segunda-feira, 14 de abril de 2008

Mão Morta - Maldoror




O tempo consagrou o universo de grotesco e de horror que Isidore Ducasse ergueu, em 1870, à volta da figura de Maldoror, icónico antideus do niilismo, da iconoclastia moral, do macabro e do indecoro. Exaltado como referência incontornável de inúmeros criadores surrealistas (e de pontuais derivações "góticas") das gerações seguintes, Les Chants de Maldoror é a matéria inspiradora do mais recente trabalho dos Mão Morta. Sugerido ao ensemble bracarense pelo conterrâneo Theatro Circo, o poema prosado de Ducasse (sob o pseudónimo de Comte de Lautréamont) acabou por ser pretexto para a segunda aventura de Adolfo Luxúria Canibal e companhia nos domínios da música feita para encenar, depois de Müller no Hotel Hessischer Hof, de há onze anos. À partida, em face de um texto tão negro e fatalista, seria normal esperar-se um registo sonoro vizinho dos postulados rock ásperos que se tornaram ordinários na discografia dos Mão Morta. Porém, a proposta sonora de Maldoror, não se desvinculando definitivamente dessa medula mais crua (escute-se, a título de exemplo, "A Porcaria", faixa de abertura do segundo disco), usa as palavras de Ducasse como premissa conceptual para construções musicais mais "ambientais" (porque sujeitas a uma regra de desprendimento formal e à conveniente identidade cenográfica), com uma riqueza textural que tanto convoca guitarras como electrónicas e sobre a qual poisa o cicerone cavernoso, corrosivo e dramático da voz de Adolfo L. Canibal. E, aí, percebe-se a validade da aposta numa orgânica mais melancólica, espacial e soturna; a especulação quase pós-rock que aqui mostram os Mão Morta revela-se um caixilho infalível para o bizarro e o negrume da obra de Ducasse. Nessa viagem por um mundo fantástico de desumanidade e macabrismo, descobrem-se personagens emocionalmente densas e fábulas cortantes e, en passant, quase esquecemos que os Mão Morta são uma banda de genética rock. Porque Maldoror é um exercício superior de musicalidade ao serviço da letra, de reinvenção de causas e de circunstâncias dos Mão Morta e, acima de tudo, mesmo tratando-se de uma edição "incompleta" - porque privada da componente cénica que só o palco pode dar - é um trabalho conceptual de casta extraordinária. Para sublinhar o simbolismo da obra, o disco vem distribuído com um mini-livro ilustrado, em edição limitada.

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