sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Father John Misty - I Love You, Honeybear

8,9/10
Sub Pop Records, 2015

Olhando em retrospectiva o que tem sido a vida artística de Joshua Tillman, percebe-se que, aos 33 anos, ele já fez mais do que muitos numa carreira completa. Descoberto casualmente por Damien Jurado, e por ele apadrinhado desde a mudança para Seattle, quando tinha apenas 21 anos, Tillman não mais parou de fazer (boa) música, fosse em registo acústico intimista em nome próprio (assinando J. Tillman), fosse nos muito justamente aclamados Fleet Foxes (como baterista e voz de suporte) ou como Father John Misty, a sua mais recente persona musical, criada depois da saída dos FF. Embora o próprio Tillman desvalorize a sua passagem pela trupe de Seattle, considerando-a um mero exercício circunstancial, a verdade é que, depois desses quatro anos, a música dele abriu-se e o mundo abriu-se para ela. O primeiro registo como Father John Misty, de há três anos, embora não pusesse de parte as premissas que se conheciam, revelou uma escrita à procura de refundar-se. Desanuviar a morbidez grotesca do J. Tillman eremita, quase sempre sozinho com a guitarra e os fantasmas negros, era o passo óbvio para essa reconstrução e fazê-lo implicou acolher orquestrações, melodias mais abertas e um sentido de humor refinado na auto-crítica.

Volvidos três anos, com um casamento de permeio, já quase não há o "velho" Tillman em Father John Misty. A voz vence a depressão de confessionário e o cepticismo contra tudo o que é o romântico. Longe do acabrunhamento do passado, as canções são objectos coloridos (esqueça-se o desconchavo electrónico de "True Affection") e cheios de fantasia, graças às orquestrações de ampla majestade, aos coros e a um requintado pendor melódico. I Love You, Honeybear torna-se, então, um acto extraordinário, para nós e para Tillman. Para ele, é um segundo (e melhor) momento de epifania, em que o alter ego musical se emancipa dos medos e se decreta como ente maior que não se esconde mais. Para nós, com canções deste calibre, a revelação é outra: Tillman como Father John Misty, mesmo com toneladas de cogumelos em cima, pode ter-se convertido no melhor (e mais bem humorado) narrador do amor e seus efeitos colaterais.

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quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Viet Cong - Viet Cong

8,6/10
Jagjaguwar, 2015

Embora este seja oficialmente o debute dos canadianos Viet Cong em disco inteiro, Matt Flegel (voz e baixo) e Mike Wallace (bateria) já têm inscrita no currículo a reconhecida passagem pelo colectivo Women, onde deixaram registo de afinidades com as formas mais truncadas do rock. Atrás desse intelectualismo, não se adivinhava o impulso experimental com que a nova chancela se apresenta. Este universo de sons vale-se de uma desordem controlada que, no paradoxo das primeiras audições, confunde audiências como um gosto adquirido. Depois, o disco vai crescendo em nós, destapa surpresas a cada escuta e compõe um cenário mais coerente do que se supunha, a ponto de até o abuso da disrupção se tornar apelativo. Entre o caos e a ordem, o fio da navalha corta tanto como as guitarras, a percussão é firme, as vozes seguram-se no saturado tecido de sons, sem favores de piedade. As canções fluem cruas e taciturnas - o que levou à preguiçosa comparação com os Interpol - num desfile estético que acolhe quase todas as etiquetas que adjectivam o rock: noise, art, pós-punk, psicadelismo, kraut, garage. E mais houvesse.

Viet Cong é um disco ambicioso até à molécula e, ainda assim, imediato e vibrante. Mesmo com as incongruências e o frenesim próprios de um remoinho experimental, a coisa encontra um estranho (e interessantíssimo) equilíbrio; é como a sensação de correr, a ofegar, pelos corredores de um labirinto enorme, sem encontrar a saída. Desassossego até aos poros, é o que é. E a corrida, pintada a preto e branco, torna-se uma imperdível digressão emocional.

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quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

A cínica moralização da austeridade



O posicionamento estratégico do Estado português face à crise grega é qualquer coisa de inquietante. Perceber que a inflexibilidade maior, em pleno Eurogrupo, parece ter partido precisamente daqueles estados que, como Portugal, em razão das circunstâncias, menos terão a ganhar com ela merece uma reflexão mais profunda sobre aquilo em que veio a tornar-se a União Europeia e suas repercussões políticas. É hoje claro o afastamento do processo de construção europeia face aos ideais originais e a sua subversão a escalonamentos político-estratégicos que clivam distâncias entre estados-membros teoricamente tidos como iguais. Nem se trata tão-somente das óbvias (e inultrapassáveis) diferenças de peso político e de dimensão económico-financeira que, afinal, foram firmadas pelo curso da história e estariam sempre presentes, independentemente da direcção tomada pela evolução da Europa enquanto comunidade. O debate está, agora, centrado na divisão "moral" dos estados, o perverso maniqueísmo que isola a Grécia e que, antes disso, já permitira, por exemplo, a banalização (na opinião publicada) do epíteto P.I.G.S., sob o qual se arrumaram infamemente os países com problemas mais profundos de dívida externa. Essa compartimentação moral do espaço europeu conheceu novo episódio quando Maria Luís Albuquerque, com servilismo bobo, se deixou mostrar como símbolo da boa conduta austeritária. Wolfgang Schäuble sabia o que estava a fazer, ao jeito de um sinistro professor que exibia à turma europeia a sua mais obediente aluna, isolando ainda mais o "mau aluno" grego. A moralização da austeridade que Schäuble queria promover só serviu, em último caso, para a agudização de posições que se viu nos dias seguintes. Maria Luís Albuquerque inflou-se de jactância e pugnou, qual títere alemão, pelo endurecimento da negociação com as autoridades gregas, em plena reunião do mesmo Eurogrupo que, umas dezenas de meses antes, olhava para Portugal do mesmo soslaio que agora vira para a Grécia. E ver o estado português, agrilhoado por uma situação sócio-económica que todos os dias põe pontos de interrogação no horizonte, a alinhar convictamente com o cinismo desta tentativa de moralização da austeridade é perturbador. 

Moralizar a austeridade é, a meu ver, um erro de percepção das suas consequências e do actual momento europeu. É perigoso considerar um sucesso o que se passou em Portugal nos últimos anos. Os juros da dívida caíram, mas a dívida não. O garrote financeiro deixou serviços públicos à beira do colapso e atirou para o limiar de pobreza milhares de famílias. O desemprego subiu acima dos dois dígitos e tarda em regredir. Passar ao lado destes (e outros) factos, aqui, na Grécia, em Espanha, na Itália e onde quer que seja, é intelectualmente desonesto. Esquecer que a construção europeia não pode deixar de ser uma caminhada humanista, orientada para as pessoas e para o bem comum é perder o seu desígnio último. 

Há também quem venha ensaiando uma bizarra moralização política do recente plebiscito grego. Bem ou mal, e isso é sempre discutível, os gregos fizeram a escolha democrática de repudiar a estratégia que os empurrou para um caos arrepiante. E, também aqui, no domínio das opções democráticas, não há lugar para moralizações. A democracia faz-se de escolhas de uma comunidade e de como elas, reunidas em maioria, se tornam a sua representação legítima. Isto é inquestionável. Confundir, depois, a escolha dos gregos com renúncia ao pagamento da dívida é uma falácia mal-intencionada que serve a muitos, cá dentro e lá fora. Numa discussão séria, talvez seja chegada a hora de procurar, no mais saudável espírito humanista e de cooperação, a solução equilibrada para os países devedores conseguirem pagar aquilo que parece impagável. E isto não isenta de culpas a governação irresponsável que acumulou dívidas, nem significa o perdão destas. Significa, isso sim, a assunção responsável de um problema sério e que, a bem da sobrevivência do ideal europeu, só pode ser resolvido em sintonia. 


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terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Panda Bear - Meets the Grim Reaper

7,8/10
Domino, 2015

Já não há dúvidas: cada disco que Noah Lennox faz nascer é um acto de atrevimento. Parece fervilhar nas veias do americano, tornado célebre como quinhão importante dos seminais Animal Collective, uma bizarra excitação com a anormalidade pop. Ao quarto registo individual, pode dizer-se que já passou o ponto de não retorno e não se tem dado mal com o propósito de desmontar convenções e de as virar do avesso, no devaneio individual que começou, há onze anos, com o despojo fracturado do quase-acústico Young Prayer, até chegar ao delírio electrónico deste Meets the Grim Reaper. Nesse percurso, a música de Lennox mudou de traje algumas vezes, é certo, também conheceu amplitudes diferentes, mas conservou sempre o experimentalismo e levou-o a limites de excentricidade que nunca poderiam caber em canções convencionais. Panda Bear é, afinal, uma marca musical de impulsos e isso é particularmente evidente neste novo disco. De um lado, está o ímpeto (incontinente?) de saturar as canções com tudo e mais alguma coisa que seja electrónica e, ao mesmo tempo, conseguir mantê-las leves, melódicas e, no final, atraentes como um sonho.

Quando acontece, como neste Meets the Grim Reaper, que Noah Lennox encontra os caminhos melódicos para escapar dos seus próprios delírios, o universo Panda Bear ganha improvável verosimilhança e é precisamente aí que nos cativa. E este talvez até seja o exercício mais gracioso de Lennox, pelo menos tanto quanto pode sê-lo um disco forjado pela sua mente efervescente, provando-nos que a jornada em desafio do som (e da canção) está longe da meta e, ainda assim, pode dar-nos cândidos momentos de música.

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quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

José González - Vestiges & Claws

6,6/10
Mute, 2015

Não fossem os dois álbuns gravados em parelha com Tobias Winterkorn, sob o epíteto Junip, e já teriam passado oito anos desde o último trabalho de José González (In Our Nature). Um hiato demasiado longo, dirão alguns, sobretudo por ter-se seguido ao momento em que o cantautor sueco de ascendência argentina granjeara um invejável auge de reconhecimento da crítica, em razão da progressiva afirmação de um cancioneiro de intimismo folk e que nem sequer teve seguimento directo nas composições de Junip, mais abertas e expansivas. Todavia, essa descontinuidade  formal no percurso de González - não necessariamente uma suspensão -, acabou por não contaminar os planos essenciais da sua música. É também por isso que este Vestiges & Claws resulta mais como exercício de retoma, tão familiarmente leve e contido quanto os antecessores, do que como o impulso de reinvenção (que não tenta ser).

A zona de conforto de um artista é território perigoso, mais ainda quando se tem uma visão quase extremista do minimalismo, o campo de criação musical que é, por definição, menos elástico. Nestas circunstâncias, o risco de confundir aprimoramento de fórmulas com estagnação é um facto sempre presente. Não é que Vestiges & Claws seja um trabalho conformado, nem sequer é o mais minimalista dos discos de González, mas não evita a sensação de repetição. Está cá a voz quente do trovador sueco, está cá o dedilhado consistente da guitarra e, juntos, derivam para um silogismo provável: José González é ele mesmo, o mundo folk precisa dele como é e, portanto, todos devemos estar gratos por Vestiges & Claws. Só lhe falta um pouco de rasgo.

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terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

O prurido ideológico de Passos Coelho

É claro que ver o governo de Passos Coelho, comprometido com a obsessão austeritária que tomou de assalto a Europa nos últimos anos, na da crise das dívidas soberanas,  alinhar com o posicionamento do novo governo grego seria imaginar um impensável casamento entre a social-democracia mais mercantilista e o esquerdismo radicalizado (e humanista) que lhe está nos antípodas. Aí, não haveria lugar a ilusões. Portugal cumpriu, com zelo obediente, o programa de assistência financeira dos últimos anos e, ainda que a custo de uma das crises sócio-financeiras mais onerosas da sua história, puxa desses galões e mostra-se à Europa com a fátua prosápia de um país "recuperado" e que avança ufanamente para a antecipação de amortizações da dívida aos parceiros da troika. A Alemanha gosta, a Europa consente e o mundo segue. Mas pensar que Portugal está a cobro de problemas maiores e que, mais do que isso, passará imune por uma eventual saída grega do Euro é um erro estratégico que pode custar muito caro. Num momento tão crítico para a Europa, marcar distâncias para a posição grega e contribuir para o isolamento de um estado membro, é não perceber que as diferenças entre Portugal e Grécia são sobretudo de escala. A Grécia tem o monstro à sua frente, Portugal conseguiu apenas esquivar-se dele, mas não está a salvo. 
A encruzilhada financeira em que a Grécia se pôs, multiplicando imparavelmente a sua dívida, criou uma clivagem com o resto da Europa que parece irremediável. Isolada pelo peso dessa dívida aparentemente incobrável e, agora, também pelo preconceito ideológico das potências dominantes, à Grécia resta uma de duas vias: ou alinha com a estratégia comum europeia e prossegue as políticas dos últimos anos que não tiraram o país do abismo financeiro, ou deserta do Euro. A primeira hipótese é liminarmente rejeitada pela equipa governativa de Tsipras. A segunda pode ser o início do fim do processo de integração europeia. É por isso que a escolha por qualquer dos caminhos da bifurcação estratégica grega é, também, um problema europeu, primeiro, e português, depois. Passos Coelho não quis perceber que uma eventual saída da Grécia do Euro arrastará Portugal. Um Estado-membro deixar a União é um cataclismo político-financeiro de tal ordem que fará disparar o cepticismo dos mercados quanto à viabilidade de todo o edifício da Europa unida. E esse fantasma da dúvida, assim que a Grécia renuncie, assombrará imediatamente Portugal, ou não fossemos nós aqueles com maiores problemas de dívida externa depois dos gregos. A escalada dos juros dos países em situação mais periclitante (Portugal, Espanha, Itália, por exemplo) seguir-se-á à saída grega e, com ela, o desabamento dos equilíbrios tremidos conseguidos nos últimos anos. Passos Coelho e o seu governo, também o Presidente da República, não quiseram ainda perceber que a eventual exclusão da Grécia determinará, senão no imediato e sem outras medidas de emergência, a necessidade de um novo resgate para Portugal. Mais dívida e mais austeridade. É este ciclo vicioso que importa parar. E pará-lo implica evitar, até ao limite, a saída da Grécia.

Não ver que esta questão só pode ser um imperativo nacional é um erro estratégico gravíssimo de Portugal. O prurido ideológico não pode ultrapassar o interesse do país. Portugal e Grécia têm governos ideologicamente muito distantes, mas interesses comuns nestas matérias. A questão não é ideológica, já nem é puramente financeira. Não perceber que as ondas de contágio de uma deserção grega podem precipitar Portugal para o terrível ostracismo que agora impende sobre os gregos, não entender que podemos ser os seguintes da depuração financeira da zona Euro, é uma cegueira incomportável para o país.

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Björk - Vulnicura

8,8/10
One Little Indian, 2015

Se há coisa que não pode dizer-se sobre Björk é que seja uma artista acomodada. Desde os primeiros passos da sua já extensa caminhada musical, se percebeu um fôlego criativo absolutamente invulgar e sempre em demanda por coisas novas, por cruzamentos improváveis de géneros e até por alargar fronteiras do que deve ser um produto musical. Se não bastasse, para percebermos a revolução paulatina de Björk, o seu recorrente aprofundamento da mistura entre electrónicas e elementos acústicos, a caminho de uma visão ímpar e que envolve um detalhismo quase microscópico (mesmo científico) e, ao mesmo tempo, a amplitude de uma verdadeira obra orquestral, o inovador Biophilia, de 2011, inquietava ainda mais: buscava a união entre tecnologia e mundo natural. Depois de uma empreitada com esse peso, com reacções díspares de crítica e de admiradores, e sobretudo na sequência da separação do seu companheiro de treze anos, mesmo o mais inconvencional (e inquieto) dos espíritos, há-de sentir-se irremediavelmente mundano.

No caso de Björk, a chapada da vida foi um chamamento de realismo que não mudou a essência da sua música. Vulnicura, com a colaboração de dois novatos muito requisitados na electrónica hodierna - a saber, o venezuelano Arca e o britânico Bobby Krlic (The Haxan Cloak) -, repisa a mistura entre electrónica e orquestração, com a sedução vulcânica do costume. Desenganem-se aqueles que esperam um registo de genuíno intimismo, como seria "normal" num disco com a aura de uma separação, em que a música tende a converter-se numa expressão de formas mínimas, mais assertivas e emocionais. Em Vulnicura, a emoção não deixa de ter essa vulnerabilidade, mesmo a tonalidade obscura e ambígua, mas ajusta-a ao devaneio hiper-musical que fez de Björk um ícone da excentricidade elegante. Aqui, só mudou a palete de cores e, do garrido para o pardo, nasceu um dos melhores discos que ela deu ao mundo.

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segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Natalie Prass - Natalie Prass

8,1/10
Spacebomb/Popstock, 2015

Depois de alguns anos como incógnita teclista e voz de suporte de Jenny Lewis ou até como coadjuvante pontual dos The Gaslight Anthem, Natalie Prass dificilmente escaparia à influência da música genuinamente americana, algo que até a sua ligação de nascimento a Nashville não disfarçaria. Em todo o caso, a verdade dessa consideração inicial é apenas pequena parte da equação musical que o primeiro disco em nome próprio revela. Reduzir este álbum a isso é passar ao lado da essência de um corpo de canções muito bem conseguidas, com um curiosíssimo sentido de sofisticação pop e uma multitude emocional que vai muito além dos rudimentos costumeiros da country/bluegrass que normalmente merece esse rótulo basilar: americana.

Desde logo, o trabalho de arranjos aponta a horizontes mais ambiciosos e até, aqui e ali, muito próximos da pop de câmara, ora servidos em cordas, ora em metais, sempre no pressuposto de fazer crescer as melodias, afinal o tutano tão valioso do disco, sem as subverter em delírios de grandeza instrumental. É disso mesmo que se trata, de um registo que valoriza o compromisso com a melodia e que não perde o norte, mesmo quando a lírica parece abrir universos díspares da personalidade de Prass. De um lado, a rendição aos amores falidos; do outro, a revoltada resistência à decepção. Mais importante que tudo o resto: nunca sai diminuída a emotividade confessional do disco, nem com a magnitude instrumental, nem com a limitada delicadeza vocal de Prass, fintada pela obstinação. Todos os condimentos de um épico de bolso, portanto.

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sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Vitorino Voador - O Dia em que Todos Acreditaram

7,0/10
Azáfama, 2015

Com a expansão mediática que os Diabo na Cruz e os You Can't Win, Charlie Brown tiveram nos últimos anos, é natural que João Gil (multi-instrumentista de ambos os projectos) tenha sentido a necessidade de um espaço de expressão própria. Vitorino Voador é o alter-ego nascido desse processo de natural emancipação de ideias musicais sem cabimento no espaço criativo das bandas que integra. Depois de um EP suportado pela Optimus Discos que foi, afinal, a porta aberta para esse universo sonoro particular e para a personagem imaginada atrás do epíteto Vitorino Voador, o primeiro longa-duração tornou-se inevitável. O Dia em que Todos Acreditaram dá mostras do apuramento da fórmula, sobretudo nos arranjos mais complexos, sem prejuízo da intimidade do disco. Está cá a mesma fragilidade confessional que se conheceu antes e que se fez identidade de João Gil. Ao mesmo tempo, percebe-se que a linguagem Vitorino Voador é um work-in-progress que se vai erguendo pacificamente em volta desse princípio, mas sem um conceito formal definido. Das pequenas incongruências que daí resultam não vem mal ao mundo; afinal, este é o primeiro disco inteiro de Vitorino Voador e o próprio João Gil reconheceu, em entrevista recente, que não sabe para onde o leva este voo.

Há qualquer coisa de planante, com a elegância da melhor música ambiente que se arruma em coordenadas de pop madura e de minimalismo melódico. Aí, encontram-se ingredientes acústicos (piano e guitarra) e impurezas electrónicas, unidos umbilicalmente pela voz fantasmal, quase irreal. A combinação é equilibrada, faz sentido e fica lançada a premissa deste voo: vá para onde for, o Vitorino Voador tem asas para crescer.

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quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Sleater-Kinney - No Cities to Love

7,7/10
Sub Pop Records, 2015

Tendo sido parte nuclear dos motins femininos que emergiram do rock americano em meados da década de noventa, o trio Sleater-Kinney veio a estabelecer-se como uma das mais firmes descendências do punk durante cerca de uma década, galgando as fronteiras do underground com linguagens estéticas simples mas assertivas, em suporte de um discurso de emancipação da mulher e de uma certa libertinagem sócio-política. Corin Tucker, Carrie Brownstein e Janet Weiss rapidamente se tornaram favoritas de certas facções da crítica especializada, em razão de uma discografia consequente e que, a despeito de não brotar um grande êxito (comercial, bem entendido), ergueu um catálogo de canções cheias de intenção, num registo panfletário muito ao jeito do sentido de urgência insurrecta da época. O fenómeno foi crescendo, talvez até mais do que lhe estava destinado, tocando gradualmente públicos maiores, sobretudo a partir da viragem do século e até à dissolução (inesperada e inexplicada) do trio, já em 2006. Alguns projectos paralelos depois e uma década volvida desde The Woods, anterior registo de estúdio, as Sleater-Kinney reaparecem como tinham ido: envoltas na mesmíssima enigmática surpresa que as empurrou para o hiato de dez anos.

E que dizer deste No Cities to Love? O orbe rock é hoje um leito de acomodação que tem pouco que ver com o ADN das Sleater-Kinney. O espírito insurgente delas não é senão um oásis num mundo musical em que o idealismo é mandado às malvas e trocado pelo experimentalismo sónico e a lírica certinha. Talvez por isso, a primeira impressão (ilusória) é de que No Cities to Love é um erro cronológico que não encaixa neste tempo. E esse é, em boa verdade, o melhor elogio que pode fazer-se ao oitavo disco do trio e à oportunidade do seu regresso. Continua a fazer todo o sentido este rock que, em galope urgente, se perfila para tomar posição face ao conformismo geral. E fá-lo à custa de construções melódicas muito precisas, apuradas até ao tutano, sem artifícios e fintas, e tremendamente eficazes a chegar onde querem. Tal como as Sleater-Kinney obravam há dez anos.

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