Nas palavras do próprio António Pinho Vargas, Solo não é um produto jazz. Exposto assim tão cruamente e um pouco em contraponto com as essências antigas de um percurso de muitos anos, o novo disco do compositor português é, num registo individualizado na intimidade do piano, de facto, uma obra menos jazzística e mais "clássica". Trata-se, afinal, de redescobrir o passado trilhado nos caminhos do jazz e não só, de nele recolher uma colecção de composições, de lhes juntar dois inéditos e, com isso, dar um sentido de coesão e congruência ética a alguns dos episódios avulsos mais marcantes de um trajecto de fina liberdade estética. Ao mesmo tempo, as gravações de Solo proporcionaram ao músico/compositor gaiense um saudado regresso aos palcos, depois de anos de ausência, por força da dedicação a outras causas, sendo o episódio mais recente a edição da ópera Os Dias Levantados - que fora originalmente uma comissão do Festival dos Cem Dias, integrado na EXPO98. À luz desta recente centragem de esforços na música erudita, Solo ganha sentido adicional enquanto exercício de retorno e revivificação de uma obra consistente e muitas vezes esquecida ou subvalorizada pelas pressões mediáticas dos mercados discográficos. O duplo-álbum tem, então, mais do que a mera dimensão da circunstância editorial, a importância de conduzir o ouvinte a um maravilhoso e plácido promenade à inventividade e às múltiplas identidades musicais de António Pinho Vargas. E ao mostrar as composições sem artifício e despidas de arranjos, ao oferecê-las no mínimo revestimento, Solo tem não só o condão de converter-se no opus mais pessoal e íntimo da discografia de APV, mas sobretudo tem a versatilidade de se desviar da mera compilação nostálgica, emprestando a trechos isolados uma "segunda pele", um senso de novidade - até de improviso - que lhes oferece harmonia e sentido de conjunto. Revisitadas assim nesta despida metamorfose, nas transparências e na singeleza melódica do piano solo, as composições de APV alcançam a rara e genuína tangibilidade das coisas humanas livres. E essa tocante delicadeza do músico ao piano, essa predilecção por mostrar o imo da música, essa imperfeição tão mundana é a mesma que serve de subtítulo a um disco imprescindível. Porque a imperfeição pode ter uma beleza esplêndida.
segunda-feira, 7 de julho de 2008
António Pinho Vargas - Solo
Nas palavras do próprio António Pinho Vargas, Solo não é um produto jazz. Exposto assim tão cruamente e um pouco em contraponto com as essências antigas de um percurso de muitos anos, o novo disco do compositor português é, num registo individualizado na intimidade do piano, de facto, uma obra menos jazzística e mais "clássica". Trata-se, afinal, de redescobrir o passado trilhado nos caminhos do jazz e não só, de nele recolher uma colecção de composições, de lhes juntar dois inéditos e, com isso, dar um sentido de coesão e congruência ética a alguns dos episódios avulsos mais marcantes de um trajecto de fina liberdade estética. Ao mesmo tempo, as gravações de Solo proporcionaram ao músico/compositor gaiense um saudado regresso aos palcos, depois de anos de ausência, por força da dedicação a outras causas, sendo o episódio mais recente a edição da ópera Os Dias Levantados - que fora originalmente uma comissão do Festival dos Cem Dias, integrado na EXPO98. À luz desta recente centragem de esforços na música erudita, Solo ganha sentido adicional enquanto exercício de retorno e revivificação de uma obra consistente e muitas vezes esquecida ou subvalorizada pelas pressões mediáticas dos mercados discográficos. O duplo-álbum tem, então, mais do que a mera dimensão da circunstância editorial, a importância de conduzir o ouvinte a um maravilhoso e plácido promenade à inventividade e às múltiplas identidades musicais de António Pinho Vargas. E ao mostrar as composições sem artifício e despidas de arranjos, ao oferecê-las no mínimo revestimento, Solo tem não só o condão de converter-se no opus mais pessoal e íntimo da discografia de APV, mas sobretudo tem a versatilidade de se desviar da mera compilação nostálgica, emprestando a trechos isolados uma "segunda pele", um senso de novidade - até de improviso - que lhes oferece harmonia e sentido de conjunto. Revisitadas assim nesta despida metamorfose, nas transparências e na singeleza melódica do piano solo, as composições de APV alcançam a rara e genuína tangibilidade das coisas humanas livres. E essa tocante delicadeza do músico ao piano, essa predilecção por mostrar o imo da música, essa imperfeição tão mundana é a mesma que serve de subtítulo a um disco imprescindível. Porque a imperfeição pode ter uma beleza esplêndida.
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