O posicionamento estratégico do Estado português face à crise grega é qualquer coisa de inquietante. Perceber que a inflexibilidade maior, em pleno Eurogrupo, parece ter partido precisamente daqueles estados que, como Portugal, em razão das circunstâncias, menos terão a ganhar com ela merece uma reflexão mais profunda sobre aquilo em que veio a tornar-se a União Europeia e suas repercussões políticas. É hoje claro o afastamento do processo de construção europeia face aos ideais originais e a sua subversão a escalonamentos político-estratégicos que clivam distâncias entre estados-membros teoricamente tidos como iguais. Nem se trata tão-somente das óbvias (e inultrapassáveis) diferenças de peso político e de dimensão económico-financeira que, afinal, foram firmadas pelo curso da história e estariam sempre presentes, independentemente da direcção tomada pela evolução da Europa enquanto comunidade. O debate está, agora, centrado na divisão "moral" dos estados, o perverso maniqueísmo que isola a Grécia e que, antes disso, já permitira, por exemplo, a banalização (na opinião publicada) do epíteto P.I.G.S., sob o qual se arrumaram infamemente os países com problemas mais profundos de dívida externa. Essa compartimentação moral do espaço europeu conheceu novo episódio quando Maria Luís Albuquerque, com servilismo bobo, se deixou mostrar como símbolo da boa conduta austeritária. Wolfgang Schäuble sabia o que estava a fazer, ao jeito de um sinistro professor que exibia à turma europeia a sua mais obediente aluna, isolando ainda mais o "mau aluno" grego. A moralização da austeridade que Schäuble queria promover só serviu, em último caso, para a agudização de posições que se viu nos dias seguintes. Maria Luís Albuquerque inflou-se de jactância e pugnou, qual títere alemão, pelo endurecimento da negociação com as autoridades gregas, em plena reunião do mesmo Eurogrupo que, umas dezenas de meses antes, olhava para Portugal do mesmo soslaio que agora vira para a Grécia. E ver o estado português, agrilhoado por uma situação sócio-económica que todos os dias põe pontos de interrogação no horizonte, a alinhar convictamente com o cinismo desta tentativa de moralização da austeridade é perturbador.
Moralizar a austeridade é, a meu ver, um erro de percepção das suas consequências e do actual momento europeu. É perigoso considerar um sucesso o que se passou em Portugal nos últimos anos. Os juros da dívida caíram, mas a dívida não. O garrote financeiro deixou serviços públicos à beira do colapso e atirou para o limiar de pobreza milhares de famílias. O desemprego subiu acima dos dois dígitos e tarda em regredir. Passar ao lado destes (e outros) factos, aqui, na Grécia, em Espanha, na Itália e onde quer que seja, é intelectualmente desonesto. Esquecer que a construção europeia não pode deixar de ser uma caminhada humanista, orientada para as pessoas e para o bem comum é perder o seu desígnio último.
Há também quem venha ensaiando uma bizarra moralização política do recente plebiscito grego. Bem ou mal, e isso é sempre discutível, os gregos fizeram a escolha democrática de repudiar a estratégia que os empurrou para um caos arrepiante. E, também aqui, no domínio das opções democráticas, não há lugar para moralizações. A democracia faz-se de escolhas de uma comunidade e de como elas, reunidas em maioria, se tornam a sua representação legítima. Isto é inquestionável. Confundir, depois, a escolha dos gregos com renúncia ao pagamento da dívida é uma falácia mal-intencionada que serve a muitos, cá dentro e lá fora. Numa discussão séria, talvez seja chegada a hora de procurar, no mais saudável espírito humanista e de cooperação, a solução equilibrada para os países devedores conseguirem pagar aquilo que parece impagável. E isto não isenta de culpas a governação irresponsável que acumulou dívidas, nem significa o perdão destas. Significa, isso sim, a assunção responsável de um problema sério e que, a bem da sobrevivência do ideal europeu, só pode ser resolvido em sintonia.
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