O conturbado percurso de vida de Mary J. Blige antes de ascender ao estatuto de estrela planetária, hoje visto como o turbilhão emocional alimentador da sanha que marcou os primeiros registos discográficos, de resto em linha com muitos outros protagonistas da cena r&b, acabou por ter um efeito dúbio na carreira da cantora do Bronx. Se, numa fase inicial, a crítica se rendeu à música de Blige enquanto catalisador oportuno desse passado descaroável, apressadamente a entronizando (e pelas piores razões possíveis) como principal figura da então "nova vaga" de cantoras soul com poiso no hip hop, não foi menos rápida a fazê-la tombar do pedestal onde precipitadamente a tinha colocado, assim que alegadamente se percebeu que a "guerreira" negra de cabelos loiros, ícone híbrido da cultura de rua e da mulher urbana, estava curada das drogas e cicatrizara feridas de amores falidos. Em paralelo, além dessa regeneração de equilíbrios na vida privada, a música de Mary J. Blige dava paulatinamente sinais de um desprendimento subliminar face às raízes hip hop e de (saudável) deriva por saberes vizinhos da soul ou da pop que, em termos mediáticos, conheceu apogeu na regravação, com os U2, do clássico "One" da banda irlandesa (incluída no álbum The Breakthrough, de 2005).
Chegada ao oitavo registo de estúdio, com uma renovada segurança na sua vida pessoal - e decididamente muito longe da personalidade tortuosa que expunha com arrepiante sinceridade em What's the 411?, de 1992 - e a firmeza vocal que sempre a fez especial, Growing Pains mostra Mary J. Blige a aprofundar as vizinhanças pop do álbum antecessor, mas não fechando os ambientes do disco a outros sabores que, afinal, sempre estiveram no seu cardápio. Assim, convivem serenamente e dão o toque de destrinça, num alinhamento dominado pela placidez pop-soul (também por isso mais circunscrito do que outros trabalhos), o beat de rua de "Work That", fiel às modernas escalas do som urbano que também servem "Grown Woman" (com Ludacris) ou "Roses". Como que a dizer que a emendada estrela mundial está mais segura de si e menos depressiva, mas as raízes não estão esquecidas. E se há diva na R&B capaz de mostrar o romantismo introspectivo e, ainda assim, manter íntima consciência do músculo da urbanidade e dos cultos de rua, ela é Mary J. Blige. Mesmo quando a inspiração não está nos píncaros.
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