É sempre um fenómeno polarizador de opiniões, quando um protagonista da sétima arte decide atrever-se nos domínios da música, galgando a imaginária fronteira - se quisermos, o muro de preconceito - entre dois campos artísticos que, bem vistas as coisas, conhecem recorrentemente interacções e confluências de várias ordens. O episódio mais recente coube à americana Scarlett Johansson, sex symbol preferido das modernas gerações cinéfilas, que experimenta o debute discográfico com uma colectânea de dez revisões de Tom Waits e um original. Em teoria, e antes de apreciar o produto final, o conceito subjacente ao disco seria necessariamente arriscado por encerrar dois pressupostos de risco, o de tratar-se de uma estreia de alguém que não gravara nada antes e, depois, o pormenor desse primeiro registo se inscrever num cancioneiro tão rico, exigente e emblemático quando o de Tom Waits.
Depois de uma aparição muito discutida em Coachella, ao lado dos Jesus and Mary Chain - então para interpretar "Just Like Honey", canção-bandeira do filme Lost in Translation, de Sofia Coppola, com Johansson como protagonista - e da divulgação cibernética de uma versão do clássico "Summertime" (de George Gershwin), por sugestão da Rhino Records, tinha ficado claro que, mesmo sem ter a intenção de fazer carreira na música, Scarlett Johansson dificilmente escaparia à tentação (e aos convites) para gravar um álbum. Partindo do multifacetado repertório de Waits e com uma equipa de suporte de gente de prestígio para mexer os cordelinhos do disco ou emprestar talento instrumental - David Sitek (Tv on the Radio), David Bowie e Nick Zinner (guitarra dos Yeah Yeah Yeahs) - Anywhere I Lay My Head revela uma estética muito própria. Desde logo, salientam-se as miragens arty de Sitek (é ele o alquimista-mor do disco), são elas as substâncias transformistas das canções de Waits, quase sempre a sublinhar-lhes a luz e as dimensões e viragens oníricas e a destilar a identidade insolente e crua dos originais. "Falling Down" ou "Anywhere I Lay My Head", ambas a tresandar a TV On the Radio, são exemplos paradigmáticos da cirurgia plástica de Sitek. O conceito estende-se ao restante alinhamento com coesão, compondo um corpo de canções congruentes enquanto resultado de uma definição estética e de um determinado objectivo "ambiental" para o disco, mas menos expansivas do que alguns momentos fariam supor. No fundo, é como se o mosaico de sons de que são feitas as canções fosse feito à medida de um registo vocal modesto, discreto, quase planante e narcótico. E é exactamente (e apenas) essa rígida timidez, para bem e para o mal, que a actriz americana é capaz de investir no álbum.
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