A electrónica do novo século, se alguma coisa somou à sua própria renovação geracional, foi o alastramento de uma vaga de convicções que apontam sobretudo para o transbordo de fronteiras estéticas, quer "internas" (entre os seus diversos estilos rítmicos e orgânicas), quer exteriores, ao acolher ensinamentos doutrinários de outros estilos. Os britânicos Ladytron são, nas suas maneiras esdrúxulas, um dos vértices europeus desse entusiasmo pela redescoberta das valências da música electrónica e da mestiçagem com outros géneros. Arrumado num curiosíssimo plano estético algures entre o capricho do glam rock, as sombras do industrial, a electrónica independente e o melodismo onírico do synth pop, o quarteto chega ao quarto registo do seu percurso com o discernimento e os passos seguros de quem encontrou uma cunhagem própria. Velocifero mostra-nos a habitual propensão melódica dos Ladytron - nisso eles já não têm segredos - e os não menos idiossincráticos desassossego e excentricidade orgânica das composições. A música não deixa de ser pop, é directa e contém refrões de assimilação rápida, mas é também uma multiplicação esquizofrénica (muitas vezes ambivalente) de dimensões emocionais, capazes de soar, no mesmo trecho, a sonho atmosférico, a embevecimento, a claustrofobia e a inquietude. Assim se entendem melhor as permutas entre o fio melódico das vozes (Mira Aroyo e Helen Marnie parecem, cada vez mais, as duas metades de uma entidade una superior a elas) e a miríade de interferências nas texturas, ora tangentes de impurezas sintéticas, distorções e ruídos, ora mais próximas de tecidos convencionais, sejam eles rock (aqui menos do que no antecessor) ou pura electrónica. No apuro dessa mistura feita de contrastes, acontece mais vezes a convergência do que propriamente o conflito, assim se afirmando a coesão do disco e a validade da assinatura Ladytron. E isso é o mesmo que dizer que, também na electrónica, não é irreversível a distância entre preto e branco, entre o escuro depressivo e a esperança da luz, entre recato e excitação, entre conforto e nervo, entre gótico e utópico. E que é precisamente nesses intervalos de indecisão, nessas áreas de cinzento, que os Ladytron encontram o sétimo céu.
sábado, 31 de maio de 2008
Ladytron - Velocifero
A electrónica do novo século, se alguma coisa somou à sua própria renovação geracional, foi o alastramento de uma vaga de convicções que apontam sobretudo para o transbordo de fronteiras estéticas, quer "internas" (entre os seus diversos estilos rítmicos e orgânicas), quer exteriores, ao acolher ensinamentos doutrinários de outros estilos. Os britânicos Ladytron são, nas suas maneiras esdrúxulas, um dos vértices europeus desse entusiasmo pela redescoberta das valências da música electrónica e da mestiçagem com outros géneros. Arrumado num curiosíssimo plano estético algures entre o capricho do glam rock, as sombras do industrial, a electrónica independente e o melodismo onírico do synth pop, o quarteto chega ao quarto registo do seu percurso com o discernimento e os passos seguros de quem encontrou uma cunhagem própria. Velocifero mostra-nos a habitual propensão melódica dos Ladytron - nisso eles já não têm segredos - e os não menos idiossincráticos desassossego e excentricidade orgânica das composições. A música não deixa de ser pop, é directa e contém refrões de assimilação rápida, mas é também uma multiplicação esquizofrénica (muitas vezes ambivalente) de dimensões emocionais, capazes de soar, no mesmo trecho, a sonho atmosférico, a embevecimento, a claustrofobia e a inquietude. Assim se entendem melhor as permutas entre o fio melódico das vozes (Mira Aroyo e Helen Marnie parecem, cada vez mais, as duas metades de uma entidade una superior a elas) e a miríade de interferências nas texturas, ora tangentes de impurezas sintéticas, distorções e ruídos, ora mais próximas de tecidos convencionais, sejam eles rock (aqui menos do que no antecessor) ou pura electrónica. No apuro dessa mistura feita de contrastes, acontece mais vezes a convergência do que propriamente o conflito, assim se afirmando a coesão do disco e a validade da assinatura Ladytron. E isso é o mesmo que dizer que, também na electrónica, não é irreversível a distância entre preto e branco, entre o escuro depressivo e a esperança da luz, entre recato e excitação, entre conforto e nervo, entre gótico e utópico. E que é precisamente nesses intervalos de indecisão, nessas áreas de cinzento, que os Ladytron encontram o sétimo céu.
quinta-feira, 29 de maio de 2008
Scarlett Johansson - Anywhere I Lay My Head
É sempre um fenómeno polarizador de opiniões, quando um protagonista da sétima arte decide atrever-se nos domínios da música, galgando a imaginária fronteira - se quisermos, o muro de preconceito - entre dois campos artísticos que, bem vistas as coisas, conhecem recorrentemente interacções e confluências de várias ordens. O episódio mais recente coube à americana Scarlett Johansson, sex symbol preferido das modernas gerações cinéfilas, que experimenta o debute discográfico com uma colectânea de dez revisões de Tom Waits e um original. Em teoria, e antes de apreciar o produto final, o conceito subjacente ao disco seria necessariamente arriscado por encerrar dois pressupostos de risco, o de tratar-se de uma estreia de alguém que não gravara nada antes e, depois, o pormenor desse primeiro registo se inscrever num cancioneiro tão rico, exigente e emblemático quando o de Tom Waits.
Depois de uma aparição muito discutida em Coachella, ao lado dos Jesus and Mary Chain - então para interpretar "Just Like Honey", canção-bandeira do filme Lost in Translation, de Sofia Coppola, com Johansson como protagonista - e da divulgação cibernética de uma versão do clássico "Summertime" (de George Gershwin), por sugestão da Rhino Records, tinha ficado claro que, mesmo sem ter a intenção de fazer carreira na música, Scarlett Johansson dificilmente escaparia à tentação (e aos convites) para gravar um álbum. Partindo do multifacetado repertório de Waits e com uma equipa de suporte de gente de prestígio para mexer os cordelinhos do disco ou emprestar talento instrumental - David Sitek (Tv on the Radio), David Bowie e Nick Zinner (guitarra dos Yeah Yeah Yeahs) - Anywhere I Lay My Head revela uma estética muito própria. Desde logo, salientam-se as miragens arty de Sitek (é ele o alquimista-mor do disco), são elas as substâncias transformistas das canções de Waits, quase sempre a sublinhar-lhes a luz e as dimensões e viragens oníricas e a destilar a identidade insolente e crua dos originais. "Falling Down" ou "Anywhere I Lay My Head", ambas a tresandar a TV On the Radio, são exemplos paradigmáticos da cirurgia plástica de Sitek. O conceito estende-se ao restante alinhamento com coesão, compondo um corpo de canções congruentes enquanto resultado de uma definição estética e de um determinado objectivo "ambiental" para o disco, mas menos expansivas do que alguns momentos fariam supor. No fundo, é como se o mosaico de sons de que são feitas as canções fosse feito à medida de um registo vocal modesto, discreto, quase planante e narcótico. E é exactamente (e apenas) essa rígida timidez, para bem e para o mal, que a actriz americana é capaz de investir no álbum.
segunda-feira, 26 de maio de 2008
Martha Wainwright - I Know You're Married But I've Got Feelings Too
Muito por culpa da galvanizante escalada de Rufus para a divisão maior do orbe pop mundial, o apelido Wainwright ganhou, nos últimos tempos, a gravidade de uma casta emblemática e ficaram expostas as afinidades umbilicais da família com a música. Loudon Wainwright, o patriarca do clã, desbravou caminho desde os anos setenta, como autor folk, gravando mais de uma vintena de discos. Do casamento com a canadiana Kate McGarrigle, também ela associada à cena folk do seu país, como metade do duo das manas McGarrigle, nasceriam Rufus e Martha. E, embora tivesse desde cedo dado mostras de um fôlego criativo próprio e da intenção de traçar um trilho pessoal para o êxito artístico, foi precisamente pela mão do irmão que a música de Martha ganhou outra visibilidade, graças a pontuais (e repetidas) aparições em espectáculos - a mais notada, nas actuações de homenagem a Judy Garland no Carnegie Hall, então dando voz a "Stormy Weather" - e à habitual contribuição nos discos de Rufus. A par disso, além do natural debute em disco a solo, em 2005, a prestabilidade de Martha em colaborações inúmeras, mormente o célebre dueto com os Snow Patrol em "Set the Fire to the Third Bar", estabeleceram-na como um activo ubíquo e sólido da cena folk, ainda que sem o reconhecimento mediático devido.
I Know You're Married But I've Got Feelings Too promete emendar isso e introduzi-la a multidões maiores. Atrás do delicioso título, está um alinhamento de canções plenas de musicalidade, ora visitando o cânon folk, ora ensaiando as virtudes "clássicas" da canção pop de género mestiço. Com estas credenciais de ambição e, sobretudo, com o quilate instrumental e emocional das composições, se percebe o crescimento de Martha enquanto compositora. A delicadeza acústica do antecessor é, aqui, apenas um alicerce, o simplíssimo esteio de belas construções harmónicas e de um tecido sonoro cheio de pormenores. Ao delicado intimismo acústico, somam-se arranjos que redimensionam as canções, guindando-as a outra impressão, chame-se-lhe som de banda. Depois, é na voz de Martha que o disco descola, na elasticidade e na surpresa, no dramatismo e na luminosidade, na celebração e na confissão. As canções, apesar de uma ou outra concessão acidental às convenções, dão mostras de maturidade ("Tower Song" é um dos auges disso), de congruência e de um apurado sentido estético (que transforma, com belo efeito, "See Emily Play", dos Pink Floyd). E esse é, bem vistas as coisas, o melhor atestado de emancipação de Martha face ao "peso" do apelido e o primeiro passo efectivo rumo ao estatuto que merece.
sábado, 24 de maio de 2008
She & Him - Volume One
Ela é Zooey Deschanel, actriz americana em firme escalada para a notoriedade em Hollywood (em Junho, vê-la-emos na nova película de M. Night Shyamalan, O Acontecimento, ao lado de Mark Wahlberg) e cantora/compositora acidental. Ele é M. Ward, cantautor canadiano com um interessante percurso a solo e inúmeras colaborações como guitarrista (a mais recente em disco do lendário francês Alain Bashung). Foi o realizador Martin Hynes que os juntos para reverem "When I Get to the Border", de Richard & Linda Thompson, para o filme The Go-Getter, de 2007. A aliança pontual entre ambos desvendaria convergências estéticas e, sobretudo, a empatia de M. Ward pela colecção de canções que Deschanel havia deixado no armário no passado recente. Daí até a dupla formalizar o casamento artístico sob o nome She & Him e, depois, partir para o registo em disco do trabalho de Deschanel foi um pequeno passo. As órbitas estéticas de Volume One apontam a uma toada de luminosidade sessentista, de folk-pop (às vezes country) ligeira, descomprometida e de emoções simples. Musicalmente, a guitarra de M. Ward (ele também produz, com elevação, o disco) e, em suporte, a bateria de Rachel Blumberg (Decemberists) e o violino de Tom Hagerman (Devotchka), mais os arranjos esporádicos que enchem as canções, dão à voz felpuda de Deschanel (uma mescla espessa de Joan Baez, Dusty Springfield e Loretta Lynn) o revestimento certo. E o disco acorda memórias esquecidas da canção "clássica" dos 60's, chamando a candura e a elegância de então, com ênfase particular na melodia sem segredos ou labirintos e na autenticidade da nostalgia. A dada altura, o canto ecoante de Deschanel e a orgânica retro das canções quase fazem esquecer o nosso lugar no calendário e, ao invés de parecerem um fruto contemporâneo, mais se impõem como uma preciosa antiguidade forjada noutro tempo. E, nesse sentimento anacrónico, o disco é triunfante. Pena é que algumas composições percam a oportunidade de capitalizar sobre esse efeito, ao deslizarem para uma previsibilidade que também desfeiteia a excelência da produção. Em todo o caso, os nutrientes "clássicos" de Volume One são motivos mais do que suficientes para tornar a sua audição uma experiência fértil e provar que a improvável dupla She & Him tem, afinal, pé para andar.
quarta-feira, 21 de maio de 2008
Death Cab For Cutie - Narrow Stairs
Depois da oportunidade de participar regularmente na banda sonora da série televisiva The O.C., em 2004, o pequeno mundo dos Death Cab For Cutie mudou. Para trás ficava um percurso de alguns anos de discreta visibilidade no orbe indie, com um quarteto de álbuns lançado pela Barsuk de Washington (também é a casa editorial de gente como John Vanderslice, Menomena, Mates of State, Nada Surf, Rilo Kiley ou They Might be Giants) a merecerem reconhecimento moderado da crítica e dos públicos. No ano seguinte, fruto do crescimento da notoriedade da banda, Plans chega aos escaparates com a chancela da Atlantic, rapidamente se tornando no produto de melhor desempenho comercial dos Death Cab For Cutie e oferecendo a Ben Gibbard e seus pares, além de extensa actividade em palco, algo de impensável nos anos anteriores: a nomeação para um Grammy. Com o frenesi mediático a serenar paulatinamente, tanto sobre eles como sobre o projecto paralelo de Gibbard (Postal Service), o quarteto põe termo a um hiato de quase três anos sem gravar (o maior intervalo entre álbuns da sua discografia) e apresenta o segundo tomo da ligação à Atlantic.
Se Plans, talvez o mais polido exercício de murmúrios pop dos Death Cab For Cutie, tinha razoavelmente feito o respaldo de críticas e receios sobre os efeitos que a mudança para uma editora maior traria ao som da banda, este Narrow Stairs desvenda, numa toada emocional próxima do mesmo romantismo resignado e melancolia, um registo diferente. No lugar da placidez acústica que dominava o antecessor, o novo álbum é feito de música ainda calma mas com contornos menos definidos e texturas mais arenosas. No fundo, a aura de desassossego nem sequer é substância original das ementas emocionais de Gibbard, mas surge aqui mais crua e enigmática, mais dissonante (a melodia não é uma obsessão) e abrasiva, e longe da luminosidade e leveza que se entreviam em Plans. Este é, seguramente, o registo mais soturno e espesso dos Death Cab For Cutie, sem contudo perder a fulgência do lirismo da banda, antes sublinhando o medo do abismo sentimental, o lado mais amargo da visão poética que Gibbard empresta à sua música. Musicalmente, Narrow Stairs é simultaneamente delicado e desabrido, tem veio experimentalista e aponta a uma orgânica musculada, hipnótica, fechada e introspectiva. E atrás do pulso existencialista e das sugestões emocionais que o álbum motiva, apenas faltaram as canções sem banalidades que, num ou noutro momento, se parecem adivinhar-se, não chegam à confirmação cabal que a excelência técnica faria presumir. A excepção que mora em "Long Division" ou "I Will Possess Your Heart" não dilui a regra.
domingo, 18 de maio de 2008
Moonspell - Night Eternal
Um percurso solidamente instituído, tanto junto do mercado editorial como de uma falange crescente de públicos, nacionais e internacionais, é o que está atrás deste oitavo disco de originais dos Moonspell. A progressiva maturação da trupe liderada por Fernando Ribeiro e, sobretudo, o engenho reformista que foi capaz de acrescentar em cada episódio da criação musical ajudaram a cimentar a marca mais credível do metal português e um dos conceitos mais vigorosos e activos do estafado nicho gótico europeu. Depois de dois exercícios nostálgicos dos primórdios, Memorial (2006) e, mais ainda, Under Satanae (2007, regravação de alguns dos primeiros trechos da banda), com um pendor melódico menos visível, o novo opus recupera as harmonias cruentas e viscerais de Antidote (2005), um dos vértices do património Moonspell, e soma-lhes o refinamento estético de vozes femininas mais presentes - a saber, elas são Anneke Van Giersbergen (Agua de Annique, ex-líder dos holandeses The Gathering), Sofia Vieira (Cinemuerte), Patrícia Andrade (The Vanity Chair) e Carmen Simões (Ava Inferi). Em tudo o mais, Night Eternal é um puro Moonspell, com a sonda no pacto tradicional entre ambientes negros e descargas ásperas, mas com uma escrita mais fluente e estruturada (em comparação com os dois trabalhos anteriores) e, acima disso, uma certa continência vocal de Fernando Ribeiro que, ao invés da verborreia desgovernada e omnipresente de outros momentos, aparece aqui com pertinência, foco e sentido. Mesmo escorregando, a espaços, para a orgânica contemplativa em que os Moonspell respiram com mais embaraço e apesar do conformismo que, aí, macula as composições, Night Eternal lambe as chagas de Memorial e tem tudo para recolocar o quinteto da Brandoa no seu azimute natural de romantismo gótico e de proporção entre a agressão e grandiosidade mística.
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sábado, 17 de maio de 2008
Jamie Lidell - Jim
Longe do passado de vizinhanças electrónicas, onde ganhou notoriedade sendo metade dos Super Collider (com o chileno Christian Vogel, hoje nos Night of the Brain), o britânico Jamie Lidell encetou um percurso individual devoto à música soul. Consagrado pela crítica em 2005, com o muito referenciado Multiply - álbum que convocava substâncias tradicionais do cancioneiro soul e lhes emprestava o furor vanguardista de electrónicas ligeiras e da experimentação - Lidell regressa, no novo disco, aos mesmos padrões estéticos. Jim é, assim, um documento que repesca a natureza ambivalente do antecessor: é capaz de revelar um anacronismo mágico, reportando-nos ao ideário clássico da soul (leia-se Motown), e, em simultâneo, trazê-lo arrumado num som fresco, vivo, acessível e moderno. Nesse particular, faz-se notar a aposta num registo mais directo, dir-se-ia poppy, o que se traduz num menor investimento na experimentação e no sublinhado das melodias amigas do ouvido. Se isso pode ser pretexto para alguns verem Jim como produto de cedências ou, a outro nível, como mero conjunto de citações a referências de Lidell, não é menos verdade que se trata de um disco sólido, bem escrito e produzido e com um punhado de hits imediatos ("Another Day", "Out of My System" ou "All I Wanna Do"). E essa é a melhor homenagem que Lidell podia deixar aos ícones da soul negra, de Sam Cooke a Al Green, de Bobbie Womack a Curtis Mayfield, de Otis Redding a Percy Sledge, de Sly Stone a James Brown, de Marvin Gaye a Stevie Wonder. Jim é, por isso, uma confidência pessoal e íntima de Lidell e que apetece ouvir com a mesma paixão com que foi erguida.
quarta-feira, 14 de maio de 2008
White Williams - Smoke
Na maior parte dos casos em que se pousa um CD no leitor sem nada saber sobre ele, o mais natural é dar-se uma de duas coisas: ou sobra a frustração de se descobrir algo com que não nos identificamos minimamente, assim despertando rejeições imediatas, ou, pelo contrário, saímos rendidos à surpresa positiva de perceber empatias instantâneas. A segunda hipótese é perfeitamente válida no debute discográfico de Joe Williams, de quem se descobre, depois do enlevo de desvendar as maravilhas de Smoke, tratar-se de um protagonista norte-americano das órbitas do experimentalismo e do noise que, paulatinamente, recentrou o percurso artístico em trejeitos de pop vivaça, descentrada e dançante. Numa identidade musical que nos envolve no imaginário mais ritmado e orgânico de alguns momentos de Beck ou David Bowie, por exemplo, Smoke é um produto psicadélico (ou colorido demais) e remete para tessituras de volúpia electrónica, música de computador dir-se-ia, com beats intensas, baixo firme e guitarras preguiçosas a insinuarem melodias, com qualquer coisa de funk e de glam rock. Depois, a orgânica das faixas é sobrecarregada de filigranas e maneirismos sintéticos que se confundem e sobrepõem em camadas, cruzando-se com as casualidades acústicas, numa mescla entre retro e vanguarda nem sempre de trato fácil, em razão da agudez de certos instantes, mas coerente na sobrelotação de sons. Um concentrado pop é assim, mesmo que a polpa seja tão espessa que não se lhe tome a integridade de sabor ao primeiro trago. Mas que é suculento, lá isso é...
segunda-feira, 12 de maio de 2008
Mandrágora - Escarpa + Fadomorse - Folklore Hardcore
O selo lisboeta Hepta Trad tornou-se, nos últimos tempos, uma referência importante da nova folk portuguesa, ao acolher alguns dos mais interessantes projectos musicais de cariz tradicionalista. Não obstante essa identidade "histórica" transversal aos artistas que pontificam no catálogo da editora, é curto dizer-se que gente como os Dazkarieh, os Mandrágora, os Fadomorse ou os Omiri, por exemplo, são "apenas" veículos da tradição ou meros tradutores dos atavismos do secular manancial da música tradicional portuguesa. Essa fonte riquíssima é, em si mesma, uma genuína sugestão de coordenadas e ensinamentos instrumentais e melódicos que, depois, se acomodam a linguagens e pensares contemporâneos e a feitios de modernidade, assim convocando, no mesmo veio criativo, mágicos fragmentos de anacronismo e o indispensável pendor modernista. Em rigor, trata-se de homenagear a tradição e a história, repensando-a e trazendo-a a órbitas estéticas e escalas estruturais de hoje.
O quinteto Mandrágora, em lançamento de segundo álbum, é exemplo paradigmático desse fôlego reformista das tradições. Depois de um primeiro exercício de gravação incubado nos cânones mais tradicionais da música popular lusa, na altura situado como descendente orgulhoso desse filão, o novo opus desvenda uma curiosa vontade de procurar afinidades entre património histórico-popular e sonoridades mais próprias das urbes. Dizer isto é o mesmo que perceber que os Mandrágora têm, agora, um rumo mais definido do que antes. Não sendo um produto de radicalismos vanguardistas - isso seria atentar contra a identidade da banda - Escarpa é certamente um trabalho mais ousado do que o antecessor, desde logo na forma como os ingredientes tradicionais são postos ao serviço de composições que conjugam a tradição popular e sabores hodiernos que se confundem com alentos progressivos e jazz. A gaita-de-foles está cá, o saxofone especula mais do que antes, as cordas aparecem com oportunidade, a flauta é vírgula indispensável, o baixo e a bateria dão vida ao recanto, a guitarra clássica tece os panos da melodia. E, no meio dos instrumentais, ainda cabe uma canção inteira ("Abaixo Esta Serra"), com o canto cortês de Francisco Silva (Old Jerusalem).
O caso dos transmontanos Fadomorse é substancialmente distinto. Eles vão no quinto capítulo de um percurso marcado pela irreverência, tanto nos conteúdos líricos - onde o sentido de humor e a ironia são o expediente retratador das idiossincrasias lusas - como na feição mutante da música, entre o experimentalismo psicadélico, a tradição, a mestiçagem de géneros e o gosto pelo paganismo e as sonoridades étnicas. Foi assim que a música do octeto se tornou virtualmente inclassificável, como coisa circunstancial (ou acidental, como o improviso) que é, refém de sabores e influências do momento. Há tingiduras indisfarçáveis da cultura tradicional portuguesa, é certo, mas o conceito Fadomorse é muito mais do que isso, é oriental, é do mundo, é rock, é tribal. Segue agudo, às vezes acre, cru e acelerado, outras vezes melódico, envolvente e folclórico. Folklore Hardcore é também isso tudo e, dissimulado de emissão radiofónica da Rádio Trasmolândia, traz-nos a costumeira paródia da banda, o sentido ecléctico e musicológico da sua música, a sensibilidade universalista das canções e a harmonia de um cancioneiro visceralmente português mas voltado para o mundo. Radical é o adjectivo que melhor define os Fadomorse (e este disco), porque serve o partidarismo tradicional de música que busca as raízes lusas (e outras) e, a um nível conceptual, sublinha a índole revolucionária com que a banda cruza géneros e alerta consciências através da música. Em todo o caso, a despeito da oportunidade do conceito, quando comparado com outros discos dos transmontanos, Folklore Hardcore mostra-nos composições mais conformistas e que pouco somam ao que está para trás. Faça-se a excepção honrosa de "Indá Pastores", "Mundo Vampiro", "Caxemira" ou "Marujos do Asfalto", a tríade de trechos onde os Fadomorse mais arriscam e se saem a contento.
domingo, 11 de maio de 2008
Mesa - Para Todo o Mal
Com o tirocínio feito em dois momentos discográficos que os atiraram para a primeira linha da nova geração pop nacional, os portuenses Mesa chegam ao terceiro título, não só aproveitando os planos de estilo que fizeram a sua identidade antes, mas sobretudo dando provas de não se limitarem a passagens conformistas por esse património, reinventando-o e somando-lhe outras valências. Dessa diversidade técnica notória nos dois discos prévios e prosseguida neste Para Todo o Mal, sobra um fôlego experimentalista com duas vias: uma vontade de expor as medidas convencionais dos mais simples ideários de canção pop a derivas pontuais por outros padrões estéticos (o jazz, o rock ou a electrónica) ou, em momentos de maior ambição, a uma saudável "confusão" de proporções entre a matéria dominante (o corpo pop, pois claro), as influências estruturais e as imensas especiarias orgânicas invocadas. Fruto dessa dualidade genética dos Mesa, entre o convencional e o especulativo, Para Todo o Mal encaixa melhor na segunda definição, no sentido de ser um disco, quando comparado com os antecessores, de espaços curtos para a previsibilidade ou o padrão e que procura os ângulos incertos da experiência. Até a voz de Mónica Ferraz se expõe - sem mácula, diga-se - a outros riscos e manobras, sublinhando, também aí, a frescura das canções e de um alinhamento que conhece duas metades, separadas por um trecho de ambientes instrumentais ("Biombo"). A primeira, mais nervosa, onde pontificam composições próximas do molde que nos habituámos a escutar nos Mesa e duas aventuras (o rock pendular de "Estrela Carente" e a electrónica empolada de "Munição"), e a segunda, mais romântica e introspectiva (pode dizer-se minimalista e despojada?), com o debute baladeiro da banda ("Boca do Mundo") e curiosas surpresas de pulsação mais baixa. Em todo o caso, nem a largura estética do disco, nem o eclectismo do cardápio chegam para mascarar a modéstia de grande parte das composições que, a despeito da riqueza estrutural, se ficam por uma mediania satisfatória, é certo, mas aquém daquilo que podia esperar-se da evolução dos Mesa.
Posto de escuta MySpace
quarta-feira, 7 de maio de 2008
Santogold - Santogold
8/10
Lizard King Records
Edel
2008
www.myspace.com/
santogold
O trabalho precursor de desbaste e sedução de consciências para um formato inusitado de mesclar, com amplitude pop e medidas dançantes, influências da electrónica, do hip hop e do grime e cadências rítmicas das ruas de qualquer parte do mundo, estava feito por M.I.A., mormente desde que o mundo melómano foi tomado de surpresa pela vivacidade de Arular, lançado em 2005 como uma espécie de manifesto de música transnacional. Foi "Creator", single introdutório do álbum de Santi White (ou Santogold) que, à chegada aos escaparates, no ano transacto, motivou uma onda de comparações (justificadas) com a britânica, então aguçando a curiosidade pelo anunciado delfim artístico de M.I.A., sobretudo depois de o segundo registo desta (Kala) ter deixado espaço, atrás de uma subliminar desilusão, para o surgimento de sucedâneos.
Escutado, agora, o álbum que acolhe esse single, continuam indisfarçáveis as convergências estéticas com M.I.A., embora se notem diferenças interessantes e que, em último caso, são também as fundações de uma identidade que se descola das referências. Essa "autonomia" começa, desde logo, num investimento mais firme noutras escolas estéticas, não cedendo ao domínio da cartilha hip hop (aqui menos presente do que na discografia M.I.A.), mas essencialmente convocando sabores da electrónica independente, do new wave clássico, do dub ou, surpresa maior, do rock de última geração. O resultado é um disco pleno de inventividade pop, com canções bem construídas - longe do fôlego de guerrilha de M.I.A. - e alvo de uma produção certíssima (Diplo, Disco D, Chuck Tree, XXXchange e a própria M.I.A. assinam). A isso, some-se um eclectismo consequente e sem desorientação, em volta das mais comuns linguagens da música urbana corrente, que empresta ao álbum o dinamismo e diversidade próprias de um objecto para consumir horas a fio. Santogold é um festim luxuoso de texturas entusiasmadas pelo digital, de exorbitâncias e combinações de estilos, de uma voz que faz circunstâncias (ao invés de, a elas, se acomodar), de sentido de proporção entre a estrutura melódica e o apelo da dança (sem sobreposições) e, por tudo isso, é uma das grandes revelações da primeira metade do ano.
Lizard King Records
Edel
2008
www.myspace.com/
santogold
O trabalho precursor de desbaste e sedução de consciências para um formato inusitado de mesclar, com amplitude pop e medidas dançantes, influências da electrónica, do hip hop e do grime e cadências rítmicas das ruas de qualquer parte do mundo, estava feito por M.I.A., mormente desde que o mundo melómano foi tomado de surpresa pela vivacidade de Arular, lançado em 2005 como uma espécie de manifesto de música transnacional. Foi "Creator", single introdutório do álbum de Santi White (ou Santogold) que, à chegada aos escaparates, no ano transacto, motivou uma onda de comparações (justificadas) com a britânica, então aguçando a curiosidade pelo anunciado delfim artístico de M.I.A., sobretudo depois de o segundo registo desta (Kala) ter deixado espaço, atrás de uma subliminar desilusão, para o surgimento de sucedâneos.
Escutado, agora, o álbum que acolhe esse single, continuam indisfarçáveis as convergências estéticas com M.I.A., embora se notem diferenças interessantes e que, em último caso, são também as fundações de uma identidade que se descola das referências. Essa "autonomia" começa, desde logo, num investimento mais firme noutras escolas estéticas, não cedendo ao domínio da cartilha hip hop (aqui menos presente do que na discografia M.I.A.), mas essencialmente convocando sabores da electrónica independente, do new wave clássico, do dub ou, surpresa maior, do rock de última geração. O resultado é um disco pleno de inventividade pop, com canções bem construídas - longe do fôlego de guerrilha de M.I.A. - e alvo de uma produção certíssima (Diplo, Disco D, Chuck Tree, XXXchange e a própria M.I.A. assinam). A isso, some-se um eclectismo consequente e sem desorientação, em volta das mais comuns linguagens da música urbana corrente, que empresta ao álbum o dinamismo e diversidade próprias de um objecto para consumir horas a fio. Santogold é um festim luxuoso de texturas entusiasmadas pelo digital, de exorbitâncias e combinações de estilos, de uma voz que faz circunstâncias (ao invés de, a elas, se acomodar), de sentido de proporção entre a estrutura melódica e o apelo da dança (sem sobreposições) e, por tudo isso, é uma das grandes revelações da primeira metade do ano.
segunda-feira, 5 de maio de 2008
Isobel Campbell & Mark Lanegan - Sunday at Devil Dirt
Quando a lendária anti-estrela do rock americano Mark Lanegan anunciou, há dois anos, a edição de um disco conjunto com a escocesa Isobel Campbell, cândida voz mostrada nos Belle & Sebastian, o mundo melómano foi apanhado de surpresa. Se é verdade que o encontro não estaria na primeira linha das cogitações imediatas dos conhecedores da obra de ambos, ou não fossem poucas as áreas comuns aos repertórios de Campbell e Lanegan, não é menos evidente que, descontadas as superficiais diferenças estéticas, os dois sempre buscaram na melancolia o substrato medular para escrever música. É precisamente aí, na convergência para encontrar um clarão optimista (e inspirador) na melancolia e, a partir desse ponto cardeal, mostrar o lado mais generoso (e musical) da consternação, que a dupla inventa sinergias. Nessa óptica, faz todo o sentido, tanto neste Sunday at Devil Dirt como no antecessor, a união entre a angelical amenidade dos sussurros de Campbell e as orações ásperas e cavas de Lanegan. As composições são, como em Ballad of the Broken Seas, maioritariamente assinadas pela escocesa e devolvem-nos ao mesmíssimo imaginário emocional, valendo-se da aliança das vozes (tão francas que nem parecem ter sido gravadas em separado, com um oceano no meio) e da oportunidade de sublimes arranjos de cordas que, pontualmente, perfumam o minimalismo das canções. Afastada a surpresa do primeiro disco e a inconsequência de alguns dos seus trechos, Sunday at Devil Dirt é feito de canções mais escorreitas e mais carismáticas num negrume nunca definitivo - afinal fica intuída uma luz regeneradora - e erguidas, com algumas derivações estéticas, em volta do ideário "clássico" que melhor as serve: os códigos folk/blues. E não hão-de sobrar muitas dúvidas de que Campbell e Lanegan, desta vez, fizeram de um pacto improvável mais do que a mera justaposição das partes.
domingo, 4 de maio de 2008
Excepter - Debt Dept.
Da mesma forma que Camilo José Cela definiu, em tempos, a política como a arte de encaminhar a inércia do animal humano e da sua existência evolutiva, também à música pode imputar-se uma função enquanto instrumento sociológico: a de animar essa letargia intrínseca ao Homem. Assumindo como relativamente pacífico esse propósito operacional da música nas suas mais variadas identidades estéticas, é curioso descobrir na discografia dos Excepter um substrato que parece contradizer esse pressuposto. Com John Fell Ryan, Dan Houghland (eles são o núcleo criativo) e seus companheiros de sexteto, as artes musicais vincam a renúncia ao atávico encargo de açular conformismos e preguiças do espírito humano e, ao invés disso, fazem deles a matéria primaz de inspiração. Assim se entendem, neste como noutros momentos do catálogo da banda, os motivos de uma bizarra predilecção por construções melódicas (se é que se pode falar de tal coisa nos Excepter) estruturalmente anémicas, de cadências arrastadas (ou apenas subentendidas) e erguidas em lentas e psicóticas experiências de ressaca, com escalas estéticas a oscilarem, como vultos, entre o drone e a abstracção electrónica, o underground rap e o industrial. De Suicide a Bauhaus, de Swans a Boredoms, tudo embrulhado com narcóticos.
Apesar de tudo, Debt Dept. insinua-se como o menos intratável dos apêndices da família Excepter, talvez por hoje se fazerem óbvias as paisagens mentais que esta música invoca e por, em virtude disso, já estarmos familiarizados com uma linguagem de modorras e desalinhos (as convenções não cabem aqui), de beats e vocalizações discrepantes, de texturas esdrúxulas e porosas. O enlevo pelo burlesco rouba o espaço da ortodoxia nos cânones Excepter e são, sobretudo, as derivações para a excentricidade e o primitivismo, também um ou outro resvalo auto-destrutivo, que fazem o feitiço de Debt Dept.. Nem todas as "canções" são pitanças do tamanho de "Kill People" ou "Burgers" (grande, grande, grande, grande), mas um disco de Excepter é sempre obra para desfiar com a reverência que merece.
sábado, 3 de maio de 2008
Crystal Castles - Crystal Castles
Tendo chegado ao conhecimento da comunidade melómana graças às ferramentas cibernéticas, então apresentando curiosas revisões de canções assinadas por terceiros (Klaxons, Goodbooks, Bloc Party ou Liars), o duo canadiano Crystal Castles inicia-se, agora, nas lides discográficas em nome próprio. E procurar uma definição para as electrónicas de Ethan Kath (programações) e Alice Glass (voz) leva-nos, desde logo, a uma delirante incursão pelo universo sonoro de videojogos datados, tal é a forma como as texturas incorporam rudimentares sons 8-bits para construir melodias, umas vezes em sobrelotado e intenso caos de ruídos, ao jeito de uma explosão hedonista de cóleras sem rumo definido, noutras encostando-se a formas mais convencionais do cancioneiro electropop "clássico". Em qualquer dos casos, há um denominador comum nas cadências rítmicas, a indisfarçável afinidade com a cartilha Soft Cell. E, ao mesmo tempo, num facto raro em música com este calibre orgânico, os ambientes do disco não se esgotam na festividade que seria natural esperar, nem sequer fazem dela epicentro, preferindo alinhar por um ansioso desencanto (nesse particular, as vocalizações ácidas de Glass desempenham papel crucial) pouco comum às pistas de dança. É esse o sinal identitário dos Crystal Castles, num disco a apontar para órbitas pós-festa e que vem recheado de (bons) exemplos da utilidade das máquinas para fazer electrónica angular, borbulhante, ingénua e absolutamente desafiante.
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