sexta-feira, 13 de março de 2015

Da dormência colectiva à fidalguia da politiquice


A estranha dormência colectiva com que os povos ocidentais da Europa legitimaram, no último par de décadas, a ascensão de uma elite política sofrível e de moral (muito) controversa teria lugar em qualquer compêndio sociológico. Nem é caso exclusivo cá do burgo, onde se vão conhecendo tristes (mas importantes) manifestações de um epifenómeno que fere fatalmente o elo fiducial entre eleitos e eleitores e que se revelou, em momentos diferentes, um pouco por toda a parte, de Espanha a Itália, da Alemanha à França. Passos Coelho é apenas o mais recente inscrito num longuíssimo histórico de factos que devem preocupar-nos a todos. A discussão já nem deve estar no facto de o primeiro-ministro se ter esquecido ou se desconhecia uma obrigação contributiva que não podia esquecer nem desconhecer ou no montante em questão. Embora esses sejam detalhes sérios demais para passar ao lado, o que mais inquieta é a branda oposição do Partido Socialista a isto tudo. A esquerda mais à esquerda, sempre panfletária e rígida, não desaproveitou a oportunidade de radicalizar e pedir a demissão de Passos Coelho, cumprindo (bem) o seu mandato ideológico. Faça-se justiça a essas esquerdas: dormentes não são. Já o PS, ambíguo e vacilante como tem sido no costismo (e já o era no segurismo), assombrado pelo cárcere de Sócrates, ficou a ver a poeira assentar. Os custos políticos disto, para governo e oposição, hão-de contar-se num futuro próximo. Em todo o caso, o PS é o natural sucessor na alternância política do costume e, ao colar-se ao discurso da dormência, à complacente voz daqueles que aceitam o esquecimento/desconhecimento de Passos Coelho como uma ocorrência "normal", está no fundo a acolher o conformismo contemporâneo desta Europa falida. A aritmética é simples: mais de setenta por cento da comunidade electiva lusa está nos socialistas, nos centristas e nos sociais-democratas e todos são, directa ou indirectamente, cúmplices na rendição a esta cartilha libertina que fez da política uma mera politiquice austeritária que exige muito e cumpre pouco. Passos Coelho é só mais um desses príncipes de moralismo roto que povoam os faustosos palácios da lama política, cá e na família europeia. Tantos foram os comensais do banquete infinito que deu (e dá) de comer a muitas bocas, as mesmas que apregoam aos ventos o rigor e a cultura de exigência que não praticam.

E os povos dormem perante isto, permitindo aos fidalgos de pacotilha regalarem-se impunemente, no bailado cínico de cargos e favores, na dança vaidosa de influências de gaveta e poderes de envelope.

E os povos dormem na vergonha de serem representados pelos horríveis e tentaculares monstros que se tornaram essas coisas instituídas como profissionais da política, mendigos das subvenções, privilégios e imunidades, vendidos aos magnos impérios da finança e do capital, sequiosos da última gota da teta pública.

E os povos dormem. Admitem este miserável desfile do despudor, dos esquecimentos e incumprimentos, de empregos de favor e compensações milionárias.

E se os povos dormem esse sono colectivo, numa cegueira inerte que não vê porque não quer ver, que não age porque não quer punir, que não pune porque, afinal, apenas quer um quinhão do "bolo" para si, as sociologias enxergariam uma verdade perturbadora, atrás dos panos opacos:  os povos e os eleitos são prole da mesma moral viciada e dela herdam defeitos e ambições. No fim, somos todos a mesma família. Só os despertos é que pagam.


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