Apreciação final: 9/10
Edição: Hyperdub/Flur, Novembro 2006
Género: Dubstep
Sítio Oficial: www.hyperdub.com
Edição: Hyperdub/Flur, Novembro 2006
Género: Dubstep
Sítio Oficial: www.hyperdub.com
Este parece ser o ano da emancipação definitiva do dubstep. O que começou por ser um mistério das linguagens suburbanas de Londres, cresceu em dimensão e propagou-se ao underground planetário, tomado pela curiosidade de descobrir um idioma fabricado no profuso útero de onde derivam o dub (afinal, a medula deste som), a techno minimalista e de vanguarda, os códigos hostis do grime londrino e as beats esparsas do 2step. O resto é negrume de uma certa rigidez urbano-depressiva que se exprime em ritmos de ondulação variável, com diversas aliterações harmónicas e uma tónica especial num estado futurista (e assombrado) de fazer spoken word e de o conjugar com ambientes de experimentalismo pro-jazz. Música cheia de tons, é bom de ver. Depois do notável exercício de Burial, já publicado neste ano, o projecto conjunto do boss da Hyperdub, Kode 9, com o vocalista residente The Spaceape testa a sensibilidade dos músicos neste puzzle sincrético. Perante tamanha miríade de pistas, o risco de cair na redundância é um parasita vigilante que sempre espreita uma oportunidade para entrar. Kode 9 percebe-o habilmente. E fecha-lhe a porta. O espaço melódico do disco é gerido com pinças, como quem ergue uma dinastia de peças Lego, umas sobrepondo-se naturalmente às outras, mas incapazes de reterem os títulos nobiliárquicos sem o sustentáculo das menores. É assim a integridade de Memories of the Future. As texturas sónicas, sintéticas e maioritariamente frias, são regidas por um magnífico senso de percussão mínima, a pontuação depurada para as palavras negras de Spaceape. Voz cava de um pregador em transe apocalíptico. Os baixos sintéticos, quase inaudíveis, são serventes indispensáveis da coloração escura das peças; as únicas luzes do disco, também elas hologramas necessariamente curtos, são os ornamentos das inúmeras migalhas de electrónica sci-fi (com um bocadinho de industrial) que povoam, nas entrelinhas, as atmosferas sempre inquietantes do som. Além das propriedades reconstrutivas, Memories of the Future tem, ainda mais do que o exercício homónimo de Burial, um uso propedêutico: mostra-nos itinerários desconhecidos para o futuro da electrónica e é, por isso mesmo, um jogo de teoremas, um novo paradigma de sub-cultura verbal e musical.
Memories of the Future tem apetites pela derivação profética e usa as emoções cáusticas para se expôr à sua própria claustrofobia. É música desconfortável neste mundo e neste tempo, respira sofregamente para não se tornar comatosa e é desse sufocante impulso de sobrevivência lenta, sobretudo da propensão auto-redentora com que se reduz ao mínimo sinal de vida, que faz o seu alento. Por isso, Kode 9 e Spaceape nos mostram música de tensão austera, de corpo pequeno (quase cataléptico) mas com alma ímpar, insaciável nesse combate de sobrevivência numa galáxia sumida. Em rota para coisa nenhuma, Memories of the Future é produto sem amarras temporais, é música germinada numa improvável colisão de castas de som que, se a mais não serve (e servirá, certamente), há-de nos amestrar nas técnicas de escape à paralisia do medo do presente. E isso, como bem simulam Kode 9 e Spaceape, pratica-se melhor com a opiácea (e atormentada) demência de ser oráculo por um dia. E fantasiar memórias de um futuro, antes de ele chegar a nós.