memphis (ventre de B.B. King e do seminal selo Sun, durante anos a casa editorial de gente como Johnny Cash, Muddy Waters, Howlin' Wolf ou Elvis Presley) como um dos estandartes do movimento blues, o estado dos voluntários é, hoje, um dos pontos cardeais de algumas das expressões musicais mais genuínas da alma americana. Sediados na facção oriental de Nashville (embora com proveniências díspares dos seus integrantes), os Black Diamond Heavies começaram por ser um trio, até o guitarrista Mark Holder renunciar à vida errante de músico, depois da edição do EP You Damn Right, de 2004. De então para cá, John Wesley Myers (teclas e voz), senhor de um portento vocal vizinho de Tom Waits, e Van Campbell (baterista) entregaram-se sozinhos ao encargo de escrever (e interpretar) blues de garagem, reduzidos aos aromas mais crus e penetrantes do género e embrulhados num invólucro de pura jam session. Quem os viu ao vivo (e já passaram por cá, no Festival Internacional de Blues de Coimbra), sabe do que estes dois virtuosos são capazes de fazer sem aparato (não precisam de mais de 15 m2 de palco...), e munidos apenas das mais singelas ferramentas da tradição blues. Esse espírito é também a medula de Every Damn Time, com rebeldes e acerbas discussões de sons, na toada sincopada de padrões blues, entre o velhinho Fender Rhodes (ou outras teclas) de Myers e a enleante percussão de Campbell. É daí que emerge um fluido tremendamente consistente e ruidoso, um misto de composições originais e duas revisões, com impressionante crueza e desembaraço. E força sedutora para trazer os blues para o novo século. Único senão para este tesouro improvável: a colagem abusivamente evidente de Myers às entoações cavernosas e diversas nuances vocais de Tom Waits.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Queens of the Stone Age - Era Vulgaris

7/10
Interscope
2007
www.qotsa.com



A conturbada deserção de Nick Oliveri, há três anos, suscitou uma miríade de dúvidas sobre as reais possibilidades dos Queens of the Stone Age escaparem incólumes a um desfalque no seu núcleo criativo. Em boa verdade, Josh Homme já nos habituou a baralhar o alinhamento do ensemble a seu bel-prazer mas, sabendo-se que a assinatura do baixista se emparelhara com a dele nos instantes mais inspirados do percurso do colectivo (R, de 2000, e o mediatíssimo Songs For the Deaf, de 2002), a saída de Oliveri nunca seria comparável à partida de um mero músico de suporte. Ainda assim, ao segundo registo de estúdio depois desse episódio, no encalço das derivações espirituais de Lullabies to Paralyze, perdidas as hipérboles de Oliveri (aparentemente sem sucedâneo à vista...), o som dos QOTSA não denuncia outros prejuízos colaterais e, acima disso, retém os agentes "clássicos" do rock arenoso do grupo (riffs crus e percussões maquinais), mesmo quando sonda espaços menos comuns ao universo Homme (a magnífica revisão da velhinha "Make It Wit Chu", peça registada numa das Desert Sessions, ou "Suture Up Your Future" são bons exemplos). Ele é um dos raros espíritos aduncos da cena musical contemporânea e patrocina, com alguns tentáculos de uma mesma identidade sonora (Queens of the Stone Age, Eagles of Death Metal, as Desert Sessions e a decana instituição dos Kyuss), um dos espólios quintessenciais do rock 'n' roll despudorado e hedonista, longe de modas, interventivo e de pulso imparável. E mesmo que Era Vulgaris não chegue ao auge de outros álbuns, está aí para demonstrar que o mais genuíno rock se escreve assim, sem apelo nem agravo. E que Josh Homme continua a ser um dos seus mais engenhosos anti-heróis.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Battles - Mirrored

9/10
Warp Records
Symbiose
2007
www.myspace.com/battlestheband



Quando o rock é complexo e feito de uma teia de elementos sonoros que se entrecruzam com virtuosismo, sapiência técnica e, sobretudo com um sentido geométrico de progressismo (as mais das vezes, usando a lógica de crescendos e retornos ao ponto de partida), normalmente cola-se-lhe o rótulo de math rock. No fundo, essa família de sons não mais é do que uma derivação das estirpes genuínas do rock progressivo, aproveitando dimensões alternativas (ou outras nuances estéticas) do mesmo conceito artístico de construção musical. Com o primado da tecnicidade (por oposição ao imediatismo), não estranha que o rock "matemático" se tenha tornado um género quase sempre demasiado encriptado para o comum ouvinte e, consequentemente, tenha colhido apenas o restrito reconhecimento de alguns melómanos fetichistas destas coisas do preciosismo técnico. Ao mesmo tempo, o sucessivo aparecimento de escolas menos "académicas" de fazer rock (e, portanto, mais acessíveis aos grandes públicos) ajudou a cavar o fosso entre as massas e o progressivo, quase votando ao esquecimento o legado histórico de King Crimson, Yes, Captain Beefheart ou Zappa que, afinal, serviu de luminária (mais ou menos assumida) a algumas das tendências posteriores.

A surpresa de Mirrored não está (nem tentou estar) num qualquer fôlego de homenagem emendadora dessa injustiça. Mais do que fazer isso, os quatro integrantes dos Battles, peritos óbvios no manejo dos conceitos de música progressiva (e, dentro desta, do nicho math), impressionam pela capacidade de introduzir ideias frescas em fórmulas de composição algo desgastadas (em razão do tal "esquecimento"). O álbum é, como não podia deixar de ser, maioritariamente instrumental (as vozes, arrebatadas e sem verbalizações, aparecem esporadicamente) e combina guitarras ansiosas e percussões frenéticas (do melhor que se ouviu nos últimos tempos) com electrónicas de filigrana pouco formal. Apesar desse pacto de substâncias estar subjacente à insistência em padrões "matemáticos" e, portanto, exposto ao risco da complexidade técnica obstar à intimidade com o ouvinte, a verdade é que as composições revelam um sentido melódico invulgar em produtos desta estirpe, por força das soberbas abstracções que, passando quase despercebidas sob o caudal dominante das "canções", acabam por somar-lhes dimensões diferentes e que as afastam da insensibilidade da técnica de per si. É aí que reside o segredo dos Battles, no convite irrecusável à redescoberta das inúmeras minudências e estratos em cada peça. E em perceber que, sendo técnico e preciso, Mirrored não deixa de ser tremendamente irresistível e compensador.

Posto de escuta AtlasTontoTIJ

segunda-feira, 11 de junho de 2007

Apparat - Walls

7/10
Shitkatapult
Flur
2007
www.apparat.net



Depois de ter conseguido, no ano transacto, um impacto impressivo na órbita pop digital, ao lado da compatriota Ellen Allien (ver Orchestra of Bubbles), o alemão Sascha Ring está de volta por conta própria. Apesar das inúmeras solicitações e parcerias dos últimos anos, o músico não deixou de compor a título pessoal e Walls não é mais do que uma recolha de material acumulado desde a gravação do EP Silizium (2005). Nas palavras de Ring, a escolha do alinhamento do álbum não esteve subjacente a nenhum critério estético definido a priori, embora se perceba nas peças do alinhamento uma inclinação pop a que não serão estranhas as últimas manifestações do seu percurso. Todavia, esse pendor mais "convencional" (por oposição a outros trabalhos da sigla Apparat) não ofusca a costumeira diversidade estrutural das peças, tão certas a buscar enlaces harmónicos, ora partindo do mais cru esqueleto de minimalismo IDM, ora usando os mais expansivos e intrincados revestimentos digitais. Como se esperaria, é precisamente aí que reside o argumento mais convincente deste Walls, na caótica e frenética candura das texturas orgânicas (sempre foi essa a substância mais relevante da música Apparat), quase sempre contemplativas e mergulhadas na aura de intangibilidade que Sascha Ring vem aperfeiçoando nos últimos tempos. A ligação à terra é prescrita pelas vocalizações (dele ou de Raz Ohara) que, quando presentes, desviam o disco da órbita mais confortável (coisa particularmente evidente no single "Holdon", com Ohara) e nem sempre assentam bem no espectro largo e informal das construções rítmicas, diminuindo-lhes a luminosidade. A despeito dessas minudências técnicas, há em Walls um raro alinhamento de pequenas delícias sonoras que, se pontualmente não encantam à primeira audição, acabam por justificar algumas visitas atentas.

domingo, 10 de junho de 2007

Kalabrese - Rumpelzirkus

8/10
Stattmusik
2007
www.myspace.com/kalaspatz



Dele pouco mais se conhecia do que um 12'' ("Chicken Fried Rice", editado há três anos pela Perlon) que conheceu relativo êxito além das fronteiras helvéticas, especialmente à custa do magnífico loop de guitarra processada que dava corpo ao tema-título. Já aí, nesse quarteto de composições, se adivinhavam, ainda que com uma expressão menos apurada, as premissas estéticas de um idioma sonoro afecto à matriz sincopada do house minimalista, mas com inúmeras referências colhidas noutros universos. Em compassos lentos, quase arrastados, o suiço Sascha Winkler (é ele o cientista por detrás do cognome Kalabrese) acerca-se de um certo padrão abstracto da música funk "clássica", captando-lhe as dimensões de relaxe (derivações do genoma dub) e embrulhando-as num curioso mosaico digital (embora muitas das substâncias investidas sejam mais orgânicas do que soam), com algo de futurismo e, ao mesmo tempo, de ciência antiga. Ouça-se, a título de exemplo, a assombrosa construção de blues e anémico tribalismo de "Heartbreak Hotel". E assim segue a caravana de canções, livre e pejada de surpresas, sem formalismos técnicos, com inventividade e um harmonioso sentido de proporção. Sem uma pérola imediatamente contagiante como "Chicken Fried Rice", Rumpelzirkus é, sobretudo, um produto monolítico e vale-se da soberba consistência (e do element of surprise) para evitar o enfado dos padrões 4/4 e, mais do que isso, fazer dessa estruturação rítmica um esteio útil para noções desenvoltas de canção, a fazer lembrar o melhor de Matthew Herbert ou Ricardo Villalobos. Mas com uma identidade própria e que, mais tarde ou mais cedo, gozará do reconhecimento que lhe é devido.

sexta-feira, 8 de junho de 2007

The Field - From Here We Go Sublime




Embora tendo nome feito no universo techno, as mais das vezes na pouca mediatizada atribuição de produtor, a obra própria do sueco Axel Willner (sob o pseudónimo The Field) resumia-se, antes deste álbum, a dois 12" (Things Falling Down, de 2005, e Sun & Ice, do ano seguinte). Partindo do mesmo corpo conceptual dessas edições (e até repetindo três composições do segundo), onde o minimalismo era uma premissa teórica, ainda que usada apenas como consistente ponto de partida para as construções rítmicas, e, sobretudo, demonstrando uma mestiçagem de sub-géneros inesperadamente profícua, From Here We Go Sublime não é espaço para manobras previsíveis. E, mais do que perceber-se que da equilibradíssima mistura resulta mais do que a mera soma cosmética de partes, o álbum desvenda uma coerência estrutural rara em produtos desta estirpe sonora. Aqui, sob a régua das cadências minimalistas techno e house (que não são o metrónomo exclusivo do alinhamento), cabem arcos de pura sedução ambiental (são eles os indutores da "profundidade" estética do disco), em jeito de pano de fundo, e pontuais samples de voz. O resto é apurado ao sabor da espessura emocional de cada composição, invocando a lógica de crescendo (continua a ser uma das mais apelativas formas de expressão das escolas de música dançável), os loops repercutentes e justapostos e os préstimos de diferentes escalas de programação (ora microscópica ora de medidas largas). O desfecho é um dos mais íntegros exercícios de música digital dos últimos anos, cruzando estéticas e referências e, acima disso tudo, demonstrando uma ampla visão artística, um profundo conhecimento técnico das ferramentas aplicadas e a inventividade própria de um idioma que, não tendo caracteres substancialmente "novos", acaba por moldar-se num discurso que ecoa na mente como se acabado de inventar.

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Jeff Buckley - So Real: Songs From Jeff Buckley

5/10
Sony BMG
2007
www.jeffbuckley.com



Já se escoou mais de uma década desde o misterioso desaparecimento de Jeff Buckley e o seu legado musical continua a ser revisitado ciclicamente ao sabor da avidez comercial. Embora tendo editado apenas um álbum em vida, o lendário Grace (1994) - sacralizado depois da morte do músico como o título revolucionário que, à época, não chegou a ser - Buckley depressa se tornou, em moldes semelhantes ao mito mediático erguido em volta da herança e das memórias de Kurt Cobain, um exemplo paradigmático de quão rentável pode ser um cantautor que morre aos trinta anos. Além desse disco de debute, entretanto reeditado em versão "melhorada", a Columbia lançou, sempre com a orientação artística (e copioso enriquecimento) da mãe Mary Guibert, uma tríade de álbuns ao vivo, reedições com o selo Legacy (da Columbia) e uma colecção de esboços das não findas sessões de gravação do sucessor de Grace. E talvez a gula não termine ainda neste So Real cujo mérito maior é, mostrando algumas das canções emblemáticas do curto percurso de Buckley e duas gravações não editadas antes (cabe no alinhamento uma previsível revisão de "I Know It's Over" dos Smiths), mostrar porque a visão e as aspirações artísticas de Buckley são, hoje, um valor consolidado dos cânones da música, mesmo com as suas incongruências e incompletudes. E esse recurso, a música por si só, vive além do seu criador, tem fôlego próprio, e dispensa a obsessão editorial que, mais do que homenagear o património "clássico" de Jeff Buckley, o vulgariza por exaustão.

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Marilyn Manson - Eat Me, Drink Me

7/10
Nothing Records
2007
www.marilynmanson.com



No hiato de quatro anos desde a última edição discográfica do muito discutido (e controverso) Marilyn Manson (Brian Warner no B.I.), a vida pessoal do músico experimentou algumas convulsões, a mais mediática das quais foi o súbito remate do envolvimento de sete anos (dois em laço matrimonial) com a voluptuosa playmate Rita Von Teese e a posterior aproximação à actriz Evan Rachel Wood. Essa promiscuidade emocional não terá sido indiferente à composição de Eat Me, Drink Me, um registo revelador de uma impressão mais pessoal (é Manson que assina todas as composições, com ajudas pontuais de Tim Skold) e intimista e que, nas palavras do próprio músico, é "o álbum da sua vida". No fundo, contrariando a linha de personas (o anticristo de Anti-Christ Superstar, o Omega 5, de Mechanical Animals, o holocausto de Holy Wood ou a estrela decadente e impudica de The Golden Age of Grotesque) com que consecutivamente se afirmou como símbolo de uma certa degeneração hedonista e iconoclasta (o que, ironicamente, veio a fazer dele próprio um ícone...), Manson aparece agora sem a máscara de uma personagem projectada para um determinado fim mediático. Nesse sentido, Eat Me, Drink Me desvenda a autenticidade por detrás do conceito e das pantomimas, coisa que faltou noutros trabalhos e que, em último caso, certifica um músico crente na sua arte (e inerentes idiossincrasias) e que, refeito dos ecos do massivo tropel condenatório que se seguiu ao massacre de Columbine (1999), ressurge num registo mais imediato (também estruturalmente menos "pesado"). Ainda que retendo os ritualismos de celebração do lado negro da vida e as metáforas góticas, as canções fogem da previsibilidade dos últimos álbuns, sem os riffs ziguezagueantes e a percussão pendular (essa combinação alimenta "Are You the Rabbit?" e, menos notoriamente, "Mutilation Is The Sincere Form Of Flattery", as duas faixas mais próximas dos cânones Manson) nem os exageros cosméticos do costume e, sobretudo, dando provas de um compromisso melódico mais efectivo, longe da pompa industrial dos trabalhos anteriores (a excepção, à Nine Inch Nails, é "You and Me and the Devil Makes 3"). Afinal, há vida por detrás dos disfarces e há alguma música além da ira gratuita. A assinatura do opus mais consistente da demónica sigla MM nos anos mais recentes é, afinal, de Brian Warner.

terça-feira, 5 de junho de 2007

Modest Mouse - We Were Dead Before the Ship Even Sank




Depois de uma certa glorificação junto dos circuitos alternativos da música americana, na sequência da edição, em 2004, do dinamicamente melancólico Good News For People Who Love Bad News (aquele que foi considerado o corolário "natural" de um percurso relativamente consistente de mais de uma década a meia-luz), os Modest Mouse achavam-se num momento crítico do seu percurso. Conhecidas as várias possibilidades e dimensões de uma fórmula sonora essencialmente nutrida a malabarismos de guitarra e valendo-se dos múltiplos caracteres vocais de Isaac Brock, dois atalhos alternativos se abriam para eles no último álbum: ou repisavam a linguagem do antecessor, assim pondo à prova os ganhos de popularidade de então e expondo-se ao óbvio risco de mimetismo e inércia criativa, ou arregaçavam mangas em manobras reinventivas para investigar novos rumos para um som algo "gasto" e, no âmbito dessa experimentação, suscitariam uma vigilância mais severa de críticos e melómanos, em face da tentação do mainstream. Em qualquer dos casos, We Were Dead Before the Ship Even Sank mereceria sempre um escrutínio controverso e dificilmente agradaria a gregos e troianos. Em face dessa dúvida existencial e deixando de estar confinado às mutações abrasivas (e mais experimentais) das primícias, o novo opus dos Modest Mouse afigura-se o registo mais pop do seu percurso (não necessariamente no sentido mais "convencional" e depreciativo do termo), até porque aglutina as tendências sad da lírica de Brock com um optimismo sonoro (coisa que já se adivinhava no disco anterior) não escutado antes, pelo menos com esta amplitude. Conseguida a expansão estrutural do som (a integração do guitarrista Johnny Marr (ex-Smiths) desempenhou papel crucial nessa equação), falta apenas deixar que esse fôlego trepador contagie também a escrita. Afinal, convivem em We Were Dead Before the Ship Even Sank alguns momentos do escol Modest Mouse ("Dashboard" ou "Fly Trapped in a Jar", por exemplo) com peças demasiado monótonas ("Fire it Up", "Missed the Boat" ou "We've Got Everything") para não penalizarem a apreciação global do disco.

segunda-feira, 4 de junho de 2007

Bonde do Rolê - With Lasers




Trio de universitários de Curitiba, os Bonde de Rolê são um dos mais recentes fenómenos da música ligeira do Brasil (a par das Cansei de Ser Sexy) e, desde a sua "descoberta" pelo americano Diplo (ele próprio, um admirador do funk carioca dos morros), não mais cessou o tropel em volta deles e a consequente projecção mediática. Revelando, tal como as CSS, algum desprendimento face aos costumes "clássicos" da música brasileira (guardam apenas referências subliminares ao funk mais festivo, de percussão em algazarra) e apontando, sobretudo, para padrões sonoros do outro hemisfério, With Lasers é uma curiosa fusão entre exercícios de sampling com epicentro no heavy metal oitentista (as aparições são mais do que pontuais) e uma delirante profusão de beats e tresvarios digitais. Dir-se-ia que, nesse ponto, o disco desvenda uma estruturação decisivamente marcada pelo urbanismo actual, com a inevitável atracção pela vulgaridade (escutem-se as letras, pejadas de vacuidades e incipiências) e descontextualização cultural e descurando o sentido melódico típico da história das últimas décadas da música brasileira. Pior do que isso, na tentativa de suscitar um novo paradigma sonoro de festa de rua, assente essencialmente numa nem sempre lucrativa promiscuidade estética, os Bonde de Rolê perdem-se na sua própria algaraviada rústica e kitsch, precipitando um desfile de canções inconsequentes e cujo préstimo se fica pelo serviço mínimo para algumas pistas de dança. De toda a maneira, o que se esperava de um trio que, nas palavras da vocalista Marina Vello, busca inspiração numa vizinhança errática entre Christina Aguilera, Sleater-Kinney, Motorhead e Venga Boys?

domingo, 3 de junho de 2007

The National - Boxer

8/10
Beggars Banquet
Popstock
2007
www.americanmary.com



Quando eles editaram, há um par de anos, o orgulhoso Alligator (terceiro tomo do seu percurso), emprestando à pop a imponência da solenidade e o recato clássico de uns Tindersticks (nesse particular, os vocais de Matt Berning aceitam algumas coordenadas de Stuart Staples) ou dos momentos mais soturnos de Nick Cave, Leonard Cohen ou dos American Music Club, então apanhando desprevenidos os críticos e os melómanos mais atentos às margens do mainstream, percebeu-se que havia nos The National sustento para uma obra maior. Não é surpresa, portanto, que o sucessor desse trabalho reforce a convicção de que estamos perante um dos ensembles mais inspirados (e de crescimento mais consistente) do cenário rock alternativo americano das últimas temporadas. Boxer é feito de canções erguidas sobre uma base acústica (piano e/ou guitarra) de castiça intimidade (a que melhor serve às temáticas de privação que povoam a imagética emocional do disco), com uma escrita garbosa e, sobretudo, capaz de produzir uma saudável distância para os clichés depressivos que normalmente pontuariam este tipo de canções. Para esse facto, concorre decisivamente a assimétrica alquimia dos arranjos orquestrais do australiano Padma Newsom (dos Clogs) que, sem roubar as canções à órbita intimista e misantrópica (quase sempre direccionada para as depressões da urbanidade), lhes soma uma frágil e trémula luminosidade, ao jeito de factor redentor. E é, também, essa ambivalência emocional das canções, entre a desolação e as probabilidades da esperança mais esquiva (mas sempre presente), que faz deste Boxer uma das mais virtuosas colecções de canções deste ano.

sexta-feira, 1 de junho de 2007

Throbbing Gristle - Part Two: The Endless Not




Desde 1982 que não havia notícias dos londrinos Throbbing Gristle. O segundo acto do agrupamento (sugestivamente baptizado Part Two...), de per si, seria suficiente para suscitar alguma curiosidade em torno do novo trabalho de um colectivo que, no período dourado de expressão industrial do rock na Europa, se fixou como um dos seus mais perversos protagonistas. Com um código sonoro substancialmente mais tortuoso, vanguardista e corrosivo do que o "convencionalismo" dos Young Gods ou dos Einstürzende Neübaten à data, Genesis P-Orridge (hoje Breyer P-Orridge) e seus acólitos preferiram, com o pretexto de uma pretensa liberdade criativa e anti-tabus, abrigar-se sob uma imagética nazista e recorrentes alusões líricas a serial killers, erguendo à sua volta um coro de contestatários que, em efeito contrário, viria a seduzir uma geração de misfits sequiosos de sensações musicais diferentes das da onda punk. Essa nada ortodoxa exploração das potencialidades visuais (e de sugestão temática) da imagem tinha reflexos na cacofónica e sinuosa noção de música do quarteto, exorbitando as fronteiras do conceito industrial - porque nele recolhia as referências estruturais (os drones excêntricos de guitarra, a experimentação digital corrupta e vanguardista e a projecção espacial dos sons) - a favor de uma maníaca, angustiante e depressiva aleatoriedade de sons.

Essas premissas, válidas há um quarto de século atrás, repetem-se neste Part Two: The Endless Not, uma espécie de ensaio dadaísta de música, sem regras e altivo a expor os choques internos entre máquinas e mantras digitais, quais animais-fantasma abespinhados e em assombrada peleja (especialmente notória na arrepiante e paranormal "Lyre Liar"), desconfortáveis no imaterialismo da sua condição. Sons volantes (de almas movediças) estilhaçam-se mutuamente, sublinhando a transgressão ruminante dos samples (a voz de P-Orridge, único elo de aproximação do tomo a dimensões "físicas", é menos usada do que antes) e a impenetrabilidade do disco. Com os mundos fechados, a porta entreaberta para o ouvinte é uma suscitação visceral, uma palpitação mista de medo e desafio. Lá dentro, em orbes de descomunal estranheza (e incontornável (es)pasmo), cabe de tudo um pouco e, embora uma ou outra composição derrape nas suas próprias incertezas e se auto-emascule (até porque a preterição dos abrasivos mais fortes do passado é indisfarçável...), Part Two: The Endless Not funciona como enunciado seguro de um colectivo que, tendo inscrito o nome no mosaico dos notáveis do género industrial, se apresenta agora para o recolocar na órbita certa.