segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Jon Hopkins - Immunity


7,6/10
Domino, 2013

Conquanto já tenha feito de tudo um pouco num percurso sólido nas lides da indústria musical, seja a título próprio ou em colaborações esporádicas em inúmeros projectos, Jon Hopkins chega ao quarto longa-duração pessoal ainda na sombra do anonimato. Ou numa celebridade periférica e confinada aos limites da música dançável mais cerebral, registada nos rodapés dos créditos de muitos discos. Apesar desse desconhecimento mediático, a camaleónica condição de músico, produtor, compositor e até remisturador fizeram do britânico uma figura de rara ubiquidade desde o começo deste século, atraindo-lhe paulatinamente a curiosidade de públicos fora do nicho habitual da chamada IDM. Além disso, as repetidas associações estéticas a Brian Eno - com quem inclusivamente viria a trabalhar - ajudaram a dar incremento à revelação, culminada sobretudo na aclamação mais ou menos generalizada deste Immunity, o capítulo mais recente da evolução criativa do músico.

Com derivações pontuais, Hopkins sempre professou uma electrónica com fito na abstracção - e daí as semelhanças com Eno - embora pareçam já algo distantes os tempos em que as ideias eram formalmente mais arrumadinhas, com a ajuda de orgânicas instrumentais (ou não fosse Hopkins um pianista) que agora são menos presentes na sua música. A aposta passa presentemente por um núcleo de electrónica pura, sem resíduos de outra fonte, ao serviço de composições com o seu quê de "clássicas", mas assentes numa sobreposição de texturas mais abstractas do que antes. Ao mesmo tempo, o mundo de Immunity é tão intrincado e (pode dizer-se?) grave que não será consumo fácil, chegando a parecer um enredo tão claustrofóbico (mesmo abrasivo) de sons, sobretudo na primeira metade do disco, que quase nos desvia da sua própria essência: batidas categóricas, definição sonora equilibrada e melodia. A coisa serena, depois, com trechos mais frágeis, também mais contidos, como que ordenados num exercício de contemplação lavado em químicos. E tudo embrulhado em lentas progressões de sensibilidade cinemática que farão as delícias de alguns e parecerão, a espaços, fora do contexto para outros.

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quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Julianna Barwick - Nepenthe


8,3/10
Dead Oceans, 2013

Embora seja precipitadamente colocada no pelotão da música vanguardista mais vezes do que seria prudente, talvez por força da indefinição formal que é comum aos seus discos, a obra da norte-americana Julianna Barwick é, antes, um muito contemporâneo (e tão menos "académico") manifesto de paisagismo sonoro, de formulações musicais assentes sobretudo na invocação do mais escapista preceituário de melodia. Os recursos são simples: um jogo equilibrado de sobreposições vocais angélicas, claramente a apontar a ambientes soniais, e levíssimas interferências de instrumentos, apenas para pontuar e circunscrever as esculturas de sons a métricas mais convencionais. Já era assim em The Magic Place, longa-duração de estreia, que, há dois anos, a trouxe à primeira linha da crítica, então granjeando os louvores generalizados que lhe impulsionaram a carreira. Nesse aspecto técnico, em Nepenthe, Barwick dá continuidade à fórmula e decalca o mesmíssimo sentido de transcendência no uso da voz e, partindo daí, ergue composições tão celestiais como antes e tão alegóricas, ao jeito abstracto de uma prece, que deixam uma reverberação quase perene no ouvido. E na mente sobeja uma imagética alva, suspensa em ares frios, plena de misticismo e quietude.

E esse culto quase psicótico da voz tem nova etapa sublimadora neste Nepenthe, talvez insinuando vizinhanças mais próximas do formato canção e um reforçado quinhão de matérias instrumentais, sem macular a sensibilidade do mágico jardim de sons de Barwick. O refinamento é, portanto, uma mera (e bem-vinda) formalidade. Depois, o facto de o álbum ter sido gravado na Islândia e, pela primeira vez no percurso de Barwick, se abrir à ajuda de terceiros - a saber: Alex Somers (produtor dos islandeses Sigur Rós), o colectivo de cordas Amiina, um coro feminino e Robert Sturla Reynisson (guitarrista dos Múm) - não são pormenores estranhos à construção de atmosferas glaciares, mais expansivas e serenamente cintilantes. Uma das mais belas elegias que podemos ouvir este ano.

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terça-feira, 24 de setembro de 2013

Drake - Nothing Was the Same


7,4/10
OVO Sound, 2013

Desde o início do percurso discográfico do canadiano Drake se percebeu que ele não correspondia à mais canónica figura de rapper, ou não houvesse um mais ou menos óbvio pendor pop nas suas composições. Isso contribuiu para a paulatina afirmação radio-friendly da sua música e para o consequente (e deveras impressivo) êxito comercial, a ponto de, em muitas circunstâncias, se ter inventado mediaticamente uma disputa entre ele e Kanye West (mais virado para 50 Cent) pelo posto de protagonista maior da família pop-rap. Independentemente disso, Drake chegou rapidamente a um El Dorado que lhe trouxe fortuna astronómica e o mediatismo que talvez não esperasse num horizonte temporal tão curto. E são precisamente os reflexos emocionais de ter-se dado de esbarro com um estilo de vida de pressão mediática e de luxo material que iluminam este Nothing Was the Same. No fundo, o disco, o terceiro longa-duração, é uma confissão ambivalente, passa pelo receio de Drake poder desligar-se das raízes, as suas (que foram sempre de classe média-alta, diga-se) e as da música que professa e, ao mesmo tempo, é uma tentativa de resgatar a integridade artística que teme ter perdido no caminho. Em certo sentido, além de ter esses propósitos introspectivos, o disco é um desengano pessoal que Drake partilha com os seguidores, tocando vários aspectos da sua vida, desde uma certa desilusão existencial, às fracturas sentimentais das relações amorosas e às vicissitudes dos vínculos familiares.

Musicalmente, este Nothing Was the Same é um pouco mais fiel à medula rap do que propriamente aos chavões orelhudos que fizeram de Drake uma estrela pop. Em tudo o resto, mantém-se a simplicidade textural que se conhecia, feita de elementos a insinuar dissonâncias mas que se encontram em simbioses improváveis e lentas. Ainda assim, a despeito de um ou outro momento luminoso (por exemplo, "Hold On, We're Going Home"), este é um disco marcado pelas luzes fuscas de uma confissão deprimida e reservada. O que não quer dizer que lhe faltem argumentos sólidos. Aubrey Drake Graham só está acabrunhado e apeteceu-lhe ser auto-indulgente.

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sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Peixe:Avião - S/T


8,4/10
PAD, 2013

A bipolaridade da cena musical portuguesa tem qualquer coisa de desconcertante. Por um lado, fez-se discurso generalizado, pelo menos em alguns sectores da crítica, a marcação cerrada a um alegado imobilismo de grande maioria dos projectos musicais nacionais, como se apenas vivessem ancorados às tendências que vêm lá de fora, sem criatividade que se liberte desse pretenso cativeiro estético. É daí que nasce a inevitável (e irritante) sanha rotulista que sempre cola os músicos nacionais a semelhanças com outra qualquer coisa "estrangeira". Ao mesmo tempo, e aí mora o desconchavo, quando algum protagonista se "atreve" a inovar, portanto buscando outras dimensões criativas e linguagens, aqui d'el-rei que está a ser pretensioso e a arvorar-se intelectual. O caso dos bracarenses Peixe:avião é paradigmático dessa indelicadeza com os artistas lusos. Desde as primeiras manifestações, aplicaram-lhes levianamente o dístico de "Radiohead portugueses" - era raríssimo ler um texto sobre eles que não mencionasse Thom Yorke e a sua trupe. E se, numa fase inicial, uma consideração dessas pode ser encómio simpático e motivador, com o tempo vem a tornar-se mais onerosa (e pejorativa) do que propriamente elogiosa. Felizmente, Rolando Fonseca e companhia mantiveram-se à margem de toscas tipificações e prosseguiram um caminho que leva já seis anos e culmina, agora, no terceiro longa-duração.

Ao escutar este álbum homónimo dos Peixe:avião é imediatamente perceptível o crescimento artístico do quinteto luso, sobretudo na maturação das vontades experimentalistas que eram denominador comum das suas criações, mas raramente conheceram a extroversão com que se mostram aqui. Nesse particular, este registo é não só o melhor dos Peixe:avião como é o mais gloriosamente laboratorial, urdido numa linguagem sonora pejada de ruídos e ambientes que, mantendo a medula criativa da banda, a depurou com recurso a químicos e electrónicas (não esquecer que anda por cá o Astroboy, Luís Fernandes). A renovação orgânica faz todo o sentido nesta fase da carreira dos Peixe:avião, sendo a etapa seguinte do crescendo artístico que vêm revelando, e surge precisamente no momento em que havia o risco de estagnarem na fórmula que (bem) os trouxe à primeira linha da música nacional. Ao invés disso, aproveitaram o balanço confiante do trabalho bem feito (até aqui) para serem arrojados e inventivos como nunca, povoando as canções com sublimes excentricidades sonoras e uma interessantíssima incerteza na forma e no rumo. A música é menos imediata, é certo, mas é tanto mais surpreendente e cativante por isso. E este Peixe:Avião, a mutação mais recente da criatura musical bracarense, é um sólido candidato a disco nacional do ano. 

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Nadine Shah - Love Your Dum and Mad


7,9/10
Apollo, 2013

Embora tenha nacionalidade britânica, o seu nome faz adivinhar origens noutras paragens do mundo e a suspeita é confirmada pela ascendência dividida entre o Paquistão (pai) e a Noruega (mãe) e, ainda que residualmente, pela música de Nadine Shah. É no registo vocal que se sentem as reminiscências do ghazal, típico canto paquistanês que ela ouviu amiudadamente na infância, sobretudo na métrica arrastada, quase levitante, das palavras. Essa influência, mesmo que apenas subliminarmente presente, soma uma espiritualidade que serve às mil maravilhas o contexto musical de Shah e do seu debute discográfico, de simples e escura melancolia, de lamento de dias passados, de expurgação de feridas da alma. Por isso mesmo, Love Your Dum and Mad é um registo pesado na sua própria desolação, a despeito da leveza das composições e dos arranjos minimalistas (quase ambientais). A aposta nuclear está no magnetismo vocal de Shah, o mofino cicerone das canções que nos remetem para esconderijos não adivinhados na redundância instrumental. Marcado pelo sentimento de perda de dois amigos que puseram termo à vida durante a composição/produção do disco, um deles o autor da pintura na capa, Love Your Dum and Mad dificilmente deixaria de ter a espessura dramática que tem, servida num registo confessional que lhe rendeu inúmeros cotejos com P.J. Harvey. A comparação é imperfeita por insuficiência, há na voz de Shah alguma coisa de consternação fantasmática que não tem paralelo.

Também incontornável é a produção assinada por Ben Hillier, a envolver a voz de Shah num manto musical pautado por apontamentos incomuns, a fazerem lembrar, ao lado das guitarras, dos pianos e das percussões, um certo barroco quase industrial. Essa muito pertinente e contida extravagância ambienta a fantasia negra em que grassam os lentos tormentos de Shah. E o melhor de tudo é perceber que, audição após audição, mesmo sem uma centelha que aclare um pouco a negrura, este acabrunhado cataclismo se torna tão irresistivelmente apelativo. 

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terça-feira, 17 de setembro de 2013

Boards of Canada - Tomorrow's Harvest


7,7/10
Warp, 2013

Desde o lançamento do icónico Music Has the Right to Children, no longínquo Setembro de 98, os escoceses Boards of Canada tornaram-se porta-estandartes de um movimento musical que, até esse momento, não havia transposto os limites do anonimato. Nessa edição, Michael Sandison e Marcus Eoin captaram, com os olhos postos na electrónica que ouviam, o bucolismo da Edimburgo natal, apresentando-o ao mundo num cardápio sonoro muito próximo da profusão setentista dos precursores do sintetizador, mas contaminada por uma visão moderna na essência. De então para cá, e mesmo continuando a remeter-se a um isolamento mediático pouco entendível (raras entrevistas e informações), os manos escoceses granjearam uma franja muito significativa de seguidores (melómanos) e discípulos (criadores musicais) da ciência detalhista do seu laboratório de sons e, sobretudo, da dimensão emocional da sua música. Em boa verdade, os BoC são cientistas do som que sempre deram conta de uma afinidade com o pormenor enquanto matéria indispensável à sua álgebra de construção de texturas. É de construção que efectivamente se trata, um labor de justaposição, se quisermos, de lentos crescendos que vão convocando paulatinamente a feliz afluência de detalhes e mais detalhes. Vê-se a partida, não se adivinha o destino.

Tornou-se clássica esta forma de evocar estados de alma - a tal dimensão humana - a partir de substâncias sintéticas e fazê-lo com ponderação e equilíbrio. Nesse particular, Tomorrow's Harvest é irreprensível em dois planos. Num primeiro nível, resgata a linguagem original dos BoC, aquela dos primeiros discos, depurando-a de pequenos detalhes (lá está) algo anacrónicos e recontextualizando-a nos paradigmas estéticos actuais, sem lhe denegrir a identidade, a ponto da baixela BoC se tornar imediatamente reconhecida por qualquer melómano mais atento. Como se não tivessem passado oito anos desde o último longa-duração. A outro nível, o vínculo entre os sons (os detalhes, pois claro) é do mais ambiental que a dupla fez, com a soturna simbiose de elementos do costume, mas com amplitude mais expandida, mais desprendida, quase cinematográfica, a invocar uma miríade de cenas de cinema, deste e doutros tempos, que mais não são do que alçapões emocionais de todos nós. Nessa subjectividade intrínseca, é o ouvinte que escolhe a escapatória deste caleidoscópio. 

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segunda-feira, 16 de setembro de 2013

WWZ - Guerra Mundial


5,7/10
2013

O recurso ao mito dos zombies como matéria-prima para produtos cinematográficos perde-se no tempo, tal é a miríade de ofertas do género, em diversos formatos e com diferentes prismas, a ponto de pouco espaço sobrar para ideias frescas. Nestas circunstâncias, e aproveitando o embalo mediático do fenómeno televisivo The Walking Dead, surgiu este World War Z que, mesmo antes de chegar às salas, já estava envolto numa trama de polémicas que, alegadamente, chegaram a ameaçar a exibição de uma fita de orçamento gigantesco e sob a pressão resultadista dos estúdios que, inclusivamente, terão levado à substituição de guionistas, à troca do final do filme e a divergências entre Brad Pitt e o realizador Marc Forster. E se as perturbações pré-estreia da fita acabaram por servir-lhe como promoção desmesurada, também animaram uma onda de cepticismo sobre o que viria a ser o produto final, tão notoriamente inquinado pelas ingerências das corporações da indústria do cinema. Num contexto assim, percebe-se que dificilmente este WWZ escaparia a concessões comerciais que viriam a sulcar disparidades entre o resultado final e a visão original de Marc Forster. De resto, tendo na memória o compromisso artístico que marcou uma fase da carreira do realizador germânico - que tem no currículo títulos importantes como Monster's Ball, Finding Neverland ou Stranger than Fiction - fica mais evidente uma deriva mercantilista nos anos mais recentes (007: Quantum of Solace e Machine Gun Preacher) que conhece o auge neste World War Z. E a guinada não parece auspiciosa.

Enquanto artefacto cinematográfico, World War Z é essencialmente um produto visual, como é comum nos blockbusters, em que a narrativa assenta mais na cenografia do que no argumento (distante da obra literária que o inspirou). Além disso, a estafadíssima concentração da história na figura de um deus ex machina, incontornável em qualquer longa-metragem de super-heróis, sublinha as redundâncias de vulgaridade que povoam o filme. O desempenho competente de Brad Pitt não é suficiente para disfarçar a quase absoluta inocuidade de uma cadeia de personagens que se sucedem como meros acessórios. A solidez da narrativa sai diminuída de uma ligeireza dramática que não encontra o imprescindível suporte de personagens bem definidas nem de uma contextualização geográfica mais limitada. Ao situar-se num âmbito mundial súbito, o filme aproxima-se mais de uma aventura apocalíptica de grande dimensão (ao estilo 2012) do que da claustrofóbica constrição das mais felizes películas de zombies (vide 28 Days Later, de Danny Boyle). Com semelhante vagueza conceptual, não chega a perceber-se que filme é este World War Z, nem sequer o que pretendia ser e o que fica são os sobressaltos visuais de bom efeito e pouco mais. O que é o mesmo que dizer que este é apenas mais um filme de zombies.

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quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Baths - Obsidian


7,5/10
Dead Oceans, 2013


Já não é surpresa a invulgaridade electrónica de Will Wiesenfeld, ou não tivesse ele gerado um sobressalto significativo por alturas do debute discográfico em 2010, na ocasião com Cerulean. A linguagem musical então apresentada era profusa na exploração de melodias fracturadas, muito próximas dos universos glitch, mas embaladas em ambientes que misturavam habilmente um sopro de negrura depressiva e a luz de electrónicas calorosas. O paradoxo estrutural do primeiro disco do californiano convenceu o orbe musical de que estava em presença de um artífice sabido nas artes da orgânica instrumental, sem dúvida, e muitas vezes a catapultar-se na ironia dos limites da saturação de sons para instilar um magote de estímulos auditivos. O contacto com Baths era, por isso mesmo, uma experiência vivida em desgastante desassossego, como não deixaria de ser qualquer tentativa de decifrar um código sonoro tão pejado de artimanhas estéticas e fundamentos. Ao mesmo tempo, atrás desse hermetismo técnico e de entre as intrincadas e pormenorizadas texturas, levantava-se uma assertividade melódica simples demais para nela se crer à primeira vista. Ora assente na intencional fragilidade vocal do autor, ora poisada nos pedaços mais amistosos de electrónica, sentia-se a alma de canções a emergir da complexidade das máquinas. Três anos volvidos e tendo vencido um grave contratempo bacteriológico que o expôs à debilidade física num passado recente, Wiesenfeld assume mais abertamente o lado negro da sua persona musical.

Se estruturalmente as peças apresentadas neste Obsidian não se demarcam dos princípios (técnicos) identitários de Baths, mormente na definição textural sempre opulenta, não é menos verdade que se revelam mais pessoais e depressivas. O que não é sinónimo de serem menos complexas. A solenidade musical de Obsidian tem par no antecessor, mas serve-se de tons e contextos mais escuros e de um laconismo maior na composição. É aí que se sente verdadeiramente a crueza intimista deste disco, tanto quanto pode sê-lo um produto artístico urdido com tamanha opacidade estética. O tom confessional é de rendição: "I have no eyes, I have no love, I have no hope" escreve Wiesenfeld algures. Aos 24 anos, não é coisa leve de cantar-se.

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quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Phosphorescent - Muchacho


8,5/10
Dead Oceans, 2013


O percurso discográfico de Matthew Houck, a alma criativa por detrás da alcunha Phosphorescent, vem demonstrando inspirações cruzadas entre a música country de feição tradicional, muitas vezes servida num finíssimo (quase intangível) recorte psicadélico, e as modernas derivas da música independente americana. Nesse particular, Muchacho é porventura o registo em que mais se sente uma identidade contemporânea, ou pelo menos mais desobrigada das suas heranças; dir-se-ia que, a despeito do indisfarçável legado country que povoa as canções, este disco apura o mesmo ideário do seu antecessor. A caminhada musical de Houck, percebe-se agora, está a converter-se (voluntária ou involuntariamente, fica por saber) numa demanda pela revitalização da country, não no sentido de promover qualquer rendição por um sucedâneo de feição remoçada, mas com o fito claro de abrir-lhe frestas de modernidade e trazer essa frescura com reverência. É por isso que o exercício de Houck, mormente nos anos mais recentes, não pode considerar-se leviano. Afinal, ele respeita a escola musical que o moldou enquanto artista e que faz parte do património essencial do seu país. Que melhor forma de homenageá-la senão esta, a de emprestar-lhe outras amplitudes, a ponto de, sendo-o na alma, jamais poder dizer-se que Muchacho é um disco country?

E não o é, de facto. Além de ser perpassado por uma espiritualidade incomum em sonoridades deste tipo, Muchacho é um opus verdadeiramente exploratório, como se Houck procurasse a emancipação definitiva das referências que lhe colam repetidas vezes. E consegue-o sobretudo graças a uma riqueza textural grandiosa, suportada numa panóplia completíssima de recursos: harmonias vocais, arranjos, pianos, metais e violinos. Este desenvolvimento orgânico é o derradeiro atestado de maturação artística de Houck como Phosphorescent. Se não restavam dúvidas de que ele sempre fora capaz de tecer belas canções, a arrumação de sons deste Muchacho vem somar outro mérito: o de as adornar com raríssima acurácia. E torná-las ainda mais sedutoras com isso.

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sábado, 7 de setembro de 2013

My Bloody Valentine - m b v



8,3/10
Edição de autor, 2013


Pousado que está o imenso pó mediático sacudido pelo retorno dos My Bloody Valentine no início do ano, é hora de olhar este regresso de Kevin Shields e compinchas. A notícia de um novo disco, após vinte e dois anos sem trabalho de estúdio, tomou de surpresa os fiéis correligionários e também aqueles que, mesmo não tendo testemunhado a importância dos irlandeses à época (finais da década de oitenta e princípio dos 90's), depressa engrossaram o contingente de curiosos. Não parece possível dissociar o novo opus do fosso temporário que o separa dos seus antecessores, ou não fosse esta a era do digital e da proliferação copiosa de novas linguagens e projectos musicais que alimentam um consumo tão voraz pela novidade que, na maior parte dos casos, apenas encurta a vida útil de um disco, tornando-o tão rapidamente descartável quanto o tempo até à chegada da next big thing. Nessa sofreguidão, sobretudo nos vínculos cada vez mais disseminados de públicos com artistas, dificilmente os MBV almejariam a replicar o impacto quintessencial que tiveram antes. Lembre-se que eles foram precursores de um género rock que abusava de distorções e reverberações, um som cru e áspero, mas com envolvente sentido melódico a que as convenções colaram alguns rótulos. Shoegazing e noise rock talvez fossem os mais apropriados.

Volvidas duas décadas, o melhor elogio que pode fazer-se a m b v é dizer que o tempo não adulterou o som de Shields e seus pares com modernidades despropositadas. E isso é o mesmo que assumir que, ao escutar este novo registo retendo na memória os antigos, melhor se percebe como estes eram genialmente vanguardistas. As praxes assinadas no intemporal Loveless são repescadas aqui e não sobeja qualquer sensação de anacronismo; afinal, também parece que não existe um intervalo de tempo tão amplo a separar os dois álbuns. É numa confortável contemporaneidade que renasce a identidade dos My Bloody Valentine: m b v é o triunfo do ruído, da densidade guardadora de segredos infindáveis, da guitarra esdrúxula, da androginia das vozes espectrais. Desvendar isto tudo é coisa hercúlea, mas vale o esforço.

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sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Chelsea Wolfe - Pain is Beauty



7,6/10
Sargent House, 2013


A californiana Chelsea Wolfe é, hoje, figura de proa de um ideário musical que, à falta de definição menos simplista, se pode apelidar de folk tétrica experimental. Com efeito, é na estruturação tradicionalista da folk que a norte-americana recolhe a cartilha inspiradora de uma fatia muito significativa do seu cancioneiro, no mesmo jeito dos primeiros registos da britânica PJ Harvey, mas com derivações diferentes na substância. No lugar em que Harvey deposita linguagens abertamente rock, Wolfe emprega experimentalismo gótico. É tudo uma questão de interpretação da mesma causa confessional, dos seus fundamentos criativos, e nela se esgotam as simetrias Harvey/Wolfe. Além do mais, este Pain is Beauty é tão assertivo na separação de águas que, não só esbate comparações, como radica Chelsea Wolfe no papel de trovadora do sombrio, definitivamente emancipada do ventre folk. Parecem cada vez mais distantes os tempos de rendição ao minimalismo e a uma noção esqueletal de canção negra; mais do que confiar na fórmula guitarra/voz da colecção acústica que antecedeu este álbum (ou dos primeiros registos), Wolfe matura as canções com ambientes instrumentais que lhes robustecem o pendor gótico, mantendo guitarras medulares, mas quase asfixiadas. Cura para os indefectíveis que não farão júbilo das orquestrações mais expansivas ou das aparições da electrónica. O crescimento artístico não agrada a gregos e troianos.

E é de crescimento que se trata, de facultar valências novas à crueza da sua música sem aviltar o postulado original: a genuína crença no romantismo do sofrimento e na coexistência do bonito com a dor que é transversal à obra de Chelsea Wolfe. Ao mesmo tempo, Pain is Beauty é indiscutivelmente o opus mais acessível do seu cardápio discográfico, o que não quer dizer que haja aqui concessões de qualquer ordem. A música continua a ser uma oportuníssima mescla de fausto e vulnerabilidade, de tensões negras e desalento e é nessa promiscuidade emocional que encontra o seu equilíbrio. Mesmo que com uma excentricidade renovada.

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quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Noiserv - A.V.O.



7,4/10
Edição de autor, 2013


Nem o próprio David Santos imaginaria que, volvidos sete anos das primícias do universo Noiserv, a sua identidade musical tivesse o protagonismo mediático que tem, tampouco que se houvesse erguido uma impressionante falange de seguidores, algo bem patente nos inúmeros concertos dados um pouco por todo o país. A coisa ganha contornos mais surpreendentes se tivermos em mente que a música do lisboeta não é matéria mainstream e nunca o poderia ser, de resto. Desde o primeiro momento, o espaço Noiserv está vinculado a uma esfera intimista que não é própria de produtos de massas; há muito de expurgação emocional do indivíduo - do próprio David Santos ou de outro qualquer, numa vertigem quase obsessiva de sublimação do eu, olhando-se a si e olhando os outros (por exemplo, a mesma fatalidade de Francisco Lázaro, o carpinteiro corredor falecido aos 24 anos, depois da maratona olímpica de 1912, que inspirou José Luís Peixoto n' "O Cemitério de Pianos"). O emprego do pronome "I" é eloquente (mais de quarenta vezes, nas dez canções deste A.V.O.) sobre esse propósito, o que não deve confundir-se com egolatria fátua. Pelo contrário, está sempre subjacente uma ânsia de entender o mundo na sua complexidade, partindo do que tem de mais simples para insinuar uma terapia sem artifícios. Tão despida (na essência) como a música de David Santos.

É irrefutável o crescimento artístico neste segundo trabalho (álbum) como Noiserv, em torno do mesmo ideário estético que já se conhecia, com as mesmas singularidades: a guitarra é o edifício principal, o discurso regente. A par dela, os teclados e demais recursos - e sabe-se que David Santos deita a mão a tudo o que tiver teclas! - circunscrevem a melancolia e somam-lhe interjeições de inocência e esperança. Como se a felicidade fosse, afinal, uma coisa tão tangível como estas canções. Por fim, e a despeito da ténue sensação de redundância que perpassa este Almost Visible Orchestra, é impossível não aderir à sua tímida honestidade.


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terça-feira, 3 de setembro de 2013

Disclosure - Settle


8,1/10
PMR/Island, 2013


Tomada de assalto por uma onda revivalista como há muito não se via, a cena electrónica britânica vem apadrinhando o recrudescimento de uma safra dinâmica de novos protagonistas que tem nos Disclosure, mormente desde o EP The Face do ano transacto, um dos principais estandartes. De então para cá, e no coro talvez precipitado de aclamação que se ergueu desde a publicação deste Settle, os jovens irmãos Howard e Guy Lawrence assistiram à sagração da sua música na primeira linha da tão ansiada renovação. Se ela é efectivamente lançada é discutível e o tempo será testemunha do que há-de vir; bem vistas as coisas, mesmo não se movendo numa linguagem musical estruturalmente inovadora - é a métrica do house que domina no alinhamento -, as úteis reminiscências de outras eras, agora amalgamadas com inputs mais modernos, produzem uma mescla que tem tanto de pop como de cativante na sua própria versatilidade. Ponto forte: a cadência do disco é impactante, a remeter qualquer ouvinte mais informado para a reconversão de sons julgados extintos ou caídos em desuso e que, afinal, não perderam vitalidade. Nesse particular, os Disclosure têm dois méritos. O primeiro, é o de se assumirem - mesmo que na inconsciência da sua tenra idade (19 e 22 anos) - como fiéis depositários de uma doutrina tão cara à música do seu país. O segundo, e ainda mais importante, o de não se limitarem à mera reverência desse património inestimável e se atreverem a devassá-lo  respeitosamente com um fino recorte de modernidade.

É por isso que mesmo nos momentos em que Settle é mais atávico, nunca chega a soar a erro cronológico. E nem é preciso invocar o extenso rol de colaborações (Jesse Ware, Jamie Woon, Sam Smith, Eliza Doolitle, os AlunaGeorge e Ed McFarlane dos Friendly Fires) para perceber a contemporaneidade do disco. Uns chamar-lhe-ão retro, outros verão nas composições um oportunismo resultadista a pensar nas tabelas de vendas, mas a verdade é que um dos discos mais falados do ano. Talvez não seja a obra magna que precocemente tem feito salivar grande parte da crítica especializada, mas é um produto sólido, fresco e cheio de vida.

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segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Youth Lagoon - Wondrous Bughouse


8,0/10
Fat Possum, 2013


Muito já se discutiu sobre a importância da capa de um disco enquanto parte indissociável da integridade do produto artístico e, também por isso, uma variável importante na identificação do ouvinte com o conteúdo. Em certa medida o crescendo imparável dos formatos digitais veio a mitigar esse papel e, hoje, muitos consumidores de música prescindem da capa e nem chegam a conhecê-la senão esporadicamente. No caso do segundo registo de Trevor Powers, o norte-americano atrás de Youth Lagoon, a simples observação da capa, sobretudo em comparação com a do antecessor, anunciaria uma fractura qualquer. No lugar da rigidez que era então intuída na imagem austera de uma escarpa tocada por um arco-íris tímido, mora agora, neste Wondrous Bughouse, um delírio esfuziante de cor e surrealismo. Sendo Youth Lagoon uma identidade musical tão carregada de dimensões imagéticas, o contraste estético não seria inocente: é claro que o disco corporiza uma viragem musical, talvez não tão radical quanto as capas apregoavam, mas com cambiantes consideráveis. Quem esperar um tratado minimalista como foi The Year of Hibernation, desengane-se: a música deixou de ser caseira e envergonhada. A expansão é notória, de tal forma que o intimismo é trocado por uma sonoridade de corpo declaradamente psicadélica e bem texturado. De entre as paredes do quarto para o cosmos.

A nota mais curiosa é que, a despeito de serem servidos por uma produção mais enriquecedora e densa do que antes e de terem um propósito essencialmente escapista, os trechos deste Wondrous Bughouse não hipotecam aquela inocência retraída do debute, antes a fazem crescer em metáforas espirituais que se sentem como o bizarro exorcismo de uma alma à procura de redimir-se da sua própria banalidade e de um mundo em que descrê. E essa viagem é desconcertante nas suas multidimensões, ora magicamente pueril, ora de alucinações venosas. E tantas camadas de som e arranjos quantas as imagens que insinuam na mente; produz-se uma contida e maravilhosa insanidade, uma torrente hipnagógica que toma de assalto a mente e não mais a abandona, em inquietante visita ao lado negro. Como a face mais escura de nós consegue ter tanta cor como em Wondrous Bughouse é um mistério que fica por decifrar.

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