quinta-feira, 30 de novembro de 2006

Kode 9 + The Spaceape - Memories of the Future

Apreciação final: 9/10
Edição: Hyperdub/Flur, Novembro 2006
Género: Dubstep
Sítio Oficial: www.hyperdub.com








Este parece ser o ano da emancipação definitiva do dubstep. O que começou por ser um mistério das linguagens suburbanas de Londres, cresceu em dimensão e propagou-se ao underground planetário, tomado pela curiosidade de descobrir um idioma fabricado no profuso útero de onde derivam o dub (afinal, a medula deste som), a techno minimalista e de vanguarda, os códigos hostis do grime londrino e as beats esparsas do 2step. O resto é negrume de uma certa rigidez urbano-depressiva que se exprime em ritmos de ondulação variável, com diversas aliterações harmónicas e uma tónica especial num estado futurista (e assombrado) de fazer spoken word e de o conjugar com ambientes de experimentalismo pro-jazz. Música cheia de tons, é bom de ver. Depois do notável exercício de Burial, já publicado neste ano, o projecto conjunto do boss da Hyperdub, Kode 9, com o vocalista residente The Spaceape testa a sensibilidade dos músicos neste puzzle sincrético. Perante tamanha miríade de pistas, o risco de cair na redundância é um parasita vigilante que sempre espreita uma oportunidade para entrar. Kode 9 percebe-o habilmente. E fecha-lhe a porta. O espaço melódico do disco é gerido com pinças, como quem ergue uma dinastia de peças Lego, umas sobrepondo-se naturalmente às outras, mas incapazes de reterem os títulos nobiliárquicos sem o sustentáculo das menores. É assim a integridade de Memories of the Future. As texturas sónicas, sintéticas e maioritariamente frias, são regidas por um magnífico senso de percussão mínima, a pontuação depurada para as palavras negras de Spaceape. Voz cava de um pregador em transe apocalíptico. Os baixos sintéticos, quase inaudíveis, são serventes indispensáveis da coloração escura das peças; as únicas luzes do disco, também elas hologramas necessariamente curtos, são os ornamentos das inúmeras migalhas de electrónica sci-fi (com um bocadinho de industrial) que povoam, nas entrelinhas, as atmosferas sempre inquietantes do som. Além das propriedades reconstrutivas, Memories of the Future tem, ainda mais do que o exercício homónimo de Burial, um uso propedêutico: mostra-nos itinerários desconhecidos para o futuro da electrónica e é, por isso mesmo, um jogo de teoremas, um novo paradigma de sub-cultura verbal e musical.

Memories of the Future tem apetites pela derivação profética e usa as emoções cáusticas para se expôr à sua própria claustrofobia. É música desconfortável neste mundo e neste tempo, respira sofregamente para não se tornar comatosa e é desse sufocante impulso de sobrevivência lenta, sobretudo da propensão auto-redentora com que se reduz ao mínimo sinal de vida, que faz o seu alento. Por isso, Kode 9 e Spaceape nos mostram música de tensão austera, de corpo pequeno (quase cataléptico) mas com alma ímpar, insaciável nesse combate de sobrevivência numa galáxia sumida. Em rota para coisa nenhuma, Memories of the Future é produto sem amarras temporais, é música germinada numa improvável colisão de castas de som que, se a mais não serve (e servirá, certamente), há-de nos amestrar nas técnicas de escape à paralisia do medo do presente. E isso, como bem simulam Kode 9 e Spaceape, pratica-se melhor com a opiácea (e atormentada) demência de ser oráculo por um dia. E fantasiar memórias de um futuro, antes de ele chegar a nós.

quarta-feira, 29 de novembro de 2006

Tom Waits - Orphans: Brawlers, Bawlers & Bastards

Apreciação final: 8/10
Edição: Anti, Novembro 2006
Género: Cantautor/Folk-Rock/Experimental
Sítio Oficial: www.officialtomwaits.com








Desfiar com os ouvidos um triplo álbum não é coisa para ser feita de uma assentada. Se a esse facto juntarmos o pormenor de o inventor do som ser Tom Waits, o evento ganha outra dimensão, não fosse ele um dos artesãos mais relevantes da música underground da última trintena de anos e um adepto do camaleonismo sónico, capaz de escrever em registos antipodais com a mesma congruência. Num total de 54 canções, a tríade de Orphans é uma colecção de canções que testemunham essa versatilidade. Ainda que algumas (catorze) destas peças possam ser encontradas noutros discos, não se trata de um best of ou tampouco de uma colecção de raridades; são coisas várias, desde outtakes a canções revistas, de material para cinema e teatro a algumas versões de outros patinhos feios da música, gente como os Ramones, Kurt Weill ou Daniel Jonhston. O primeiro disco, Brawlers, é um filho bastardo dos blues (com um cheirinho do rock'n'roll mais mexido), ciência quase ubíqua na obra de Waits, ou abertamente ou em regime de coordenada. Nem sempre fiéis à reputação desse formato (Waits não rima com convenção) ou a qualquer formalismo melódico, estas canções nascem de antagonismos, como se adivinharia no rótulo que as baptiza, e traçam as faíscas desses recontros, com a aspereza característica do autor e num jeito encantadoramente tosco de fazer música. Os coriscos não se repetem em Bawlers, segundo disco da colecção. Aqui, escancara-se o pórtico para a melancolia de Waits, fecha-se a torneira do ácido. Os trechos detêm-se na refinação das abstracções e do teatralismo trágico, a caminho de uma escrita delicada, entre o country, a trova ocasional e a escura placidez da noite acabada no cabaret, depois do fumo e da ressaca da ebriez. Depois disso, Bastards, o terço mais experimental, realinha-nos com a persona fetichista de Waits. Entram as tubas, o acórdeão, os banjos, chega a charanga carnavalesca e, subitamente, estamos numa bizarra sala de testes, escutando contos e sons a sondar o surrealismo, ao jeito de canções (e monólogos) sem padrão e com tons diversos. Se a dezena de borrões de Rorschach fosse música, estaria perto de Bastards.

Como o próprio Waits afirmou em entrevista promocional de Orphans, a voz é o cerne. Granulada, dúctil e gasta, é ela que ata os elementos dos vários microcosmos da sua música. É ela, também, o elo de coerência de Orphans, a mão que solta das peias o bardo selvagem e que, com o mesmíssimo beneplácito, o convida a arriscar-se à ventura de se descobrir a si mesmo. Waits leva mais de trinta anos a fazê-lo, a revelar-se e, com isso, a destapar as mais remotas linhagens da música americana. Nessa incorporação quase atávica, sempre sensível na obra de Waits (como na de Dylan, por exemplo), há mais do que uma mera vistoria de baús empoeirados; há também um quinhão pessoal e único e uma voz ímpar que legitimam um ramalhete próprio na árvore genealógica dos incontornáveis. Um dia, também como Waits acolhe a luminária dos vultos do passado, alguém colherá ensinamento nos dons dele. E Orphans é documento imprescindível desse legado intemporal. Para descobrir lentamente.

terça-feira, 28 de novembro de 2006

Lindstrom - A Feedelity Affair

Apreciação final: 7/10
Edição: Feedelity/Smalltown, Novembro 2006
Género: Electro/Disco
Sítio Oficial: www.feedelity.com








Se há espécie de som que parece imperecível é o disco sound. Reinventado, remexido ou remisturado, o género celebrizado por gente como Donna Summer, Gloria Gaynor, Harold Melvin, Boney M, Barry White, Village People ou The Trammps nos 70's, é uma reserva de vibrações a que, com alguma regularidade, os artífices da electrónica (e de outras famílias) recorrem. Piroso e efeminado para uns, dançante e contagioso para outros, o disco é, mais do que uma mera proposta de tons e ritmos, uma sugestão sónica que nos remete para as febres de Sábado à noite, as que John Badham passou à fita, no auge da era disco, com as sequências dançarinas que celebrizaram John Travolta, ao som de Stayin' Alive (Bee Gees). Nessa época, os clubes americanos trocavam as bandas ao vivo pelos vinis, seguindo a moda das discothèques francesas (daí o nome disco), dando espaço às variantes mais ritmadas do soul, da funk e das escolas latinas. É nesses argumentos históricos que se apoia o novo opus de Hans-Peter Lindstrom. Com uma formação de base distante dos formatos mais electrónicos (tocou piano num coro gospel e órgão numa banda de covers dos Deep Purple), o norueguês esbarrou ocasionalmente com o som digital e não mais o largou. Estudioso das estruturas harmónicas e dos parâmetros de produção, Lindstrom chegou à órbita electrónica acostumado a criar melodias com instrumentos reais e emprestou esse entusiasmo às primeiras invenções com um sampler. Daí às edições discográficas, também à constituição de um selo próprio (a Feedelity), foi um pequeno passo. Com um punhado de faixas celebrizadas nos circuitos de música de dança ("I Feel Space" e alguns remixes à cabeça), nem parece que este é o debute de Lindstrom em disco, mas é-o, de facto, ainda que não seja uma edição de originais, antes uma compilação de coisas lançadas em vinis de 12". Afinando pelo diapasão que guiou Lindstrom & Prins Thomas (2005), A Feedelity Affair é um tomo de electrónica sóbria e downbeat, mais voltada para o relaxe do que para o consumo excessivo das pistas, pejada de vectores e reflexos do disco sound.

Dir-se-ia que, hoje, Lindstrom é um artífice de capital importância na regeneração do género disco, pela pertinência com que o aproxima dos planos contemporâneos, sem desistir da essência festiva das origens. Revivalismo sem contaminações. Ao mesmo tempo, o som de Lindstrom, ouvido com esta integridade, perfila-se como algo que vai bem além do rótulo space disco que lhe colaram. O trabalho de síntese é do melhor que existe no espectro actual, com simetrias de sintetizador, vibração 70's e atmosferas de sedução, coisas que mesmo desviando-se, aqui e ali, da prudência "académica", não resvalam para a inconsequência. Depois, momentos como os magníficos dez minutos da peça "There’s a Drink In My Bedroom and I Need a Hot Lady" fazem promessa de recapturar as artes mágicas do disco e suas ramificações. Talvez não cheguem para repescar o blazer justo, a camisinha de colarinho generoso, as bocas-de-sino ou o tacão alto de Travolta, mas que dá vontade de erguer o braço ao alto e abanar as ancas, lá isso dá.

Posto de escutaSítio da Boomkat

sexta-feira, 24 de novembro de 2006

Kaada - Music For Moviebikers

Apreciação final: 6/10
Edição: Ipecac, Julho 2006
Género: Pós-Rock/Experimental/Orquestral
Sítio Oficial: www.kaada.no








Foi pela mão do sempre atento Mike Patton que o norueguês John Erik Kaada chegou até nós. Thank You For Giving Me Your Valuable Time, originalmente lançado na Escandinávia em 2001, foi difundido pela Ipecac há três anos, e mereceu a aprovação rendida da crítica especializada. O álbum assentou com propriedade no carácter genericamente experimental do catálogo da editora de Patton, ainda que o experimentalismo não cavasse um fosso grande entre o conceito de pop cinematográfica e o temperamento orquestral de Kaada. Tudo bem pesado, o registo recorria amiudadamente à manipulação de samples e combinava-os com elementos acústicos (instrumentos ou vozes). A subtileza dos trechos, além de comprovar a perícia técnica de Kaada no manejo de sons anacrónicos, mostrava a competência do produtor e músico em fazer, de coisas aparentemente inadaptáveis, belas peças musicais. Depois de musicar alguns filmes na sua terra-natal e de escrever um álbum conjunto com Patton, o norueguês regressa com um tomo de candura orquestral (as vozes esporádicas não chegam a verbalizar). A provar a quase perversa fixação de Kaada com os gadgets técnicos, ele enche as linhas de um blog com as minudências por detrás das gravações de Music For Moviebikers. Pondo de parte os preciosismos (que interessarão aos partidários da técnica) e depositando a atenção no produto que dela nasceu, o disco confirma a apetência cenográfica da música de Kaada. Um pormenor adicional das sessões de gravação e que não é indiferente a esse facto: Kaada tinha a companhia de um ensemble orquestral de vinte e dois elementos. Por aí, se entende a abertura de ângulos que, com uma frieza maquinal, nos empurram para a evocação de imagens. Tais figuras desenham-se num som que é de uma filigrana instrumental mais rica do que em Thanks For Giving Me Your Valuable Time e onde não cabe o protagonismo central do sampling, antes se derivando para a placidez de orquestrações recatadas, com a cadência demorada duma espécie de adágios poéticos. Não obstante não serem convencionais em sentido estrito e até sucederem no fito cenográfico em alguns instantes, as composições pouco mais apregoam do que a trivialidade comum a produtos deste género, com elegância e delicadeza, é certo, mas sem a surpresa acidental que tão bem Kaada nos deu no passado.

Mudando de verve ou simplesmente apontando ao objectivo de firmar a sua marca como compositor de música para cinema, além das fronteiras da Noruega, Kaada dá-nos um disco mais certinho do que se esperava, longe da anormalidade e das abstracções típicas da Ipecac (e de Thanks For Giving Me Your Valuable Time). Music For Moviebikers busca inspiração nas latitudes western de Morricone, nos friscalettos da Sicília, nas tarantelas do sul de Itália, em Yann Tiersen, no film noir, no folclore do leste europeu, na música gaélica, nas rancheras dos mariachis e nos glaciais pós-rock da Escandinávia. Mais orgânica do que seria de esperar com Kaada, música assim, mesmo não sendo superlativa, tão bem musicaria uma qualquer fita de Capra como uma perscrutação de memórias avulsas dos filmes que ainda não vimos.

terça-feira, 21 de novembro de 2006

The Kilimanjaro Darkjazz Ensemble - The Kilimanjaro Darkjazz Ensemble

Apreciação final: 6/10
Edição: Planet Mu, Abril 2006
Género: Electro-Jazz/Experimental/Pós-Rock
Sítio Oficial: MySpace








O Kilimanjaro, montanha branca do norte da Tanzânia, bem juntinho à fronteira com o Quénia, é o cume mais alto do continente africano. A mais de 5895m de altitude se erguem neves imemoriais, numa paisagem dominada pelo verde da savana. Esse cenário de contrastes e simbolismo inspirou o baptismo do projecto criado pelos holandeses Jason Kohnen e Gideon Kiers. Dos percursos individuais de ambos, sabe-se que Kohnen tem, sob a assinatura Bong-Ra, um percurso discográfico relevante nos domínios da electrónica irrequieta, de batida frenética e mistura de géneros, a que se convencionou chamar de breakcore, tendo inclusivamente já neste ano lançado (em formato 12'') um quarteto de revisões de Ross Csillag Alat Szuletett, álbum referencial de outro ícone do género, Venetian Snares. Gideon Kiers tem um trabalho menos notado, mas conhece-se o conceito multimédia Telcosystems, cuja estética computorizada lhe permitiu instruir-se nas linguagens sintéticas de vanguarda. O pretexto inicial deste par para a génese do Kilimanjaro Darjkazz Ensemble foi acrescentar música a alguns filmes de culto do circuito mudo, como os inesquecíveis Nosferatu, filmado por Murnau e Metropolis, de Fritz Lang. O progressivo alargamento do conceito a outros músicos, se proporcionou o crescimento formal do som do KDE, não diminuiu a inspiração na cinematografia, como bem se escuta neste álbum. Consideravelmente contrastante com os outros trabalhos de Kohnen e Kiers, a cadência deste tomo apela à inquietude pelo prenúncio de ambientes sombrios. É nesses pastos que se alimenta este animal de jazz livre, quase não-jazz, atraído pela sedução da electrónica compassada e pelos graus mais negros da órbita industrial do drone. Assim se faz um som apaixonante mas perturbador, sem réstias do abrasivo auditivo e das rotações aceleradas do breakcore (como se poderia esperar), antes em busca do aconchego do downbeat e dos efeitos sedativos da electrónica. A surpresa é ainda maior nos momentos em que o disco chega a tocar o primor minimalista, muito perto dos antípodas da assinatura Planet Mu (e do património Bong-Ra). Todavia, o inesperado não deslustra a competência dos trechos, ainda que demonstrem eficácia irregular, por vezes sobrando o juízo de que um ou outro acrescento poderia sublimar o resultado poético das composições.

The Kilimanjaro Darkjazz Ensemble encerra música de bom quilate mas, comparando os sons com o título, despontam paradoxos. De jazz fica apenas uma síntese eventual, no processo evolutivo das composições, na forma como crescem sem formalismos adstringentes, mas esse método revela-se subliminar. O jazz não é, aqui, mais do que colateral, uma espécie de luminária distante e fugaz (como em "The Nothing Changes", peça que abre o disco). Depois, escutado o disco com zelo, as propostas não se mostram tão negras assim; é certo que se procura a protecção das sombras mas, nesse particular, outras experiências mais intensas nos foram oferecidas no corrente ano (vide Altar). Esquecidos os equívocos de baptismo, o álbum é a curiosa revelação de uma mutação diferente de Kohnen e Kiers e, aí sim, dá bom resultado. E, por esse prisma, talvez se perceba melhor a afinidade com os contrastes do Kilimanjaro. Habituados à verdura esparsa da savana electrónica, os holandeses (e amigos) quiseram dar-nos um bocadinho das frias neves que os sons sintéticos também podem oferecer e, com isso, brindam-nos com um tomo de música para absorver com a mente. E trocam os ritmos precipitados da gazela de Thompson pela passada tarda do elefante africano.

segunda-feira, 20 de novembro de 2006

Balla - A Grande Mentira

Apreciação final: 8/10
Edição: Chiado Records/Edel, Novembro 2006
Género: Pop Nacional
Sítio Oficial: www.myspace.com/ballaportugal








Armando Teixeira tem sido um dos mais relevantes artesãos da música portuguesa contemporânea e, ao terceiro capítulo de um dos seus alter-egos presentes (o outro é o projecto Bullet...), percebe-se finalmente a inteireza sonora que se adivinhava nos passos anteriores. Já se passaram três anos desde Le Jeu, disco prévio de Balla, e, de lá para cá, Armando Teixeira sublimou as máximas de uma pop lúcida e perfeitamente consciente da sua baliza, com glamour subtraído à sétima arte e cheia de elegância. Novidade em A Grande Mentira é a sóbria presença vocal dele próprio na dezena de canções do disco, coisa não ouvida antes. Além do quase exclusivismo no canto do disco, o músico também puxa para si outros protagonismos, assumindo a responsabilidade das gravações, das misturas e da produção. A Grande Mentira é, por isso, o disco mais pessoal de Armando Teixeira, uma obra de ofício solitário a que se juntam, em meras colaborações esporádicas, Joana Mateus e Sylvie C. , como vozes de suporte, Dj Nel Assassin em skretchs pontuais, Vladimir Orlov no teremin e Paulo Souza na guitarra. Talvez esse isolamento criativo tenha concorrido para a sublimação das noções estruturais do autor, ao formar condições para a emenda de alguns pequenos desconchavos de outros trabalhos e, com isso, levando à depuração do som Balla. Um som opulento em matérias simultâneas mas que, em A Grande Mentira, encontra medidas justas para cada substância e enlaces cheios de oportunidade entre elas. O sabor dominante é, ainda que sabiamente encoberto em alguns trechos, um electro-pop-rock de matriz dançante mas, como não podia deixar de ser num produto Balla, há trajectórias cruzantes de outros géneros, como nos primorosos arranjos dos metais soprados ou do piano, tão perfeitamente integrados no esqueleto predominantemente sintético das canções. Depois, há balanços funk inconfundíveis - assuntos vizinhos do projecto Bullet - e qualquer coisa de uma pop inventiva que se dispõe a cruzar ambientes com fumos de cabaré e sons vagabundos.

Também nas letras, Armando Teixeira parece ter chegado à disciplina certa, ao formar textos sem ardil e empenhados em propagar serenamente um certo intimismo, circunstância também sensível na estética sonora do disco. É aí que reside a chave da empatia automática destas canções, na fidedignidade com que as composições dispensam as habilidades de estúdio e se afirmam, numa sedução cúmplice e honesta, um assomo conciliador do espírito com os ânimos dançantes do corpo (como na contagiante "Vou Fazer-te Brilhar"). Música com tamanha lisura não é feita todos os dias cá no burgo! E, se isso não bastar para satisfazer as criaturas melómanas mais exigentes, a excelência melódico-instrumental do disco faz a maravilha que falta. A Grande Mentira ressuscita os sinais vitais da pop lusa, despertando-a da imprópria letargia recente e aproximando-a das novas órbitas. Uma grande mentira assim pode muito bem ser a única verdade de que o panorama luso estava órfão.

sexta-feira, 17 de novembro de 2006

Les Georges Leningrad - Sangue Puro

Apreciação final: 8/10
Edição: TomLab, Outubro 2006
Género: Art Rock/Vanguarda
Sítio Oficial: www.lesgeorgesleningrad.org








Eles são cultores do barulho. Não o chinfrim desordenado e sem comando, mas ainda assim barulho. Cada disco dos canadianos Les Georges Leningrad é uma briga de sons tão pouco descritível como a auto-definição do seu som: rock petroquímico. Tem rock? Tem. Em ângulos coléricos e sem esqueletos. Tem químicos e carburantes? Tem. A combustão é uma certeza, ora pela espiral de estoiro das composições, em velocidades inconstantes, ora pelo recontro de energias, da percussão tresloucada, das matérias sintéticas em despudor alucinante e do canto (discurso) coado. Poney P, a voz do trio, acentua as perturbações e a demência do disco, levando o auditor aos limites da tolerância e do ridículo mas, ao mesmo tempo, prendendo-o à estética intencionalmente desconchavada do grupo. A electrónica é o fabricante principal desse delicioso despautério, pondo de pé um corpo sonoro futurista, subliminarmente sci-fi e desconstrutivo, sustentado em fraseados esparsos mas que, no conjunto de cada trecho, dão forma a um conceito ímpar. É esse, de resto, um dos truques regidos pelos Les Georges Leningrad, um estratagema singular para, partindo do alento regenerador do pós-punk, chegar a uma ordem sonora sem igual, coberta de abstracções, dissonâncias, infiltrações e enigmas. Como se, de uma assentada pouco usual, se enredassem o fulgor eléctrico e a urgência do punk, o vanguardismo e a bizarria da electrónica espacial, um certo impulso dançante, a excentricidade tonal do noise, a raridade tribal e os mais variados laivos da arte contemporânea.

Sangue Puro é uma provocação a espíritos conformados e, por isso, não se recomenda a melómanos conservadores. Nada aqui é previsível, nem o podia ser com os Les Georges Leningrad. Talvez um pouco mais negro (e assombrado) do que os dois antecessores, o novo tomo é doutrina profana sobre sangue e morcegos. E nota-se esse gozo vampírico na música, na vibração carnal dos trechos, nos sustos repentinos, nos arrepios de caverna, no incitamento ritualista da noite, no cerimonial de escapismo improvisado. Poney P afirmou, em entrevista recente, que não há melhor símbolo para o som presente dos Les Georges Leningrad do que o morcego. O pequeno mamífero quiróptero é um animal ambíguo, sinal de fortuna em certas partes do globo e emblema de medos noutras. Assim é também a música dos Les Georges Leningrad, esfíngica e cruciante mas, em simultâneo, cativante e fatalmente irresistível. E Sangue Puro é uma das mais compensadoras sensações auditivas para este ano.

quinta-feira, 16 de novembro de 2006

Damien Rice - 9

Apreciação final: 6/10
Edição: Warner, Novembro 2006
Género: Folk-Pop/Cantautor
Sítio Oficial: www.damienrice.com








Outrora um puto rebelde em busca de um espaço próprio no rock irlandês Damien Rice é, hoje, um nome firme da pop-folk britânica, volvida uma década desde os primeiros passos com o colectivo Juniper. Postos de parte esses arrebiques guitarreiros, Rice fez-se canto de melancolias espessas. "The Blower's Daughter", inesquecível peça de produção espartana que musicava repetidamente a película Closer (2004), de Mike Nichols, foi a mola mediática. Com a súbita chegada ao estrelato, o menestrel irlandês terá sentido, na preparação do segundo disco, a urgência de incutir outras marchas à sua música. Do tom platónico de O, pouco resta. Não se perdeu o tom aberto e confessional do debute, mas 9 encerra outra dinâmica instrumental, seja no recurso mais frequente ao piano (brilhante em "Accidental Babies") ou, surpresa maior, na incursão pela transparência rock. Coisa estranha (e dispensável) esta, a de escutar um trovador nas distorções de "Me, My Yoke & I"! No resto, há um pouco mais do mesmo, mormente no canto forrado a veludo de Rice, com as infalíveis oscilações de registo (do frágil e sussurrado à paixão da voz com corpo próprio), e nos exímios arranjos de cordas, de fino porte, essencialmente minimalistas, a oferecerem o complemento justo aos ângulos emocionais de 9. Lisa Hannigan, voz de flanco no primeiro álbum, e a violoncelista Vyvienne Long repetem o bónus e ajudam à eloquência do disco. Ainda assim, há em 9 uma superficial tentação pelo cliché ("Rootless Tree" é declaradamente uma amistosa amostra radio pop e "Coconuts Skins" tresanda a Paul Simon), coisa menos óbvia em O, e isso acaba por tornar o alinhamento algo aliterante e pouco sólido. Depois, o espectro de "The Blower's Daughter" povoa de través o disco, ou funcionando como mera luminária - quando Rice deposita emoções nas suas baladas mínimas - ou como ensejo formulista ("Elephant" roça o copy-paste, se esquecermos o crescendo final).

Se o entusiasmo instrumental (e a mudança pontual de tempos) transporta o disco para dimensões supostamente menos depressivas e até, aqui e ali, um pouco experimentais, por comparação com o antecessor, é porque Rice sentiu o pulso da mudança. Depois de tirar as medidas a 9, faz-se ilação imediata: ele sai-se melhor em narrativas baladeiras do que em ensaios camaleónicos noutras estirpes de som. E isso porque falta bússola ao desejo de mudança. Pois que se fique, por ora, nas loas de desamores e embaraços passionais e, quando se tentar ver livre das sombras de "The Blower's Daughter" (é possível?), que seja para valer. Às vezes, é melhor ter-se só duas cores, mesmo que elas sejam apenas gradientes do preto.

terça-feira, 14 de novembro de 2006

Joanna Newsom - Ys

Apreciação final: 9/10
Edição: Drag City, Novembro 2006
Género: Pop Erudita
Sítio Oficial: www.dragcity.com








O debute de há dois anos, com o singelo mas mágico Milk-Eyed Mender, mostrara-nos uma voz de doçura angelical em canções feitas para encantar almas virgens. Candura em quimeras de criança, assim nos tocava Newsom com inocência. No desafio do segundo disco, a harpista coloca-se oportunamente um desafio maior: fazer crescer as suas composições, sem lhes subtrair a mais preciosa matéria, a castidade. Para esse encargo, Newsom convoca uma assembleia instrumental ambiciosa, com mais de trinta instrumentistas, entregando os arranjos orquestrais a Van Dyke Parks (esteve, recentemente, com Brian Wilson em Smile), a voz e a harpa à produção do omnipresente e cru Steve Albini e a arrumação final a Jim O'Rourke. Em boas mãos, portanto. Se o amparo de tão numerosa trupe de acompanhantes faria supor, antes da audição do disco, o risco de se corromper a magia (minimalista) do primeiro tomo, Ys desmente essa premissa de raciocínio. As cordas de Newsom, as vocais e as da harpa, prosseguem o magnífico pacto do trabalho prévio, preservando o miolo de candura da sua música. Elástica e prestes a flutuar da tremura tímida dos (não muito) graves sussurrados ao desabafo mais entusiasta dos agudos doces, Newsom canta como poucas, quase lembrando os inesquecíveis vaivéns de Nina Simone, de mel rouco, ou uma Björk dos dias menos ácidos à conversa com Kate Bush. Ou outra coisa qualquer, um anjo-criança fora das eventualidades do tempo e do espaço, um enlevante arrepio à prova de desarranjos ou do bulício. A harpa, jogo de cordas que melhor veste o adjectivo etéreo, é acólito e confidente das orações, delineando os contornos das melodias, com tons suaves como uma brisa de Verão. Depois, vêm os arranjos de orquestra, ora corpulentos ora minúsculos, a dotarem as canções com um impressivo toque clássico, nunca domando os solistas (voz de Newsom e Harpa), antes avivando-lhes o critério e o rumo. Este soberbo enlace com os esquemas barrocos da orquestra leva as composições a modulações mais próprias de uma suite e, em última análise, afasta-as da formatação mais tosca da estreia. Aqui, as peças formam uma rapsódia em cinco trechos, todos em elipses além dos sete minutos e sem refrões. Dédalos sedutores do cérebro.

Ys. é daqueles discos que não cabem em nenhuma família musical. Ambivalente na contemporaneidade das melodias, com algo de progressivo, e na militância renascentista de Newsom (veja-se, inclusive, a capa do álbum), o novo opus não é de êxtases imediatos. As melodias conduzem-nos a destinos sem previsão possível, as orquestrações são o efeito de sonho e as histórias cantadas de Newsom fazem de guia-intérprete numa jornada por novos mundos. Coisas assim originais (e sinceras) não se ouvem todos os dias, são fábulas musicadas para escutar, absorver lentamente, e perceber que, depois de tomadas na plenitude, se fazem causa imprescindível da alma.

segunda-feira, 13 de novembro de 2006

Beck - The Information

Apreciação final: 7/10
Edição: Interscope, Outubro 2006
Género: Pop-Rock Alternativo
Sítio Oficial: www.beck.com








Após um punhado de álbuns de originais, já é difícil conjecturar sobre a pop moderna sem mencionar a arte de Beck. Sempre à cata de redimensionar-se, o americano tornou-se um dos emblemas do transformismo musical, teoria evolutiva que, aplicada com propriedade a espécies animais, bem serve para caracterizar o percurso do som de Beck. Iluminada por influências das mais díspares correntes, a música de Beck fez-se, numa dúzia de anos, um invulgar híbrido de géneros e tons, com primazia para o alvoroço funk (matéria aderente dos principais êxitos), é certo, mas com insinuações dos mais variados quadrantes, da música latina à electrónica, do folk melancólico ao noise rock, do blues ao free jazz, do lounge ao experimentalismo, do hip hop à pop de flor na lapela. Beck fez de tudo. Embora chegando até nós um ano depois da edição de Guero (2005), o novo disco foi gravado em 2003 e tem a produção de Nigel Godrich (terceira colaboração com Beck), ilustre engenheiro de som dos Radiohead e que, já este ano, pôs a mão em Eraser, estreia a solo de Thom Yorke. E, ao escutar o alinhamento de The Information distingue-se a interferência de Godrich, mormente na segunda metade do disco. Aí, o álbum desvia-se do repisamento de ideias passadas de Beck - traço marcante das primeiras faixas de The Information que, não soando anacrónicas, parecem migrações dos ambientes de Midnite Vultures (1999), com especial glória em Cellphone's Dead e Nausea (Simpathy for the Devil dos Stones cruzada com Loser?), dois trechos do melhor groove que Beck escreveu nos últimos tempos. Depois dessas revelações, progredir na relação de canções é descobrir, a par e passo, uma sonoridade vagabunda, não tão imediatamente amistosa do tímpano mas não menos aliciante. A esse feliz parto não é indiferente o detalhismo de Godrich, uma utilíssima ajuda na construção de subterfúgios electrónicos complexos que, guardando a alma ecléctica de Beck, lhe somam o nervo de vanguarda que melhor casa com as suas raízes.

Claramente mais cerebral, a última metade de The Information é a insinuação escapista de um Beck que se acha, a si mesmo, no meio termo entre os recursos de antanho que o celebrizaram e a visão absurda (como só Beck tem) de uma pop de canções sem régua. Um pouco mais sólido e completo do que Guero, ainda assim, o novel opus deixa algumas pontas soltas e, a despeito da vibração indiscutível e da interessante paleta de sensações que o disco captura, sobram imagens incompletas. Como na coda de encerramento do disco, vaga, comprida e quimérica, pontuada por boas ideias carentes de sublimação. Assim vai a música de The Information, na linha errante e especulativa de Beck, aqui como outra carga dramática, mas sem a reinvenção sonora que se podia esperar. A arca de música de Beck é abundante e esplêndida e abri-la é sempre um acontecimento, mesmo não sendo a maravilha de há uma década atrás.

sexta-feira, 10 de novembro de 2006

M. Ward - Post-War

Apreciação final: 8/10
Edição: Merge Records, Setembro 2006
Género: Cantautor/County-Folk/Indie Pop
Sítio Oficial: www.mwardmusic.com








Alguma auréola de trovador deve proteger M. Ward. Mesmo vendo os seus sucessivos trabalhos repetidamente ignorados pelos grandes públicos, o compositor norte-americano tem-se mantido fiel a um estilo próprio, muito próximo da mais ritualista tradição da country-folk do seu país e tem-nos mimoseado com pequenas preciosidades. Post-War é a proposta mais recente e vem na esteira dos antecessores, na estruturação concisa das canções, peças montadas sem o formalismo rígido que lhes tiraria a alma. Ouvir M. Ward traz à memória as inesquecíveis harmonias de Hank Williams, não tanto na eventual (e pouco sentida) similitude estética, mas sim na espontaneidade e laconismo. Ward, tal como Williams, guarda em trechos breves, um qualquer ápice casual e faz dele um instante singular, com uma incrível intuição rítmica, em tempos mais mexidos (na linha do country festivo) ou em cadência lenta (ao jeito da folk mais minimalista) e, sobretudo, com um apuro melódico natural. Sem artifícios. Música como a de Post-War dispensa conservantes, vive nos ecos tocantes de uma voz mel-áspero e na sobriedade da produção. É aí que o disco se afasta um pouco da regra mínima de Ward. Aqueles habituados à produção espartana de outros exercícios do autor, sentirão um brevíssimo sobressalto no primeiro contacto, por não suporem guitarras com máscara, percussões mais assertivas, teclas pontuais e arranjos mais ambiciosos. É que, ao lado do moço talentoso, há uma banda. E um som de banda. Superada a surpresa, tudo em Post-War é genuíno Ward, ora festivo e colorido (como no belo carnaval blues de "Magic Trick"), ora melancólico e circunspecto (como na enleante "Poison Cup"). Pode mesmo dizer-se, sem merecer a excomunhão, que há um sabor mais pop no disco, o que não é, nem podia ser com M. Ward, sinónimo de lamechice ou condescendência. A pop também pode levar com génio e M. Ward é homem para não fazer a coisa por menos: pesa melodias de menino, fecunda-as com afectuoso pólen primaveril, sopra-lhes a frescura de uma brisa vespertina e acende-as com as luzes do lusco-fusco.

Com Post-War, o seu mais esplêndido trabalho (talvez nivelado apenas por Transfiguration of Vincent), M. Ward investe noutras vibrações, à custa de um registo sonicamente mais farto que, com ágil engenho, se desvia da perdição do esdrúxulo. Crescimento sem hormonas, natural, meramente inato. Assim é também esta reunião de canções: madura, consciente, entusiasta e crédula. E escutar M. Ward é, cada vez mais, ter contacto com um dos melhores sujeitos da música típica americana que tem em Post-War um documento imprescindível. E um dos grandes produtos de ânimo pop para este ano.

quarta-feira, 8 de novembro de 2006

Sérgio Godinho - Ligação Directa

Apreciação final: 7/10
Edição: EMI, Outubro 2006
Género: Pop/Música Popular
Sítio Oficial: www.sergiogodinho.com








Seis anos sem ouvir a palavra autorizada dos originais de Sérgio Godinho, um dos consagrados nomes da respeitosa reserva de qualidade do cancioneiro luso, é um silêncio importante. Prosseguindo o propósito de reconciliação do seu som com as causas modernas, ritual anti-estagnação de Godinho já começado no magnífico Domingo no Mundo (1997) e continuado, com menor fulgor, em Lupa (2000), Ligação Directa é uma firme colecção de canções e vem confirmar essa propensão reformista de um dos melhores compositores portugueses, coisa vista recorrentemente ao longo do seu percurso. O que não quer dizer que Godinho seja homem de modas, nunca o foi, mas também não é artesão que aferrolhe a sua música às oscilações temporais. A sua obra tem uma ciência privada, com o inconfundível tacto no uso da língua nacional, com humor e amor(es), metáforas e ironia e uma estética e identidade muito próprias, firmadas em mais de três décadas de canções. É aí, na essência identitária, que os sinais marcantes de Godinho nunca se perdem no (e com o) tempo, aceitando-o como mero salvo-conduto ou mecanismo de sugestões tonais e de arranjos, nunca como interrupção de um fluxo criativo genuíno e sólido, cuja continuidade não aceita onerar-se com tendências. É assim que as canções de Ligação Directa nos contagiam, na simultaneidade do embalo moderno, mormente na excelência dos arranjos, e dos distintos traços estruturais da música de Godinho, recheada de predicados intrínsecos à música de feição popular. Das sátiras nascem mais alguns verbetes para a caderneta de pitorescos retratos da sociedade lusa que o músico vem construindo: "O Rei do Zum-Zum" troça da futilidade de um país viciado em reality shows e ídolos vácuos; "No Circo Monteiro Nunca Chove" fala-nos de um Portugal de duas caras, presumido e vaidoso (novo-rico), mas endividado e indigente; "O Às da Negação" (com música de Nuno Rafael) é a efígie humorada de um desporto nacional do português, a recusa de responsabilidades; "Só Neste País" mostra-nos um país de dois pólos que se confundem, o encrespado pela crise e pessimista e, ao mesmo tempo, o convencido de si mesmo.

Em entrevista recente, Sérgio Godinho definiu Ligação Directa como um disco "meigo e cáustico". De facto, a ternura das canções de amor divide o espaço do disco com a crítica de certos padrões sociais, com o humanismo do costume. E sem clivagens. Sobretudo, há em Ligação Directa uma mensagem redentora, um bónus de confiança no português descrente. Musicalmente, o último trabalho de Sérgio Godinho, mesmo sem chegar à transcendência de outros momentos, é um fôlego de continuidade e traz-nos estampas sonoras de um país real, com deformidades reconhecidas (e pouco contrariadas), que as metáforas de Godinho pintam com erudição ímpar.

domingo, 5 de novembro de 2006

Música Fresca

Ultrapassadas algumas dificuldades técnicas no servidor de alojamento, finalmente pude actualizar a lista de músicas disponíveis na Grafonola. Assim, podem escutar na íntegra, desde hoje, os seguintes trechos:

Junior Boys "Count Souvenirs"
Junior Boys "Double Shadow"
Junior Boys "So This Is Goodbye"
Spank Rock "Coke & Wet"
Spank Rock "Rick Rubin"
Spank Rock "Blackyard Betty"
The Thermals "St. Rosa and the Swallows"
The Thermals "Test Pattern"
The Thermals "An Ear For Baby"
Dani Siciliano "They Can't Wait"
Dani Siciliano "Big Time"
Chad VanGaalen "Red Hot Drops"
Bonnie 'Prince' Billy "Cursed Sleep"
Bonnie 'Prince' Billy "The Letting Go"
Ratatat "Swisha"
Ratatat "Lex"
Loto (feat. Del Marquis) "Golden Boys"
Bert Jansch "Texas Cowboy Blues"
Fat Freddy "2"
Mastodon "Crystal Skull"
Yo La Tengo "Sometimes I Don't Get You"
Sunn O))) & Boris "The Sinking Belle (Blue Sheep)"
The Decemberists "The Crane Wife 3"
The Decemberists "Yankee Bayonet"
The Decemberists "O Valencia!"
Isis "Dulcinea"

Os álbuns onde estão registadas estas músicas passaram pelo apARTES nos últimos tempos.

Espero que gostem.
Obrigado pela fidelidade.

Wolf Eyes - Human Animal

Apreciação final: 8/10
Edição: SubPop, Setembro 2006
Género: Noise Experimental/Industrial
Sítio Oficial: www.wolfeyes.net








Da miríade de ofícios musicais que nos são dados a ouvir, a escola do noise é das principais cultoras do repto à coisa padronizada e, em razão disso, não são raras as vezes em que, de uma forma ou de outra, os produtos desta família apostam em abanar consciências. Definidor de extremos acústicos, o género pode acolher os mais variados estímulos instrumentais, reais ou sintéticos, pouco importa, desde que, de entre a concorrência de discursos, sobrevenha o imprescindível ruído, afinal o objecto essencial para a inquietude do ouvinte. E é aí que o trio americano Wolf Eyes não dorme. Mesclando as radiações eléctricas e as silhuetas do metal mais ríspido (não necessariamente com a mesma álgebra) com o noise de compleição industrial, Nathan Young, John Olson e Aaron Dilloway criaram um tenebroso mundo privado, sufocante e torturado, negativo, muito escuro, agressivo (quase hostil) e tenso. Burned Mind (2004) foi cidadão paradigmático desse universo, com distorções volumosas e pujantes, brados fantasmáticos e agonizantes e baixo cortante num ambiente de suplício quase intolerável e com estímulos de choque não facilmente toleráveis por espíritos menos abertos. Uma verdadeira elegia noise. Os primeiros espasmos de Human Animal dão provas de uma mutação subliminar, por comparação com o antecessor. Apostando menos nas cargas de guitarra e mais no feedback e na estática (também jogando mais com o drama no silêncio), o corpo sonoro dos Wolf Eyes mudou. O pendor industrial-nocturno é sublimado, a ponto de se tornar a matéria dominante, tanto nos efeitos de percussão como nos sermões sinistros do ruído; as guitarras, ainda que presentes, são um dádiva mais distante (excepção feita a "Noise Not Music", peça derivativa de Burned Mind) e as aparições mais casuais do baixo ganham uma utilidade reforçada. Depois, um colérico saxofone, lançado ao éter como substância de contraste, é uma adição oportuníssima às texturas sinuosas do trio.

Independentemente do prisma que sirva à audição de Human Animal, o absurdo de agressão de Burned Mind não tem continuação. O que é o mesmo que dizer que, sem renunciar às propriedades de um som ominoso, a abordagem do trio é mais gentil, se é que tal adjectivo encaixa neste léxico de sons paranóicos e intensos. A inesperada deserção do parceiro de longa data Aaron Dilloway - padrinho de lançamento do projecto que, posteriormente, se juntou à então one-man-band de Nate Young - e sua substituição por Mike Connelly (dos Hair Police) talvez não seja dissociável disso. Era o experimentalismo desconstrutivista da guitarra de Dilloway que puxava pelos extremos viscerais do grupo, aguçando as suas neuroses e retorções e dando-lhes a carnalidade e o sangue. Hoje, sem Dilloway, a hipnose é outra, mais nervosa e cerebral, de sons cavos e acres, também mais maquinais e instintivos. Mas o pânico frio não se foi, pois o noise dos Wolf Eyes não se fecha na técnica, é algo maior, uma entidade transcendental que, independentemente do veículo (e dos artefactos) e do tempo, sempre toca (e tortura) a face negra do cérebro. Lá, onde o homem assustado se esconde do mundo. O animal humano.

sábado, 4 de novembro de 2006

Fat Freddy - Fat Freddy

Apreciação final: 7/10
Edição: Cobra Discos, Outubro 2006
Género: Rock Alternativo/Espacial
Sítio Oficial: www.fatfreddy.pt.to








Algumas almas mais atentas a estas coisas da música já tinham sido avisadas com Fanfarras de Ópio (2003), título de debute deste promissor agrupamento matosinhense, que os Fat Freddy são uma charanga dos diabos. Para eles, a música é uma convulsão de tropismos, de motins e comoções recorrentes, de corpos em movimento em órbitas menos definidas e, acima disso, de desvios criativos com a mesma dose de equilíbrio e delírio. Vê-los ao vivo é perceber tal exaltação puxada à derradeira adrenalina, ao serviço de um som futurista, é certo, mas sem pretensiosismo de vanguarda. Dir-se-ia que eles se mexem no orbe rock mas esse rótulo é castrador. Se a fertilidade sonora do disco prévio apontava a composições de cariz fortemente experimental, pautadas pela extravagância, Fat Freddy vai um pouquinho além, forjando idênticas enxurradas de som, com o opiáceo simbolismo cinematográfico do costume, mas com uma viveza reforçada. Mais cor é igual a maior vertigem. E é essa urgência pela tontura o coração das atmosferas de Fat Freddy, cheias de matéria combustíveis, nas guitarras em estalo, nas programações vibrantes, nas percussões viscerais. Tudo junto, Fat Freddy é uma estranha peleja sideral, um bizarro alinhamento de planetas, com guitarras de filmes de espiões e falas sintéticas de alienígenas psicadélicos e admiradores das polkas do levante europeu. Cortante e de ácidos vermelhos, Fat Freddy é de uma continuidade impressionante, ao ponto de poderem dispensar-se os intervalos entre faixas. Mas isso, ironia ambivalente, também joga em seu desfavor: a visão dos Fat Freddy é tão monolítica que não se conserva bem em fragmentos, os mínimos silêncios desbotam um pouco as matizes. Por oposição, também são o garante dos espasmos do disco e o catalisador do sintagma de picos, afinal um dos cunhos intrínsecos do veneno da dupla. Curioso mesmo seria ver como respirariam estes elementos, se conjugados numa extensa peça única...

Fechou-se o ciclo da fanfarra, abriu-se o pórtico do fantástico. Mais ilusório (não falso) do que o antecessor, o segundo trabalho dos Fat Freddy é irrequieto (nem seria de esperar outra coisa) e bem escrito. O lucro da união entre acústico e sintético é maior - como na jucosa revisão de "Das Model", dos lendários Kraftwerk - e mais abrasivo. Nuno Oliveira e Guedes Ferreira são precursores em ares inóspitos, a tactear as formas de uma impressão sonora sem modelo e a impugnar a previsibilidade. Com mais artifícios espaciais e um balanço rítmico mais convincente, Fat Freddy talvez ainda não seja a megalomania sonora que os matosinhenses fazem adivinhar no porvir, mas é uma experiência galopante e fogosa, quase surreal, com manhas futuristas e muito topete. Audácia, bem entendido, é o middle name dos Fat Freddy. E, bem vistas as coisas, não é preciso ser-se um qualquer milionário russo de algibeiras abastadas para fazer um promenade espacial. O novo disco dos Fat Freddy, por uma maquia muito mais simpática, dá uma ideia...

sexta-feira, 3 de novembro de 2006

OOIOO - Taiga

Apreciação final: 7/10
Edição: Thrill Jockey, Setembro 2006
Género: Indie Rock Experimental/Vanguardista
Sítio Oficial: http://ooioo.jp








Tribalismo acelerado na percussão e uma chiclete electrónica, assim são as primeiras notas de Taiga, quinto fascículo das japonesas OOIOO. A extravagância experimental destas raparigas, em contraste com a evidência binária do seu nome, não é já surpresa para ninguém, ou não fossem elas um vector referencial das coordenadas menos convencionais da música asiática. Escutar um opus das OOIOO é aderir a uma causa de contorcionismos vários, um genuíno assalto aos domínios punk com pretextos reformadores, a esticar-lhe os extremos para outras paisagens, de potenciais diversos: subliminarmente pop, psicadélico é certo, de vanguardismo free-jazz, com notas sem agregação especial e destino incerto, de programação electrónica futurista, de noise ou até funk minimalista. Nesse sentido, a música das OOIOO é produto aloucado, é som que se orgulha da imprudência propositada que, as mais das vezes, se torna cacofonia e caos. Mas a babel das OOIOO tem uma ordem intrínseca, uma maneira muito própria e singular de se arrumar no desalinho, recebendo o motim instrumental como uma substância inseparável, dando-lhe sentido e proporção. É assim a ciência de Taiga. Yoshimi P, bateria, voz, guitarra e trompete dos Boredoms, outra referência nipónica, é a persona central da ousadia criativa do quarteto. Nas OOIOO, Yoshimi desnorteia-se por acinte, exponenciando a amplitude do psicadelismo e recriando o conceito global de rock. Sim, porque de rock se trata, não de um rock sem mistura, antes um rock esquizofrénico e mutante, sem maestro óbvio, tribalista, jocoso, e cruzador de géneros. A intoxicação de Taiga vai directa ao cérebro, com mantras corais que tiram êxtase do pormenor e da aparição esporádica e texturas cosidas à agulha, firmadas em percussões acústicas (congas, xilofones, djembés, baterias) e numa feitiçaria sónica ímpar.

Não é normal um disco com semelhante preparo ser acessível. Tão intricadas tramas de sons, contudo, no caso de Taiga, revelam-se estranhamente percebíveis nos primeiros contactos, talvez porque retêm, com astúcia raríssima, uma certa credulidade tribal, algo que, circunscrevendo a identidade do disco a um determinado temperamento, não limita a infinidade de reflexos e estímulos intelectuais que a música crua (mas sofisticada) das OOIOO desencadeia. Sem confusões, a inconstância tonal de Taiga é um regalo para os ouvidos e a melhor licença para fantasiar um universo surreal, com uma floresta tropical onde vivem em comum tribos de canibais, gueixas japonesas sob o efeito de alucinogénios e personagens aposentadas dos livros de comics. Ou isso, ou o que é mais ou menos o mesmo, a hora e pico de exposição aos sons de Taiga.

Posto de escutaUMAIOASAI