O selo lisboeta Hepta Trad tornou-se, nos últimos tempos, uma referência importante da nova folk portuguesa, ao acolher alguns dos mais interessantes projectos musicais de cariz tradicionalista. Não obstante essa identidade "histórica" transversal aos artistas que pontificam no catálogo da editora, é curto dizer-se que gente como os Dazkarieh, os Mandrágora, os Fadomorse ou os Omiri, por exemplo, são "apenas" veículos da tradição ou meros tradutores dos atavismos do secular manancial da música tradicional portuguesa. Essa fonte riquíssima é, em si mesma, uma genuína sugestão de coordenadas e ensinamentos instrumentais e melódicos que, depois, se acomodam a linguagens e pensares contemporâneos e a feitios de modernidade, assim convocando, no mesmo veio criativo, mágicos fragmentos de anacronismo e o indispensável pendor modernista. Em rigor, trata-se de homenagear a tradição e a história, repensando-a e trazendo-a a órbitas estéticas e escalas estruturais de hoje.
O quinteto Mandrágora, em lançamento de segundo álbum, é exemplo paradigmático desse fôlego reformista das tradições. Depois de um primeiro exercício de gravação incubado nos cânones mais tradicionais da música popular lusa, na altura situado como descendente orgulhoso desse filão, o novo opus desvenda uma curiosa vontade de procurar afinidades entre património histórico-popular e sonoridades mais próprias das urbes. Dizer isto é o mesmo que perceber que os Mandrágora têm, agora, um rumo mais definido do que antes. Não sendo um produto de radicalismos vanguardistas - isso seria atentar contra a identidade da banda - Escarpa é certamente um trabalho mais ousado do que o antecessor, desde logo na forma como os ingredientes tradicionais são postos ao serviço de composições que conjugam a tradição popular e sabores hodiernos que se confundem com alentos progressivos e jazz. A gaita-de-foles está cá, o saxofone especula mais do que antes, as cordas aparecem com oportunidade, a flauta é vírgula indispensável, o baixo e a bateria dão vida ao recanto, a guitarra clássica tece os panos da melodia. E, no meio dos instrumentais, ainda cabe uma canção inteira ("Abaixo Esta Serra"), com o canto cortês de Francisco Silva (Old Jerusalem).
O caso dos transmontanos Fadomorse é substancialmente distinto. Eles vão no quinto capítulo de um percurso marcado pela irreverência, tanto nos conteúdos líricos - onde o sentido de humor e a ironia são o expediente retratador das idiossincrasias lusas - como na feição mutante da música, entre o experimentalismo psicadélico, a tradição, a mestiçagem de géneros e o gosto pelo paganismo e as sonoridades étnicas. Foi assim que a música do octeto se tornou virtualmente inclassificável, como coisa circunstancial (ou acidental, como o improviso) que é, refém de sabores e influências do momento. Há tingiduras indisfarçáveis da cultura tradicional portuguesa, é certo, mas o conceito Fadomorse é muito mais do que isso, é oriental, é do mundo, é rock, é tribal. Segue agudo, às vezes acre, cru e acelerado, outras vezes melódico, envolvente e folclórico. Folklore Hardcore é também isso tudo e, dissimulado de emissão radiofónica da Rádio Trasmolândia, traz-nos a costumeira paródia da banda, o sentido ecléctico e musicológico da sua música, a sensibilidade universalista das canções e a harmonia de um cancioneiro visceralmente português mas voltado para o mundo. Radical é o adjectivo que melhor define os Fadomorse (e este disco), porque serve o partidarismo tradicional de música que busca as raízes lusas (e outras) e, a um nível conceptual, sublinha a índole revolucionária com que a banda cruza géneros e alerta consciências através da música. Em todo o caso, a despeito da oportunidade do conceito, quando comparado com outros discos dos transmontanos, Folklore Hardcore mostra-nos composições mais conformistas e que pouco somam ao que está para trás. Faça-se a excepção honrosa de "Indá Pastores", "Mundo Vampiro", "Caxemira" ou "Marujos do Asfalto", a tríade de trechos onde os Fadomorse mais arriscam e se saem a contento.
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