quinta-feira, 30 de março de 2006

Atraso na actualização do apARTES

Saudações musicais a todos os utilizadores deste blog.

Em virtude da assunção de novas obrigações profissionais do seu autor, o apARTES não mereceu a actualização a que os frequentadores deste espaço estão habituados. Por esse facto, deixo as minhas desculpas e informo de que a normalidade será paulatinamente reposta a partir da próxima semana.

Entretanto, para que os amantes da música que aqui buscam algumas sugestões não fiquem de mãos a abanar, deixo uma curta lista de discos que tenho ouvido (não com a frequência que gostaria) e que virei a analisar com mais detalhe num futuro próximo. Assim, têm passado pelo meu leitor de cd's os seguintes títulos:

  • BEN HARPER "Both Sides of the Gun" ;
  • ERRO! "Isto é o quê, mãe?" ;
  • CESÁRIA ÉVORA "Rogamar" ;
  • DRUMS AND TUBA "Battles Olé" ;
  • ELLEN ALLIEN & APPARAT "Orchestra of Bubbles" ;
  • GRAHAM COXON "Love Travels at Illegal Speeds" ;
  • LOOSE FUR "Born Again in the U.S.A." ;
  • YEAH YEAH YEAHS "Show Me Your Bones" ;
  • ACEYALONE & RJD2 "Magnificent City" ;
  • DESTROYER "Destroyers' Rubies" ;
  • MANTA RAY "Torres de Electricidad"

Obrigado pela vossa paciência e fidelidade ao apARTES.
Boas audições.

segunda-feira, 27 de março de 2006

Ojos de Brujo - Techari

Apreciação final: 7/10
Edição: PIAS, Fevereiro 2006
Género: Fusão/Música Flamenca
Sítio Oficial: www.ojosdebrujo.com







Quer se queira quer não, a música dos Ojos de Brujo é flamenco. Pode não se ajustar à definição mais purista do termo, mas o espírito nómada e virtuoso da música cigana da Andaluzia (que depois se tornou símbolo da nação espanhola), a independência orgulhosa das guitarras em quase-improviso, as vozes plurais em uníssono, as palmas a acompanhar e a musicalidade típica da cultura cigana estão em Techari. O título do disco é o sinónimo romaní de "livre" e assim é a música dos Ojos de Brujo. Eles não se circunscrevem ao precioso substrato do flamenco e misturam-no com alguma electrónica, uns pozinhos de sonoridades orientais e, no mais arrojado investimento, vão buscar alguns jogos vocais ao hip-hop e insinuações instrumentais mais próprias de um disco de funk ou reggae. A esta miscigenação de géneros não é indiferente a família de colaboradores convidados para o álbum, de que fazem parte os britânicos Nitin Sawhney e Asian Dub Foundation.

Ao terceiro álbum, os Ojos de Brujo sublimam os preceitos de um conceito musical que toca correntes musicais ancestrais, da antiguidade egípcia à cultura muçulmana, do sangue quente do povo cigano ao magnetismo do som oriental, da urbanidade da expressão africana à órbita sensual dos bailados e sapateados latinos e das castanholas. De Sevilha a Dakar e Timbuktu, com escala em Londres, Xangai, Dehli e Havana. Musicalmente poliglota e escorreito, a Techari pode apenas apontar-se uma disfunção: ao tentarem interceptar, em simultâneo, uma infinidade de escolas musicais, os Ojos de Brujo comprometem algumas composições e acabam por refrear o discurso mais elogiável do seu arsenal (e aquele em que melhor concentram energias), o flamenco. Só é pena que o disco não nivele por aqueles instantes em que o flamenco melhor se concilia com outros estilos (o cruzamento com o reggae em "Corre Lola Corre", na oriental-rap "Todo Tiende" ou no hip-hop frenético de "El Confort No Reconforta") porque, aí, os Ojos de Brujo são pouco menos do que esplêndidos.

sexta-feira, 24 de março de 2006

Neko Case - Fox Confessor Brings the Flood

Apreciação final: 7/10
Edição: Anti, Março 2005
Género: Pop-Rock Alternativo/Country
Sítio Oficial: www.nekocase.com








Ao quarto álbum de estúdio, a voz de Neko Case está melhor do que nunca. Ela é senhora daquele tipo de cordas vocais que vão refinando com o gosto do tempo, buscando a sublimação da expressividade e reforçando a elegância em cada timbre. Uma voz destas, assim profunda, faz de qualquer emoção, mais do que uma intuição, uma força tangível, que se sente e quase se toca. Ao mesmo tempo, apetece degustar, num compasso lento, a pureza inata do registo vocal reverberante de Case, como se de um corpo sacro se tratasse e, portanto, não susceptível de se misturar com a mortalidade do ouvinte. No fundo, sem olvidar o nexo com o efémero (as canções falam de amores confusos e amizades e crenças corrompidas), a música deste Fox Confessor Brings the Flood tem qualquer coisa que não se conforma às leis naturais e o veículo essencial dessa frente imaterial é mesmo a voz de Case. Se isso não é bastante, pode ainda somar-se que a autora apurou o sentido estético das suas criações, aventurando-se num espaço sonoro aberto, com influências óbvias da música country mais taciturna e alguns desvios sempre oportunos para revisitar outros géneros.

O porte garboso das composições é ingénito, a secundar com propriedade a excelência do canto de Case, graças a uma trupe de instrumentistas ilustres (Howe Gelb, John Convertino, Joey Burns, Garth Hudson e a voz secundária de Rachel Flotard). Tudo embrulhado numa produção cautelosa, a sugerir a porção vocal como substância primeira e a prover as canções de um lisonjeiro embalo anacrónico. Ao mesmo tempo, o abuso detalhista da produção nem sempre faz justiça à dinâmica suavemente anarquista da escrita de Case, moderando as sucessivas derivações que, na mesma canção, nos transportam da sonoridade country tradicional para outra coisa qualquer, um híbrido tão encriptado quanto os poemas. E é pena que, com canções (e voz) deste quilate, a produção se confine à mera comodidade do hábito e não se atreva a seguir o espírito errante de Case. Mesmo assim, Fox Confessor Brings the Flood é a prova de que ela está na crista da onda (depois do êxito com os New Pornographers, no ano transacto) e de que ainda há discos (e vozes) que nos enfeitiçam de tal forma que não parecem desta era. Não parecem de era nenhuma.

quarta-feira, 22 de março de 2006

O mito de Saturno por Goya e Rubens

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Integrado no ciclo "Quadros Negros", catorze pinturas que Goya deixou nas paredes da sua última residência, a Quinta del Sordo, entre 1820 e 1824, esta obra (à esquerda) faz parte da fase obscura do artista e retrata o episódio da mitologia Romana em que o deus da fertilidade, Saturno, temendo que um dos seus filhos lhe viesse a tomar o trono, devora a prole. Reza a mitologia que, para proteger o sexto rebento (Jupiter), Reia (ou Cibele) o trocou por uma pedra trajada com as vestes do filho. Salvo da gula desenfreada do pai, Jupiter viria a ser figura de proa na ilha de Creta, obrigando o pai a regurgitar os irmãos e erguendo um monumento com a pedra que Saturno engulira por engano.

A crueza canibalista da imagem relega para segundo plano a contextualização mítica, centrando-se na dramatização visual da loucura e do horror do episódio de Saturno. Em alternativa, a visão menos improvisada do pintor flamengo Peter Paul Rubens (de 1686, à direita), sendo mais refinada e com uma dimensão épica acrescida, retém a crueldade sem remorso de Saturno.

terça-feira, 21 de março de 2006

Calexico - Garden Ruin

Apreciação final: 6/10
Edição: City Slang/Edel, Março 2006
Género: Country Alternativo/Pop
Sítio Oficial: www.casadecalexico.com








Não é que a voz fique deslocada no universo sonoro dos Calexico, mas é quase intuitivo aprender a gostar mais deles nos registos menos cantados, especialmente pelas particularidades eclécticas das composições, à procura de espaços de convergência entre a musicalidade americana, nas suas várias ramificações, e diversas influências de origem ímpar, como os tons western (a trazer à memória o mestre Morricone), a música nutrida por guitarras acústicas, mesmo o jazz e alguns laivos da América Latina. Foi assim que Joey Burns e John Convertino adubaram as fórmulas do projecto, dando origem a um country árido - não fossem eles do Arizona - muitas vezes instrumental e rico em reproduções de cenários com cowboys, desertos, cactos sedentos e veredas de pó. Garden Ruin aceita isso tudo sem resmungar, mas lança um sopro que embacia algumas dessas substâncias e, por troca, aceita visitas mais prolongadas da voz. As composições adornam-se como canções, com tempos medidos, versos e refrões. Tudo tão certinho que até parece que Burns e Convertino se estão a armar ao pingarelho e trocam a largura de vistas musicais que era expediente costumeiro por um disfarce de songwriter. Mesmo assim, a parte musical das faixas conserva alguns dos ingredientes da quintessência do grupo, ainda que condensados o suficiente para caberem nos manuais pop. Porque pop é o código de Garden Ruin que nem a diversidade instrumental do disco consegue dissimular.

Garden Ruin é o modelo light dos Calexico. Embora tecnicamente irrepreensível, a incursão pelo espaço da pop mais orelhuda hipoteca uma parte significativa da musicalidade e das fantasias do grupo. Dos fragmentos que restam do passado, não se esboçam as mesmas paisagens, antes se decretam pactos com a mediania. Talvez assim, com estas derivações comerciais, os Calexico finalmente venham a colher as honras que fizeram por merecer até aqui. O preço do mediatismo pode ser o adeus às areias do deserto. No caso deles, lamenta-se que a fuga às origens traga atrelada uma reacção alérgica: o ocaso criativo.

segunda-feira, 20 de março de 2006

Sepultura - Dante XXI

Apreciação final: 7/10
Edição: Steamhammer, Março 2006
Género: Heavy Metal/Thrash Metal
Sítio Oficial: www.sepultura.com.br








Depois das convulsões internas que levaram à deserção do antigo vocalista e líder Max Cavalera (hoje é a alma do projecto Soulfly), em 1996, os Sepultura foram forçados a um segundo tirocínio, precisamente no momento em que o seu percurso artístico chegara ao auge, com o aplauso da crítica à edição de dois álbuns referenciais do trash metal: Chaos A.D. (1993) e Roots (1996). À fase de problemas internos, seguiu-se uma certa travessia do deserto, com o recrutamento da nova voz do grupo (o americano Derrick Green) e alguns lançamentos sem a mesma chispa do período Cavalera. Com o êxito dos Soulfly, a censura subiu de tom, pressagiando a inaptidão do colectivo radicado no Brasil para sobreviver sem o seu mentor. Indiferentes às vozes de discórdia, os Sepultura seguiram o seu caminho, maturaram processos e, sem caírem na tentação de copiar o passado, tentaram ressuscitar o élan e recuperar o protagonismo que, por mérito próprio, haviam conquistado. Roorback (2003) foi o primeiro passo nesse sentido, mostrando um Derrick Green cada vez mais cómodo e resgatando o fervor thrash de outros tempos. Dante XXI é o mais recente produto do renascimento da banda e toma a mesma doutrina do antecessor. A primeira evidência que decorre da audição do novo disco é o crescimento da química entre os elementos da banda, resultando num som de crueza imaculada, ora no registo acelerado ora nos tons mais sombrios. Também Green está mais solto, definitivamente livre de fantasmas e acrescenta às texturas a diversidade vocal (em certos instantes faz lembrar Jaz Coleman dos Killing Joke) que não existia em Roorback. A nível técnico, Andreas Kisser continua a servir-se da guitarra como poucos na cena metal, arquitectando riffs com boa intensidade rítmica, contando com a preciosa ajuda das percussões explosivas de Igor Cavalera e do baixo firme de Paulo Jr.. Se isso não basta, este álbum ainda tem espaço para introduzir as cordas no catálogo dos Sepultura, mormente no recurso a violinos na sublime "Ostia".

Inspirado na magna "Divina Comédia" de Dante, também dividida em três partes (o Inferno, o Purgatório e o Paraíso), o álbum tem as dimensões de uma obra conceptual e demonstra um balanço quase perfeito entre a fúria incontida e o refinamento estético das texturas. Talvez pudesse ir mais além no arrojo das composições, mesmo na apresentação dos segmentos de cordas, mas não restem dúvidas de que há aqui puro T.N.T.. De permeio entre as partes do disco, estão quatro mini-peças (pequenas demais?) instrumentais que, por um lado, dão um descanso aos tímpanos e permitem recuperar o fôlego e, por outro, acrescentam condimentos ao cardápio. Dante XXI é, seguramente, o melhor trabalho da era-Green e, à luz das teses dantescas, não estará no Inferno, tampouco no Paraíso. É mais um avanço para galgar a montanha que Dante imaginou como passagem das almas da superfície terrena para as portas do Paraíso. De Dante, os Sepultura atraem esse purgatório, algo que começaram depois de Max Cavalera. Dante XXI mostra que eles estão um bocadinho mais perto do Éden.

sábado, 18 de março de 2006

J Dilla Jay Dee - Donuts

Apreciação final: 7/10
Edição: Stones Throw, Fevereiro 2006
Género: Rap Underground/Sampling/Beats
Sítio Oficial: www.stonesthrow.com/jdilla








Produtor reputado na cena hip-hop, J Dilla mereceu o reconhecimento artístico da elite do género, caindo nas graças de nomes como De La Soul, Common ou Busta Rhymes. Por ironia do destino, a doença prolongada que recentemente o tinha forçado a fazer a última tournée europeia sentado numa cadeira de rodas, haveria de roubá-lo à vida pouco tempo antes da edição deste segundo álbum, com 32 anos. Mais do que um requiem, Donuts é uma amostra da mestria inestimável do ex-membro dos Slum Village, um misto hip-hop / soul, firmado numa infalível cadeia de samples. A sucessão das faixas prova a perícia na escolha das várias fracções musicais, armando um corpo musical que, por pescar em referências mais e menos óbvias, esboça um espaço sonoro moderno. Todavia, a amplitude do disco é artesanal (bastam a J Dilla um drum kit, um sampler e alguns discos empoeirados), como convém a alguém desta estirpe, ousando cortar a maioria das composições e os melhores fraseados melódicos abaixo dos dois minutos sem pensar em criar-lhes as transições da praxe. No fundo, Donuts não é um álbum clássico de beats - tem muitas fracturas para isso - e é mais um esquizofrénico esquisso, uma confusão bem arrumada de uma miríade de pedaços musicais, sem sequência lógica (ou podermos chamar-lhe lógica desconstrutiva?). Mais do que o trabalho de um músico, trata-se de um apurado exercício de produção de um musicólogo, um especialista em retratar as várias dimensões do hip-hop e respectivas mestiçagens com a soul.

Donuts é um documento abarrotado de fatias de história. Não tanto a história da música, nem sequer a narrativa da música negra. Jay Dee não se atreveria a tal. A biografia encriptada por detrás deste som é a de um homem refém da doença e que, rodeado de discos que lhe marcaram a curta existência, nos mostra, cruamente, o seu engenho. E a suprema ironia do seu talento (da sua despedida) é tão refinada que escapa aos mais distraídos: os cortes abruptos nos loops e nos samples, muitas vezes no ponto mais cativante das composições, são a forma de Jay Dee se despedir, na linguagem que mais aprecia - a música - com grandes canções que, mesmo que cortadas subitamente (e até de forma iníqua), não deixam de ser grandes canções. Tal como a vida que a sina tirou a Jay Dee.

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Paul Cézanne, Le Paysan, 1891

quinta-feira, 16 de março de 2006

Man Man - Six Demon Bag

Apreciação final: 8/10
Edição: Ace Fu, Fevereiro 2006
Género: Experimental/Fusão/Rock Psicadélico
Sítio Oficial: www.wearemanman.com








Se houvesse uma trupe dos inventores musicais mais originais, certamente Honus Honus lá teria um lugar cativo. Ele é o núcleo criativo do peculiar quinteto Man Man, um dos mais bizarros ensembles do panorama presente da música americana. Fixar estremas para um cunho musical tão impressivo e sem juízo é tomar-lhe apenas uma parte. Os vestígios de Tom Waits (especialmente da fase Swordfishtrombones (1983)) ou Captain Beefheart disfarçam-se de regulamento interno do grupo e são o esteio perversor das regras da ciência musical. Para os Man Man, cada trecho de música é uma espécie de fanfarra, o palco é um circo insano onde a charanga dá largas a fantasias desmedidas. Eles são assim mesmo: uma psicadélica arma de destruição maciça, uma orquestra digna da Babilónia, sem régua e esquadro, com pianos, percussões, sopros e objectos impróprios. A isso acresce uma pitada de vangardismo, não muito comedido, diga-se, e uma dose imoderada de doidice. E como para se ser um grande maluco ainda não se paga imposto, Honus e os seus pares desligam-se da realidade, pegam nos instrumentos e empenham-se bem em mostrar-nos que sabem de cor como se faz música sem pátria, sem família e sem tempo. Afinal, Six Demon Bag consegue confundir (é um elogio!) o pop extrovertido, o rock espampanante, as marchas klezmer, o tribalismo, a valsa, a balada cigana, os coros de pirata e todo o tipo de surpresas e reviravoltas mais inesperadas. Hinos de insanidade.

No meio de tanta excentricidade (é outro elogio!), com títulos das músicas tão pitorescos quanto "Young Einstein on the Beach" ou "Banana Ghost" e cartões de visita dos músicos tão estranhos no sítio oficial (www.wearemanman.com), nunca se esperaria música convencional. Six Demon Bag está nos antípodas disso. E se não está nos cumes da originalidade - porque já se fizeram coisas parecidas - tem ao menos o caprichoso deslumbramento de tirar o véu a um mandamento insofismável da música. Aqui, como noutras etapas da história, o génio anda de mãos dadas com o louco. E, se isso não bastasse, ainda desata o saco onde tinha guardado os seus demónios. Ao que consta, uma meia dúzia deles.

quarta-feira, 15 de março de 2006

Jel - Soft Money

Apreciação final: 5/10
Edição: Anticon, Fevereiro 2006
Género: Hip-Hop Instrumental/Sampling
Sítio Oficial: www.anticon.com








Há criações musicais que vingam pela tentativa de captar um certo perfeccionismo estético, colocando um enfoque especial na produção das composições e na moldagem electrónica dos sons. Soft Money é um desses produtos e trata-se do quinto exercício a solo de Jeffrey James Logan, membro dos 13 & God, sob o alter ego artístico de Jel. Das diversas camadas sonoras que se sobrepõem em cada faixa do alinhamento, brota uma mescla de géneros, tripartida entre o hip-hop de feição instrumental, o experimentalismo e alguns conceitos psicadélicos que, neste caso, servem o propósito de dotar os ambientes do disco de outras dimensões. Jel é um malabarista de samples e loops, de vocais processados artificialmente, de baixos a pontuar em funk; usa-os abundantemente para criar ilusões e, no seu jeito, ousar a renovação dos manuais do hip-hop mais underground. Nesta cruzada, faz-se acompanhar de uma boa colheita de colaboradores, como são os casos, entre outros, de Stephanie Bohm (do projecto electro minimalista Ms. John Soda), de Andrew Broder (Fog) e Odd Nosdam (dos aclamados cloudDEAD). Mesmo assim, ainda que a sonoridade do álbum seja convincente e ateste as aptidões de Jel, a audição de Soft Money não suscita o mesmo tipo de atracção que outras edições recentes da Anticon e, pior do que isso, abeira-se de uma toada aliterante, muito próxima da monotonia. Depois, os conteúdos das letras não escapam a clichés recorrentes no tempo presente, como a diatribe hostil à administração Bush ou a sátira da decadência consumista da espécie humana o que, a despeito de algumas asserções bem alinhavadas, não chega a aquecer. Ou arrefecer.

Soft Money é um disco para adeptos do hip-hop instrumental. Progressivo? Talvez. Problema maior: uma ou outra composição meritória (por exemplo, "No Solution") não chegam para dar ao disco a amplitude que se deve reclamar a um autor como Jel. E a uma etiqueta como a Anticon. Ou, no oposto, sejamos brandos na exigência e acolhamos Jel como um mero peão no tabuleiro da reinvenção do underground. Porque a jogar como em Soft Money, o check mate parece cada vez mais demorado. E até apetece seguir o conselho que o próprio Jel, ironicamente, assina em dado momento do disco: "Don't buy this product, you don't need it".

segunda-feira, 13 de março de 2006

Cindy Kat - Vol. 1

Apreciação final: 6/10
Edição: Universal, Fevereiro 2006
Género: Pop/Electro-Pop
Sítio Oficial: www.cindykat.com








Consta que esteve para se chamar Admirável Mundo Novo mas foi prosaicamente baptizado de Vol. 1. É o trabalho de estreia dos Cindy Kat, novo projecto dos ex-Sétima Legião Pedro Oliveira e Paulo Abelho, na companhia de João Eleutério. A herança da Legião é um recurso assíduo deste projecto nacional, mormente nas faixas cantadas por Oliveira que, a despeito de puxarem ambientes com mais tiques electrónicos, encaixariam bem no catálogo do antigo grupo de Oliveira e Abelho. Esse pacto com a electrónica traz às composições uma modernidade estética que marca pontos, retorcendo com perícia os princípios que tão deliciosamente ajudaram a estabelecer a Legião. Como seria de esperar destes intérpretes, o disco é um feixe oportuno de canções, ainda que exorbite algumas ideias e, por força disso, derive perigosamente para a desconexão. Eclectismo não é sinónimo de amálgama. Talvez porque, sem o assumir, o álbum tente dispôr do testamento da Legião e, ao mesmo tempo, pôr o pé em todos os "novos" terrenos da pop mais electrónica, se baralhem conceitos que, em último caso, redundam em claro prejuízo para a coesão do álbum. É por isso que, ao invés de um admirável mundo novo, o tomo desenha dois universos alternativos: um deles, claramente contíguo das referências musicais que nortearam estes músicos no passado (serve como um fantasma da Sétima Legião) e, um outro planeta sonoro, demarcado do primeiro pela frescura e aproximação a outros propósitos, do qual faz parte a preciosa colaboração de JP Simões (Belle Chase Hotel, Quinteto Tati), a versatilidade de Sam e o serviço mínimo de Pedro Abrunhosa e Gomo.

Vol. 1 não é um álbum revolucionário, não vai mudar o mundo nem sequer o panorama da pop nacional e, por ter sido aguardado com expectativas proporcionais à relevância da Sétima Legião para a música lusa, não escapa à sentença de se esperar um pouco mais de músicos deste calibre. Ainda assim, é cumprido a preceito o fito de recuperar o imaginário da Legião, mesmo que misturado com coisas que pouco lhe dizem respeito. Para ouvir Vol. 1 sem fundir sabores, resta usar o mesmo critério de quem elege a porção que mais aprecia de uma pizza quatro estações. Aqui, a coisa até é mais simples, só há dois gostos, cada um com a sua órbita: Sétima Legião ressuscitados ou um híbrido electro-pop que, à falta de melhor definição, se conveio chamar de Cindy Kat.

sexta-feira, 10 de março de 2006

A Naifa - 3 Minutos Antes da Maré Encher

Apreciação final: 7
Edição: Zona Música, Março 2006
Género: Pop/Fado/Experimental
Sítio Oficial: www.anaifa.com/








Depois da prometedora estreia com Canções Subterrâneas (2004), o segundo andamento d' A Naifa investe em lema semelhante, o que é o mesmo que dizer que Luís Varatojo (guitarra portuguesa), João Aguardela (baixo) e Mitó Mendes (voz) prosseguem no ousada expediente de propôr indumentárias alternativas para a mais tradicional das formas de expressão musical lusas: o fado. Para os mais puristas, a sugestão atípica chegará a ser iconoclasta, no sentido de mesclar abertamente os acordes imaculados da guitarra portuguesa com elementos electrónicos que lhe colam um rótulo de modernidade. Para ouvidos adestrados, o segundo tomo deste talentoso projecto nacional é mais uma amostra com apetite reformista, mais solta e madura que o primeiro ensaio, também mais confiante. A voz de Mitó parece ter sido talhada à justa para a lida destas canções (e destes poemas), sempre aveludada e mais elástica e precisa do que em Canções Subterrâneas. Varatojo é mais cirúrgico e completo e pontua a orgânica das melodias; depois, a marcação do baixo eléctrico de Aguardela, secundado pela bateria do versátil Paulo Martins (Ramp), dão um embalo invulgar às canções. Nunca o fado se vestiu assim.

Da escola tradicional do fado, das alusões ao simbolismo da gasta e tacanha "casa portuguesa", das senhorinhas de xaile, do tempo dos crochés de rendas em cima do televisor e da camilha da sala, das memórias de Amália ou Paredes, resta aqui apenas uma vénia. Sem pretensões ou tabus, A Naifa não é já fado, é uma coisa maior (ou mais pequena, que importa?), é guitarra portuguesa pouco convencional, é voz de fadista, é amanhã. Um futuro já ensaiado nas malhas do primeiro álbum e retomado agora. E o fado, por mais brasonado que seja, caminha nas mesmas urbes dos outros géneros e não tem que se acanhar por casar pontualmente com a electrónica ou com o metrónomo de um baixo eléctrico. O resto é atmosfera. Misturar o baralho do fado e voltar a dar. Fado ou pop, mais ou menos óbvio, A Naifa é profundamente portuguesa. 3 Minutos Antes da Maré Encher sacode a dialéctica do fado e, só por isso, atrai alguma controvérsia. Mas um álbum assim tanto deliciosamente venturoso e criativo merece o mesmo lar da mais fina tradição musical nacional. Uma casa portuguesa, com certeza.

quinta-feira, 9 de março de 2006

Memórias do cinema

Warren Clarke, Patrick Magee, Malcolm McDowell e Michael Bates em A Clockwork Orange (A Laranja Mecânica, 1971)

terça-feira, 7 de março de 2006

Clogs - Lantern

Apreciação final: 7/10
Edição: Brassland, Fevereiro 2006
Género: Experimental/Fusão/Ambiente
Sítio Oficial: www.clogsmusic.com








Uma guitarra barroca em notas flutuantes deixa pegadas de luto no ar. Os acordes (de Kapsburger, séc. XVII) são vestígios que nos apresentam, logo na primeira faixa, o labiríntico novo trabalho do quarteto Clogs. Eles dividem as suas origens entre a Austrália e os Estados Unidos e subscrevem construções sonoras quase totalmente instrumentais, com o som mágico do improviso e influências transversais a vários géneros musicais. Guitarra acústica, fagote, percussões e violino integram a ementa e conjugam-se num complexo jogo de originalidade e modernismo. O berço deste disco é outro, mas há nele qualquer coisa de sons atlânticos, na terna plangência das cordas, um choro paralelo ao fado e à saudade lusa, ao extravasamento pesaroso da música celta; no roteiro musical deste Lantern regista-se também uma fugaz passagem por África, pelas percussões tribais que, aqui e ali, interferem e calibram o rumo das composições. Lantern é também um álbum residente num enclave, uma zona neutra entre a música erudita e o rock alternativo na sua face mais ambiental, numa matriz de crescendos, um desenfreado puzzle de peças que se ajustam sem operador. Peças instantâneas, daquelas a que se adere no primeiro momento e que apetece largar ao vento do espírito, até que ele sacie a curiosidade e cesse de soprar.

Lantern é um disco de emoções em levitação, de sons recatados e suspensos. Não há electricidade, não há extremos, cada instante é polido a algodão. A música dos Clogs é pura na sua essência e, ainda que não escape a um ou outro cliché do pós-rock, mexe-se como uma fantasia, simultaneamente moderna e medieval, que vai além de modas e classes. Independentemente disso, é um álbum que desenha sinfonias tensas, justapondo trechos melancólicos que medeiam os cotejos entre as paisagens idílicas e as insinuações de cenários decadentes. Lantern é o jardim do Éden e a torre de Babel, ao mesmo tempo. Em todo o caso, apetece desligar a luz, fechar os olhos e aceitar o abraço das luzes hesitantes desta lanterna.

domingo, 5 de março de 2006

The Knife - Silent Shout

Apreciação final: 8/10
Edição: Rabid Records, Março 2006
Género: Electrónica/Pop Experimental
Sítio Oficial: www.theknife.net








Depois de uma estreia auspiciosa com o magnífico Deep Cuts (2004), mano e mana Dreijer voltam a remarcar fronteiras com o mais recente trabalho. E fazem-no manejando probabilidades de um futuro digital, arriscando esboços de retratos sonoros de um universo em que o humano se subjuga à máquina. O som é, por isso, mecânico, quase cinicamente calculista quando se deixa coar pela tecnologia e por ela se rege. As expressões melódicas são governadas por sintetizadores, ou não fosse essa a sonda preferida dos The Knife, e erguem um edifício sonoro que, conservando as máximas típicas da dupla, se encaminha para planos que apuram os vectores industriais do som, em torno de um imaginário mais sombrio e frio. Frio da Suécia. Até a voz (em permanentes mutações) se rende à superioridade gélida da tecnologia e se apresenta mascarada por vocoders e outros efeitos, inflitrando-se submissa à batuta dos sintetizadores, arredada do epicentro da intensidade do disco. Seja ou não um disco desumanizado - porque pejado de corantes e conservantes - curioso mesmo é perceber que um produto assim mecânico, frio e formal, como que engenhado maquinalmente, produz impressões tão autênticas que, se não são um sucedâneo quase perfeito, andam bem perto das emoções humanas. A máquina dos The Knife também sente.

Musicalmente, Silent Shout refina as ideias da dupla sueca apontando a um padrão único de coesão e precisão clínica. Nesta cirurgia (ou siderurgia?) de sons, marca pontos a versatilidade vocal de Karin, a colorir histórias que invocam uma família de personagens grotescas: navegadores solitários, algozes com crise de identidade, hermafroditas, viciados em T.V., entre outros. Em qualquer dos casos, os Knife guardam para si a mais irónica das prerrogativas. Usam a máquina sci-fi, governam-na como uma marioneta e dão-lhe a ilusão da prevalência. Afinal, a derradeira arma de defesa das investidas da máquina está intacta, ou não bastasse desligar a ficha da tomada para suster-lhe o ímpeto. Mas, com música deste calibre, apetece deixar que as máquinas mandem mais um pouquinho. Ou, o que é o mesmo em Silent Shout, que as mãos escondidas na ponta dos cordéis das marionetas sigam assim talentosas por muitos e bons anos e que, de cada vez que se revelem, nos tragam um pedacinho mais da quintessência do futuro. Se encontrar um amanhã melhor, os Knife devolvem a diferença.

sexta-feira, 3 de março de 2006

quinta-feira, 2 de março de 2006

Mogwai - Mr. Beast

Apreciação final: 7/10
Edição: Matador, Março 2006
Género: Pós-Rock/Instrumental
Sítio Oficial: www.mogwai.co.uk








Se bem que muitos ouvidos teimem em deixá-los na periferia, os escoceses Mogwai já andam nestas lides há onze anos. Indiferente a essa marginalização, o quinteto de Glasgow construiu uma sólida reputação e é, hoje por hoje, figura essencial do circuito pós-rock instrumental, permanecendo como um dos projectos mais inspiradores do Reino Unido. Neste trabalho, sublinha-se um compromisso vocal acrescido, por comparação com outros trabalhos. De resto, mantém-se a dinâmica de altos e baixos, com um pouco mais de desassossego e volumes esticados a outros níveis, bem além da quietude de Happy Songs for Happy People (2003). A arte das frases melódicas propõe constantemente uma estranha casta de orações mentais, peças unas de meditação delineadas pelas construções sinuosas das guitarras, como se Mr. Beast fosse o fundo musical de uma catedral em ruínas. A última pedra é o vanguardismo, sempre presente em fórmulas que não temem a experiência e buscam, sem pretensiosismo, a abertura das fronteiras do país rock. O resto são equações cheias de ângulos e o toque sedutor de composições pausadas rumo a clímaces demoradamente sulfurosos, onde cada elemento toma o lugar justo e calça o sapato certo para o andamento. As passadas são divergentes, umas vezes tristes no balanço, mais pesarosas, e outras vezes mais agrestes e lancinantes. O denominador comum: a melancolia.

Os Mogwai não subscrevem música para animar a malta. A caterva tem os Black Eyed Peas para isso. Aqui, procura-se (e às vezes encontra-se) a beleza que clandestinamente flutua no éter da comiseração. Alheia e própria. Também por isso, não é um disco de lucros repentinos para o auditor. A depuração de um som multi-camadas obriga a várias audições, com a paciência de um melómano experimentado, até que se vislumbrem os sinais característicos dos Mogwai. Vencida a batalha com a barreira densa de sons, tocado o esqueleto de Mr. Beast chega-se a uma de duas conclusões: ou eles estão mais ruidosos e, por isso, mais próximos do passado ou, pelo contrário, limitaram-se a ligar o piloto automático. No caso dos Mogwai, em qualquer das hipóteses vale a pena dissecar o disco.