Senhora de um crescimento artístico paulatino, progredindo disco a disco, a britânica Laura Marling chega ao quarto registo com as certezas estéticas dessa evolução e o mediatismo próprio de alguém que, apesar da tenra idade (23 anos), dá mostras de saber para onde caminha. Não se deslumbrando com os prémios da indústria fonográfica, ergueu uma identidade artística folk que lhe vem rendendo comparações com Joni Mitchell, sobretudo quando manifesta uma apurada consciência das suas próprias emoções, vertendo-as em composições honestas e sem pretensiosismos. Se os álbuns anteriores eram já manifestos dessa introspecção sentimental despudorada de Marling, eventualmente até expondo parte da sua intimidade, este Once I Was an Eagle é o seguimento lógico, nos mesmos moldes contextuais e com um amparo musical tão espartano como uma confissão. Ao prenunciar um certo desencanto existencial, o título é um justo mote do desfile de dezasseis canções.
A voz é o núcleo da mensagem, assente em texturas musicais consistentes com a primazia que a guitarra sempre teve na música de Marling. Mesmo assim, essa regra dispensa agora os artifícios estéticos pontualmente inscritos noutros trabalhos. Essa escusa não é senão o recurso estilístico certo para sublinhar o registo mais sombrio do percurso da inglesa, também sentido na monocórdia do canto, tendencialmente menos elástico do que era habitual. Bem vistas as coisas, é esta crueza na roupagem musical e no discurso que melhor serve a identidade zangada do disco, naquilo que pode ver-se como um reflexo perfeitamente diáfano do estado de espírito da cantora, a braços com uma recente mudança para Los Angeles, com romances desfeitos de permeio. Se a música é catarse, ela está cá toda, esquadrinhados são os mais recônditos sedimentos emocionais da cantora e as implicações morais de cada memória, de cada lembrança. Não é, contudo, obra para voyeurs de momento, é antes uma declaração de maturidade emocional, de embate rude com um desapontamento que parecia impossível. Sem despeito e sem cerimonial. O tom dominante é de uma revolta feral, a voz tão calma, a guitarra sem angústia, as percussões pontuais são testemunhas lá no fundo, o violoncelo é ajudante casual. No final, sobra uma sensação de epifania: a utopia do mundo perfeito, da majestade da águia, há-de ruir. E outra se erguerá, com sombras na memória, é certo, mas com a certeza de que nada acaba. E este Once I Was an Eagle é só uma belíssima passagem da regeneração.
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