quarta-feira, 29 de novembro de 2006

Tom Waits - Orphans: Brawlers, Bawlers & Bastards

Apreciação final: 8/10
Edição: Anti, Novembro 2006
Género: Cantautor/Folk-Rock/Experimental
Sítio Oficial: www.officialtomwaits.com








Desfiar com os ouvidos um triplo álbum não é coisa para ser feita de uma assentada. Se a esse facto juntarmos o pormenor de o inventor do som ser Tom Waits, o evento ganha outra dimensão, não fosse ele um dos artesãos mais relevantes da música underground da última trintena de anos e um adepto do camaleonismo sónico, capaz de escrever em registos antipodais com a mesma congruência. Num total de 54 canções, a tríade de Orphans é uma colecção de canções que testemunham essa versatilidade. Ainda que algumas (catorze) destas peças possam ser encontradas noutros discos, não se trata de um best of ou tampouco de uma colecção de raridades; são coisas várias, desde outtakes a canções revistas, de material para cinema e teatro a algumas versões de outros patinhos feios da música, gente como os Ramones, Kurt Weill ou Daniel Jonhston. O primeiro disco, Brawlers, é um filho bastardo dos blues (com um cheirinho do rock'n'roll mais mexido), ciência quase ubíqua na obra de Waits, ou abertamente ou em regime de coordenada. Nem sempre fiéis à reputação desse formato (Waits não rima com convenção) ou a qualquer formalismo melódico, estas canções nascem de antagonismos, como se adivinharia no rótulo que as baptiza, e traçam as faíscas desses recontros, com a aspereza característica do autor e num jeito encantadoramente tosco de fazer música. Os coriscos não se repetem em Bawlers, segundo disco da colecção. Aqui, escancara-se o pórtico para a melancolia de Waits, fecha-se a torneira do ácido. Os trechos detêm-se na refinação das abstracções e do teatralismo trágico, a caminho de uma escrita delicada, entre o country, a trova ocasional e a escura placidez da noite acabada no cabaret, depois do fumo e da ressaca da ebriez. Depois disso, Bastards, o terço mais experimental, realinha-nos com a persona fetichista de Waits. Entram as tubas, o acórdeão, os banjos, chega a charanga carnavalesca e, subitamente, estamos numa bizarra sala de testes, escutando contos e sons a sondar o surrealismo, ao jeito de canções (e monólogos) sem padrão e com tons diversos. Se a dezena de borrões de Rorschach fosse música, estaria perto de Bastards.

Como o próprio Waits afirmou em entrevista promocional de Orphans, a voz é o cerne. Granulada, dúctil e gasta, é ela que ata os elementos dos vários microcosmos da sua música. É ela, também, o elo de coerência de Orphans, a mão que solta das peias o bardo selvagem e que, com o mesmíssimo beneplácito, o convida a arriscar-se à ventura de se descobrir a si mesmo. Waits leva mais de trinta anos a fazê-lo, a revelar-se e, com isso, a destapar as mais remotas linhagens da música americana. Nessa incorporação quase atávica, sempre sensível na obra de Waits (como na de Dylan, por exemplo), há mais do que uma mera vistoria de baús empoeirados; há também um quinhão pessoal e único e uma voz ímpar que legitimam um ramalhete próprio na árvore genealógica dos incontornáveis. Um dia, também como Waits acolhe a luminária dos vultos do passado, alguém colherá ensinamento nos dons dele. E Orphans é documento imprescindível desse legado intemporal. Para descobrir lentamente.

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