quarta-feira, 31 de maio de 2006

Houdini Blues - F de Falso

Apreciação final: 7/10
Edição: Cobra Records, Maio 2006
Género: Pop-Rock Alternativo
Sítio Oficial: www.houdiniblues.com








Ninguém diria que este é já o terceiro disco do quinteto eborense Houdini Blues. Apesar de estarem nestas andanças há cerca de uma década, eles têm-se mantido num anonimato demasiado duradouro para as suas aptidões e este F de Falso, editado pela Cobra Records de Adolfo Luxúria Canibal, promete corrigir esse desconcerto. O álbum é um tomo de canções imprevisíveis, perfumadas por fantasias sonoras de várias latitudes, alguma coisinha de música étnica que fica no ar, pairando diligentemente sobre a invulgar panóplia pop-rock do grupo. O rótulo é necessariamente redutor do universo dos Houdini Blues, um mundo pejado de derivações da pop inteligente dos Ornatos Violeta, em casamentos convenientes (e nem sempre óbvios...) com música da Andaluzia (no notável single de avanço "Bailare", com A.L. Canibal), com o ska (em "Ícaro"), com a electrónica a servir de abertura ("Putuária" e "Marguerite Duras"), com o rock alimentado a discurso directo de guitarra ("Deus (O Teu)") e outras interferências que se fazem convidadas. A produção de Armando Teixeira (Balla, Bullet) arruma o disco nas suas melhores virtudes e confere-lhe um sedutor balanço, cheio de consistência e relevando a ambiguidade contagiante da música dos Houdini Blues.

Inspirado no documentário pós-modernista F for Fake de Orson Welles, uma peça que validava o cinema (e as artes) como a suprema expressão do logro, pela perversão de jogar com a realidade à custa da manipulação mecânica de simulações dela mesma e, com isso, misturar as noções de real e ficção, o novo trabalho dos Houdini Blues é, também ele, simbólico nesse propósito. O uso inveterado que estes eborenses fazem da música é franco, foi fertilizado com a tarimba da estrada e, atendendo à ironia plagiada do título, uma discussão se impõe. Estarão eles a fazer de Elmyr de Hory, o plagiário de quadros famosos que impunemente vendeu falsos Picassos e Cezannes a museus de renome e que é personagem central do documentário de Welles, ou, por oposição, este F de Falso é mesmo um original jogo de espelhos da nova música portuguesa? Dúvida existencial, resposta pronta e unânime: não há enganos em F de Falso, os Houdini Blues são autênticos.

Posto de escutaBailareÍcaroPutuária

terça-feira, 30 de maio de 2006

Memórias do cinema

Anthony Quinn e Giulietta Masina em La Strada (1954)

domingo, 28 de maio de 2006

Ghostface Killah - Fishscale

Apreciação final: 8/10
Edição: Def Jam, Março 2006
Género: Rap Harcore
Sítio Oficial: www6.defjam.com








O percurso artístico de Ghostface Killah é indissociável da respeitada família do Wu-Tang Clan, seminal colectivo de Staten Island que, há mais de uma dúzia de anos, subscreve um género de rap profano, contador de histórias carregadas de jargão de rua e admirador da sondagem de samples à soul clássica. A esse caixilho musical, junta-se o apreço do grupo pela cultura budista e pelas alegorias esotéricas dos filmes de artes marciais. Nos últimos anos, além do falecimento por overdose do popular Ol' Dirty Bastard (2004), a notoriedade do clã resumiu-se a actuações ocasionais, a esporádicas aparições de alguns dos seus membros na sétima arte ou na TV e a uma miríade de edições a solo. A mais recente edição de Ghostface Killah é este Fishscale e, além de ser uma peça rap tecnicamente muito bem urdida, vive de uma voz melíflua, daquelas que são sinónimo de suavidade melódica, seja quando o medidor de cólera dispara ou, por oposição, quando o disco passa rapidamente pelo romantismo da soul.

Aos trinta e cinco anos, Ghostface Killah devolve o rap ao seu leito original e à temática idiossincrásica das drogas, do sexo, dos conflitos de rua e do dinheiro. No fundo, é como se este álbum de vinhetas - umas vezes autobiográficas, outras vezes contemplativas - fosse o desfecho natural das sedimentação de conceitos que o rapper procurou no quarteto de edições individuais que antecederam Fishscale. Ao mesmo tempo, o novo disco é uma ecléctica aula para a geração hip-hop MTV, propondo-se fazer o restauro da índole perdida e mostrando como se faz o genuíno hardcore. A produção de Moss, Pete Rock, Doom, Madlib ou do malogrado J. Dilla afiança algumas piruetas e alarga o espectro sonoro, deixando no ouvido uma grata insinuação soul que vai ao encontro de uma revelação do próprio Ghostface. Numa recente performance ao vivo, ao som de “My Ebony Princess”, single de 1977 de Jimmy Briscoe & the Little Beavers, o rapper confessou o seu íntimo desejo de trocar o rap pela soul. Com este Fishscale, além de repôr as variáveis mais importantes do rap, Ghostface Killah fica um pouquinho mais perto da morada soul que cobiça para si.

sábado, 27 de maio de 2006

Dirty Pretty Things - Waterloo to Anywhere

Apreciação final: 7/10
Edição: Vertigo/Universal, Abril 2006
Género: Rock Revivalista
Sítio Oficial: www.thelibertines.org.uk








Pete Doherty e Carl Barât dividiram o núcleo criativo (e as vozes) dos The Libertines, projecto britânico de rock revivalista que, com dois álbuns pouco mais do que medianos, gerou algum hype na imprensa conterrânea. Depois da ausência de Doherty na última digressão europeia dos londrinos, as sequelas tornaram-se indisfarçáveis: enquanto Doherty se desviou, numa trajectória errante a colidir muitas vezes com a justiça e os media (até chegou a ser dado como morto por overdose), fundando os Babyshambles, o compincha Barât responde agora, com o primeiro álbum dos Dirty Pretty Things. Se os Babyshambles se tornaram um cata-vento ao sabor das derivações babélicas rock de Doherty, livrando-o de quaisquer estorvos, os Dirty Pretty Things abeiram-se mais do ensemble original, pelo menos nas suas horas mais eléctricas, armando o disco da obrigatória teatralização de garagem. Intencional ou não, Waterloo to Anywhere mais do que rivalizar com a oferta de Doherty, acolhe as vistas do Brit rock ondulado dos Franz Ferdinand, dos Futureheads ou dos Maximo Park e, mesmo assim, não chega a distinguir-se claramente onde começam os Dirty Pretty Things e terminam os The Libertines (além de Barât, também o baterista ex-Libertines Gary Powell integra a banda).

Waterloo to Anywhere não é um baú de surpresas. O triunfalismo de algumas composições resume-se a um enxerto bastardo dos The Libertines, pegando na mesma aspereza nostálgica e sentido de urgência, empacotando tudo com menos um ingrediente (Doherty) e fazendo de conta que o ontem não existiu. Sujidade punk, caneta afiada, ângulos precisos, sombras e ambição são os predicados essenciais de um disco que confirma o rasgo de sobrevivência de Barât sem o controverso parceiro de escrita, embora seja coisa custosa entrever os sinais de diversidade. Afinal, escutar Waterloo to Anywhere é pouco mais do que jogar ao "descubra as diferenças" com um dos álbuns dos The Libertines. E Pete Doherty, não estando presente, bem que pode ser imaginado na figura de um Wally invisível. Onde está o Wally?

terça-feira, 23 de maio de 2006

Tool - 10 000 Days

Apreciação final: 6/10
Edição: Volcano, Maio 2006
Género: Metal Alternativo/Experimental/Progressivo
Sítio Oficial: www.toolband.com








Não está ainda decorrida uma dezena de milhar de dias desde a geração dos Tool. Aconteceu em 1993, com o disco Undertow a servir de baptismo a um estilo musical novo, colhedor dos abrasivos sónicos do metal alternativo e da complexidade musical do art-rock, mormente na negação da estrutura-canção. O brilhantismo técnico dos Tool encontrava aliados na boémia criativa, em cenários enigmáticos com texturas progressivas que eram um refúgio de raivas negras e opressões. Nesse dédalo de preciosismos instrumentais e vocais, a surpresa e o inesperado eram elementos vitais. Os adereços de guitarra, as convulsões rítmicas em altos e baixos, o sentido melódico das composições, as pegadas desvairadas da percussão e a experimentação eram o padrão. O seminal Aenima, chegado às lojas em 1996, sedimentou estes conceitos e conferiu aos Tool o porte de líderes do movimento do metal alternativo americano. Chegados ao muito aguardado quarto registo, cinco anos depois do pungente Lateralus, os Tool converteram-se ao soft. O período sabático parece, em primeira instância, ter-lhes domesticado a ira, ao ponto de 10 000 Days ser mais rock e menos metal, quase renunciando à força propulsora das percussões (restam meras reminiscências) e buscando, ao invés, o apelo etéreo de guitarras lacrimejantes, da voz vacilante de Maynard James Keenan e os torturados ambientes de trauma emocional.

10 000 Days destina-se ao fã estacionário; não traz nada que os Tool não tenham já experimentado antes. Esse é o pecadilho (será um mérito para muitos...). Já ouvi isto, é o que ocorre dizer ao escutar o disco. Pior do que o recalque de ideias e a insistência no formulário que os celebrizou, é ver que a matriz está desgastada, soa iterativa e estagnada. Os Tool deixaram-se congelar na sua própria música e apenas se adivinham silhuetas e breves insinuações de inovação neste álbum, parecendo que os elásticos que a banda retesou no passado, alargando as fronteiras do metal a outras amplitudes, começam lentamente a forçar o regresso à posição original, sufocando a nova ordem que a banda testara no processo. O fecho do ciclo cósmico está eminente. Ou os Tool conseguem a reanimação, ou o cosmos se encerrará no seu equilíbrio universal. Nesse acaso, deles sobrará apenas a recordação. E nem serão precisos dez mil dias...

domingo, 21 de maio de 2006

No-Neck Blues Band & Embryo - EmbryoNNCK

Apreciação final: 7/10
Edição: Staubgold, Abril 2006
Género: Música Improvisada/Experimental
Sítio Oficial: www.staubgold.com








Se há na música americana um projecto musical de vistas nómadas, orgulhosamente free e misterioso, esse colectivo são os nova-iorquinos No-Neck Blues Band. Até Thurston Moore, guru dos Sonic Youth, já lhes pôs rótulo: "a melhor banda do universo". Eles andam neste ofício há mais de uma década, a manejar virtuosamente o jazz livre, o noise experimental, a folk psicadélica, maquinando ambientes sonoros emblemáticos, graças a uma massa musical tão espessa e elástica que parece fruto de uma alucinada jam session de improviso.

A outra metade deste álbum é fornecida pelos germânicos Embryo. Com cerca de 30 anos de filiação aos motivos krautrock, o ensemble liderado pelo vibrafonista Christian Burchard é uma quadrilha de salteadores que, percorrendo os quatro cantos do mundo, se entretém a furtar pedacinhos musicais das mais variadas etnias e tradições, misturando-as depois num cenário de rock-jazz espacial e progressivo.

Com tais artesãos, EmbryoNNCK nunca seria fastidioso. Não há espaço para a monotonia, a cada viragem há uma surpresa tão ambígua quanto inopinada. O improviso informal dos No-Neck Blues Band deixa-se tingir pelas cores perfumadas das excursões étnicas dos Embryo, num fluido musical que fica nas cercanias do excesso mas que, ao invés disso, se converte num concentrado apurado e versátil, um punhado de ideias que não paralisam, se multiplicam em si mesmas, em mutações sucessivas. É por isso que EmbryoNNCK, como bom produto transviado (música fora de sítio, entenda-se), não aceita catálogos, é antes um circo de sons do mundo, um jogo de estrofes sonoras que nem parecem completas, mas cuja integridade é mesmo essa, a contingência de uma sublimação sem forma e sem pontos finais. Depois, escutar EmbryoNNCK é aceder a um espaço de subúrbio, onde uma mini-orquestra lança exercícios estéticos sem medo de exorbitar. O senão desta bela: o álbum, a despeito das óbvias sinergias entre os envolvidos, não se exime a um declive de repetição que, em último caso, não manchando a distinção das composições as faz semelhantes demais para não serem confundíveis.

quinta-feira, 18 de maio de 2006

Final Fantasy - He Poos Clouds

Apreciação final: 7/10
Edição: Tom Lab/Distr. Flur, Maio 2006
Género: Contemporânea/Pop Erudita
Sítio Oficial: http://finalfantasyeternal.com








Camuflado por detrás do título inspirado num vídeo-jogo está Owen Pallett, violinista de suporte dos Arcade Fire. O epíteto Final Fantasy é a sua máscara de compositor e, no seguimento do disco de estreia surgido há um ano, este He Poos Clouds obedece ao mesmo padrão de escrita escorreita, de revezamentos entre violino e voz, embora o temperamento orquestral das composições mereça outra amplitude neste trabalho. É certo que, ainda que num registo apenas comparável à grandeza épica da escola neo-clássica, Pallett não abandona o conceito de canção. Contudo, as faixas de He Poos Clouds são meras vizinhas afastadas dos nichos pop e procuram, em simultâneo, a majestade instrumental do minimalismo de Philip Glass ou Steve Reich e a abundância festiva dos Arcade Fire (apenas a breve trecho). Até chega a espreitar-se um ambiente digno de um ensaio dos Kronos Quartet, a que se junta uma voz remota e hesitante, em narração de histórias povoadas por caracteres de uma caprichosa caderneta (um agente imobiliário impotente, jovens frígidas, o ressuscitado Lázaro do Novo Testamento, um suicida, entre outros). No fundo, sem lhe dar esse formato, Pallett construiu uma bizarra opereta pop, de sonoridade distinta e estímulos vários, de texturas complexas. Mais do que isso, He Poos Clouds é perturbante nas ascensões espirituais que induz e na volubilidade dos arranjos que cercam o auditor num abismo de tensões.

Não fosse a voz de Pallett e He Poos Clouds teria lugar na escaparate dos ilustres compositores da clássica contemporânea. Com a voz, o violinista consegue um raro fito: conjugar os serviços da tonalidade e estrutura da clássica com a presteza da canção pop. O objecto dessa junção equilibrada é um disco complexo, cheio de pormenores que apenas se mostram com várias audições e que vem reforçar a identidade musical de Pallett. Definitivamente, não será He Poos Clouds a projectá-lo para o estrelato de grande escala nem a resgatá-lo do estatuto de culto de um restrito clube de melómanos do circuito independente mas, se a mais não serve, o disco sublinha expressivamente uma certeza que era, até aqui, apenas uma suspeita: a de que Pallett é um compositor com dotes.

Matmos - The Rose Has Teeth In The Mouth of a Beast


Apreciação final: 8/10
Edição: Matador, Maio 2006
Género: Electrónica Experimental/Vanguardista
Sítio Oficial: www.brainwashed.com/matmos








Um desvairado monstro mecânico de duas cabeças. Definição grosseira dos californianos Matmos, duo formado pelos (des)mandos de M.C. Schmidt e Drew Daniel. A uma almofada electrónica que contempla todas as graduações desse estilo, os Matmos adicionam (em disco e ao vivo) sons de origem arriscada para quem quer fazer música. O sítio oficial da banda arrola, entre muitos outros, alguns curiosos recursos da dupla: páginas de Bíblia, peles de peixe, sussurros em câmara lenta, ruídos de liposucção, gaiolas de rato, baralhos de cartas, comboios, insectos, o latido de cães, moedas...Com tamanho arsenal, é de esperar que a música dos Matmos se esquive a regras ou modelos, antes parecendo uma excursão por um labirinto electrónico sem fim, numa vertiginosa espiral. A música é urgente, muitas vezes asfixiante e aguda, na iminência de um objectivo nem sempre contínuo, subjugado (sardonicamente) às rupturas. A narrativa sonora deste The Rose Has Teeth In The Mouth Of A Beast é, por isso, complexa, puramente desconstrutiva, jogando com uma convivência oportuna entre os samples, os elementos acústicos e a formatação electrónica. Os estímulos musicais são elásticos e fragmentados, um verdadeiro manjar para saciar os ouvidos e exercitar a alienação experimental de Schmidt e Daniel.

Genericamente inclassificável, The Rose Has Teeth In The Mouth Of A Beast traz uma peculiaridade adicional. Não sendo um álbum conceptual no sentido formal do termo, cada uma das dez faixas do alinhamento se propõe fazer o retrato de uma personalidade ilustre, entre escritores, músicos, cineastas e filósofos. Comum a todos eles: a homossexualidade. Mas essa é a única concretização que deriva do disco. A substância musical é abstracta, contundente na excentricidade instrumental e plena de simbolismo biográfico. As referências são díspares e vão da escritora femininista Valerie Solanas (defensora do fim do género masculino e mais famosa pela tentativa de assassinato de Andy Warhol), ao fotógrafo e realizador James Bidgood (do polémico filme gay Pink Narcissus (1971)), ao filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (o seu Tractatus Logico-Philosophicus (1921) pretendia ser o requiem escrito da filosofia), ao produtor musical Larry Levan, etc. Neste álbum de imagens musicadas, Antony, Björk e os Kronos Quartet fazem uma perninha, ajudando a fazer do álbum um apetrecho de música cerebral e imagética mutante, ao ponto de, mais do que um disco, se assemelhar a uma película do melhor cinema surrealista dos anos 20 e 30. The Rose Has Teeth In The Mouth Of A Beast é o sinónimo musical de um Buñuel ou de um Clair em cores alucinadas e num banquete de exaltação biográfica. Obrigatório.

domingo, 14 de maio de 2006

The Racounters - Broken Boy Soldiers

Apreciação final: 6/10
Edição: Third Man/V2, Maio 2006
Género: Indie Rock
Sítio Oficial: www.theraconteurs.com








O conceito não é novo. Juntam-se figuras relevantes do panorama musical e formam uma nova banda, alegadamente com a finalidade de imaginar vertentes musicais distintas da casa-mãe. O enlace, aqui, é entre o desassossegado Jack White, mentor do White Stripes, Brendan Benson e o duo Patrick Keeler e Jack Lawrence (dos Greenhornes). Com tais actores a encenação só podia ser uma: rock, rock e mais rock. Contudo, é nos Racounters que a dupla criativa White/Benson acha resposta para apetites não satisfeitos nos caminhos originais. Nesse exercício escapista, Benson experimenta uma sonoridade mais crua e desobrigada da minúcia dos seus trabalhos a solo; por seu turno, White projecta nos Racounters as fantasias psicadélicas e os moldes arty que o padrão dos Stripes não permite. Apesar do deleite criativo, a dupla (o quarteto) nunca perde o norte e pouco se desvia do objectivo primário (e mais previsível). Vistas bem as coisas, Broken Boy Soldiers até é mais formal do que se presumiria: vem com um cartão de visita que tresanda a imediatismo radio friendly (a apreciável "Steady As She Goes"), desloca para os nossos dias a lembrança de ícones do género (um holograma dos Beatles à cabeça) e cola-se às formas da canção rock'n'roll mais genuína. Regra de três simples.

Mais clássico e menos moderno, ainda assim Broken Boy Soldiers desafia a irrefutabilidade de alguns dogmas da tradição rock'n'roll, induzindo vagos tons de contemporaneidade à prova de anacronismo. Meio-termo entre as distorções blues de White e a pop de chiclete açucarada de Benson, Broken Boy Soldiers deve ser destapado na presunção de que o hype tremendo que se gerou à volta do álbum não existiu. Se, por outro lado, o diapasão aferidor dos predicados do disco partir dessas promessas, o crédito acumulado dos músicos há-de ser consumido rapidamente e o que sobra é uma evidência: Broken Boy Soldiers é passada demasiado curta para as pernas de tão ilustres intérpretes.

sábado, 13 de maio de 2006

Scott Walker - The Drift

Apreciação final: 8/10
Edição: 4AD/Popstock, Maio 2006
Género: Música Vanguardista/Experimental
Sítio Oficial: www.4ad.com








Scott Walker é um provocador. É um daqueles sujeitos que se dá bem com o desassossego das vibrações sonoras. Já assim havia sido no último dos registos de estúdio, o negro e enigmático Tilt, nascido há mais de uma década (1995). Passados estes anos de quase silêncio - o músico limitou-se a colaborações pontuais - Scott Walker brinda-nos com novo trabalho e, partindo da matriz decompositora do antecessor, constrói um bizarro universo de música abstracta. Chamar-lhe música talvez seja amputar-lhe dimensões, tal é o alcance deste The Drift. A comunicação com o auditor cumpre-se através de um espectro de sons de substância surrealista, sem corpo definido, começando num registo vocal equidistante do dramatismo da ópera e do suspiro fantasmático, em busca de contextos líricos cuja melhor classificação é a de aberração psíquica. Depois, como superior obra abstracta, The Drift é uma permanente transgressão musical (numa faixa escondida até há um Pato Donald a fazer de Mike Patton...), desata-se da realidade e vagueia por cenários musicais indiferentes a qualquer prudência formal, preferindo a lógica do caos, onde se sobrepõem e confundem matérias quase imiscíveis, dos lances orquestrais assombrados, ao dom malabarista das guitarras, à tangência com os ambientes industriais e ao pensamento livre das colagens e da inconstância tonal. Tudo menos canções de convenção, antes trechos musicais de anatomia sinuosa, intimamente perturbadores. Sedução pelo choque.

Desengane-se quem pense encontrar em The Drift um disco comum. Walker não é músico de regras ou concessões, é uma alma conturbada e ambígua. Escura e delirante. A palpitação do álbum é, por isso, arrítmica, asfixiante, quase sem sentido. Angustiada e perturbante. The Drift é (pelo menos soa a isso) um poema crepuscular do apocalipse, como se Walker tivesse testemunhado o fim do mundo como o conhecemos e o revisse, num intenso pesadelo sombrio, ao jeito de uma fita de Bergman, pintada numa tela de Bacon. Evocando cenários transcendentais e universos incorpóreos, The Drift desafia-nos a espreitar os esqueletos que guardamos no armário. Só depois de completada essa excursão pelos horrores da humanidade, encriptados habilmente na música de Walker, é que conseguimos retomar o fôlego. E, mesmo que o apocalipse não seja amanhã, apetece ouvir vezes sem conta esta banda sonora do último dia na Terra.

quinta-feira, 11 de maio de 2006

Memórias do cinema

Roberto Benigni, Nicoletta Braschi e Giorgio Cantarini em La Vita È Bella (1997)

quarta-feira, 10 de maio de 2006

Saudades dos 80's no Hard Club

Clique na imagem para ampliar

Bypass - Mighty Sounds Pristine

Apreciação final: 6/10
Edição: Bor Land, Maio 2006
Género: Pós-Rock/Rock Progressivo
Sítio Oficial: www.bor-land.com








Caminhos sinuosos para uma vertigem de sons ondeantes. Assim se podem descrever as estradas calcorreadas pelo quarteto (recentemente aumentado para sexteto) lisboeta Bypass, com cerca de uma década de existência. Desde o EP homónimo, chegado às lojas em 2001, os melómanos nacionais atentos a estas coisas da música menos comercial, aguardavam a estreia dos Bypass em longa-duração. Dir-se-ia que sem aqueles dez anos de tirocínio (com muitos quilómetros e palcos...), o grupo não chamaria para a sua música a afinação de preceitos que se ouve no primeiro álbum. O leitmotiv é um argumento rock, algures entre as atmosferas contemplativas do pós-rock e as contingências mecânicas da escola progressiva. Sob esse oportuno disfarce conduzido pela certeza das guitarras, lançam-se emendas electrónicas e ruídos vagos, a insinuarem ambientes de tensões diversas, umas vezes buscando a euforia alucinada, outras deixando o enfoque para a neurose psicadélica, noutras ainda mostrando a melancolia. Uma vertigem emocional sem hipérboles e essencialmente instrumental, como é conveniente a um estilo menos convencional e que se propõe perscrutar todas as combinações de estímulo musical da mente. De olho no microscópio, a esmiuçar cada pedacinho de som como se dele dependesse a integridade vital do disco.

Mesmo sendo um apurado exercício técnico, Mighty Sounds Pristine esquiva-se à formatação repetida destas correntes musicais em que, as mais das vezes, a alma é escrava da técnica. Ou nela se apaga. Aqui, não é assim. Os Bypass herdam, sem premeditações, qualquer coisa do alento emocional que os Tool já esqueceram, da matriz rítmica de quando os Mogwai eram investigadores e da cinética bucólica dos Tortoise. O resto são contrastes intencionais, como jogos de cores e luzes, ao bom jeito de um sistema experimental. Nesse carácter incerto, o disco descai subtilmente, aqui e ali, para um certo embaraço de ideias, ora por excesso ora por defeito. Deformidades menores que não mancham as suspeições de que há nos Bypass substância mais do que suficiente para a afirmação definitiva em próximos capítulos.

Posto de escutaSetnovToboganTunnel

sábado, 6 de maio de 2006

Pearl Jam - Pearl Jam

Apreciação final: 7/10
Edição: J Records, Abril 2006
Género: Hard Rock
Sítio Oficial: www.pearljam.com








A morte prematura de Kurt Cobain e a cessação de bandas como os Soundgarden, os Screaming Trees ou os Alice in Chains precipitaram o coma de uma corrente musical que ganhou escala mundial, partindo de Seattle, e que, em traços gerais, captava a onda contestatária e de revolta do pós-punk da década de 80 e algumas influências do hard rock alternativo dos Led Zeppelin e Black Sabbath, entre outros. Riffs de guitarra teimosos e repetitivos, refrões melódicos e uma postura impugnativa eram as regras do que convencionou chamar-se de grunge. Desse movimento poucos sobreviventes restam, à cabeça deles os Pearl Jam. Com um percurso consistente desde Ten (1991), contemporâneo do inesquecível Nevermind dos Nirvana, Eddie Vedder e seus pares contam já década e meia de carreira. A sua mais recente edição, de título homónimo, é um recuo às origens. De lado parecem ter ficado os tiques pop,o flirt com o mainstream e o devaneio experimental de outros discos. Aqui, o discurso é assertivo, decidido e musculado, dando primazia à escola do hard rock corpulento e urgente, de acordes abertos e poderosos. Esse sentido de urgência atravessa o alinhamento de Pearl Jam, ainda que a segunda metade do disco dê provas de maior volubilidade, sem beliscar a conveniência do rock clássico do grupo.

Ao oitavo álbum de estúdio, os Pearl Jam recuperam o mais singular dos seus traços, aguçando as fórmulas rock e revisitando as máximas que trouxeram a banda ao estrelato. Raramente eles soaram tão cirúrgicos e espontâneos como em "Life Wasted", "World Wide Suicide" ou "Unemployable", canções que provam o à-vontade da banda com equações sonoras mais nervosas e, ao mesmo tempo, deixam evidente a consciência político-social (efeitos colaterais da administração Bush?) e a evocação emocional dos conteúdos líricos do disco. Rock electrizante e apaixonado. Ao repescar esses cânones básicos, os Pearl Jam invertem o curso do tempo, recuam à génese e cobram a descolagem do rótulo grunge. Afinal, eles sempre foram aquilo que são neste álbum: uma banda de rock genuíno, intenso e sem prazo de validade.

segunda-feira, 1 de maio de 2006

Gnarls Barkley - St. Elsewhere

Apreciação final: 8/10
Edição: Downtown, Abril 2006
Género: Neo-Soul
Sítio Oficial: www.gnarlsbarkley.com








Chegado às escaparates no meio da vaga de expectativas elevadas que o single "Crazy" gerou, o trabalho conjunto de dois dos nomes mais significativos da cena hip-hop internacional - DJ Danger Mouse (Gorillaz) e Cee-Lo Green - é, antes de mais, um disco de fórmulas soul. Contudo, as matrizes sonoras de St. Elsewhere não se fecham nos conceitos clássicos da soul, antes introduzem a electrónica com propriedade, buscam as cadências de outros ritmos (hip-hop ou funk) e acrescentam um quinhão precioso de psicadelismo. St. Elsewhere é um oferecimento pouco vulgar, um álbum cheio de groove cuja única concessão é à esquizofrenia de géneros, com o mérito de camuflar a volubilidade de estilo com o tal disfarce neo-soul que a sublime voz de Cee-Lo propicia e a produção moderna de Danger Mouse cauciona. A combinação dos intérpretes é simbiótica, conjugando um certo travo retro no formalismo vocal de Cee-Lo com uma estupenda panóplia de recursos sonoros sofisticados.

St. Elsewhere é um disco de canções de vários temperos e dimensões, de múltiplas minudências encobertas que apenas se destapam na repetição das audições. A monotonia não mora aqui, o ensaio musical de Cee-Lo e Danger Mouse é uma experiência mutável ao minuto, versátil ao ponto de fundir uma charanga pop em festa, as regras desalinhadas do hip-hop, o alento soul digno da Motown e os delírios da electrónica recente. Com tão gordo caldeirão de substâncias, é natural que salte o parafuso à ínsigne dupla de intérpretes e se desproporcione uma ou outra ideia. Mas, com um álbum assim firme e destemido, perdoam-se-lhes os breves desmandos. Porque o que apetece mesmo é descobrir todas as arestas deste St. Elsewhere. E reconhecer que se trata de um dos mais verticais exercícios da soul moderna dos últimos tempos.