quinta-feira, 24 de agosto de 2006

Gaiteiros de Lisboa - Sátiro

Apreciação final: 8/10
Edição: Sony BMG, Agosto 2006
Género: Música Tradicional Portuguesa/Experimental
Sítio Oficial: www.gaiteirosdelisboa.com








Com quase quinze anos de histórias musicadas, os Gaiteiros de Lisboa editam o quarto registo de um percurso cruzador de referências e de aventuras exploratórias das fundações da música popular. Essa busca incessante de parte significativa da quintessência musical nacional, a que acresce um compromisso sagaz com a reinvenção e o experimentalismo, faz dos Gaiteiros um dos mais atractivos ensembles do panorama luso. O gozo último deles é brincar com o tempo e sondar o património histórico e os estereótipos, trazê-los à contemporaneidade do hoje e, sem confundir traços identitários, moldar um som profundamente cosmopolita, à laia de uma world music que não se priva de rebuscar as tradições, esculpindo-as com modernidade. É assim que o impulso criativo dos Gaiteiros se manifesta, simultaneamente urbano e rústico, investigador e inventor. Sem debandar das raízes portuguesas, Sátiro é o novo capítulo nessa redescoberta da cultura musical universal, onde o passo de saída é lusitano e a chegada é coisa fecunda de interferências artísticas, algo que se abre num conhecimento vasto das estéticas e melodias antigas e presentes e se fecha, sem pontos finais, num furor aglutinador, tão luso-qualquer-coisa como sem fronteiras. As memórias universais dissecadas em Sátiro, como noutros trabalhos do colectivo, contemplam a fina tradição transmontana e o barroco mirandês, das gaitas e folclores, afins do culto asturiano e da teatralidade celta; a esse algoritmo primário, juntam-se a alegria pulverulenta do Magrebe, a maravilha inventiva do jazz sem rede, uns cheirinhos de doutrina da música concreta e, até, os vagares alentejanos ou umas sombras do fado (com a voz de Mafalda Arnauth na adaptação do poema "Os Versos que te Fiz", de Florbela Espanca). Para compôr este ramalhete, os Gaiteiros valem-se de um arsenal acústico versátil, com o pandeiro árabe, as rabecas e outros cordofones, as concertinas, as flautas de pan e palhetas, a gaita transmontana, a trompa, a gaita de amolador, o clarinete e a tarota, o túbaro e a serafina, o serpentalho, os ferrinhos, o reque-reque, os tubarões e os batuques. Tamanha panóplia só podia fazer de Sátiro um albergue com honras festivais, polifonias com sentido e ritmos possantes, ora circunspectos e cheios de cautela, ora irrequietos e destemidos.

A rejeição do imobilismo continua a ser a receita maior dos Gaiteiros de Lisboa. Inventam instrumentos, recriam-se na denúncia de novos sons, sulcam a terra do povo com a enxada dos poetas (Pessoa e O'Neill no passado, Florbela Espanca aqui) e arrebatam pelo perfume de extravagante originalidade, algures no limbo entre o sério e o lúdico, sempre inebriante. Como na feitiçaria de marimba que serve as contorções de "Movimento Perpétuo", de Carlos Paredes. Sátiro é tudo isso, é um erudito rompedor de horizontes e uma adição fundamental ao cancioneiro nacional.

3 comentários:

Anónimo disse...

Gostei da tua critica....mas para mim merece um 9.

jfraposo

Unknown disse...

É uma questão de opinião. Contudo, acho que um disco avaliado com um nove terá que estar muito próximo da perfeição. E não vi (ouvi) isso no disco dos Gaiteiros, independentemente de o considerar, como pudeste constatar, um disco muito bem conseguido. Mais do que isso, uma das poucas edições de mérito em Portugal para este ano.

Obrigado pela tua visita e comentário.

Spaceboy disse...

Como disse na minha crítica, este é mesmo um dos melhores discos produzidos em Portugal este ano, tal como tu também disseste. Acho que é necessário retirar dos Gaiteiros toda a sua irreverência e fome de surpreender para o resto da música nacional.