quinta-feira, 27 de março de 2014

Liars - Mess


6,7/10
Mute/PIAS, 2014

Mesmo com o sexteto de álbuns anteriores a este a servirem de luminária, continua a ser impossível etiquetar a música dos Liars. Se no começo de carreira, o trio nova-iorquino acabou por ser alinhado com o então emergente saudosismo do pós-punk - o que até fazia sentido dada a excentricidade rock que professavam -, cedo se percebeu que a profusão de ideias de Angus Andrew e seus pares jamais caberia num rótulo só. Fosse pela afinidade com coordenadas rítmicas desvairadas e sem correspondência nos manuais convencionais, fosse pela tendência para as combinar com texturas muitas vezes no limite do tolerável enquanto produto "musical", os Liars impuseram-se como umas das unidades mais aberrantes (no sentido desviante) do espectro da música americana. E essa aberração foi crescendo, entre paixões e ódios de estimação, ora abeirando-se da electrónica ácida, ora desenhando tangências com o krautrock e até com as órbitas noise e o mais primal experimentalismo. Essa deriva teve ponto alto com Drum's Not Dead (2006), terceiro álbum e um dos mais icónicos (e, ironicamente, um dos mais dissonantes) produtos do laboratório de sons do grupo, também a menos turbulenta das suas gravações. O lastro de acalmia foi, afinal, um acto de purga nada acidental que coincidiu com a paz entre experiência e melodia e veio a prolongar-se nas edições seguintes do grupo, provocando inclusivamente o distanciamento de parte dos seus fãs, sob o pretexto de traição ao ideário original da banda.

A primeira sensção que Mess transmite é a de reconciliação dos Liars com uma parte importante do seu universo. Não há uma renúncia vincada do pendor espacial em que estabilizaram a sua música nos últimos anos, nem fazia sentido romper com essa "evolução", mas sente-se algum do colapso nervoso dos primórdios. Nesse sentido, o disco é uma emboscada imprevista: aborda-nos exactamente onde não víamos os Liars há anos. Em comparação com os últimos discos, o compasso é mais rápido, mas a electrónica, apesar de ser a matéria dominante (onde param as guitarras?) é menos exploratória. Na prática, este é o disco mais conciso dos Liars, um álbum de canções dançáveis, no sentido convencional do termo. O que, olhando o passado dos Liars, dificilmente pode ser visto como um elogio. Indícios de uma nova vida? As guitarras foram-se há muito, o experimentalismo espacial também, resta agora uma electrónica pseudo-industrial sem nada de especialmente substancial.

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terça-feira, 25 de março de 2014

Real Estate - Atlas


7,1/10
PIAS, 2014

Propor-se fazer a canção pop perfeita sem ceder às tipificações do mainstream estupidificante é causa que poucos podem orgulhar-se de ter defendido, com consistência, durante um percurso que conte um punhado de anos. Chegar a escrevê-la ou não, é conta para outro rosário, mas o propósito de per si não é feito de somenos, sobretudo num meio musical que se deixa progressivamente colonizar pela boçalidade e o erotismo bacoco. O exemplo dos Real Estate é paradigmático da tal consistência em torno de um ideário pop elegante, tranquilo e, ainda assim, genuinamente suburbano e sedutor. Oriundos de New Jersey, vêm imprimindo a sua marca há sensivelmente cinco anos, sempre com muito razoáveis resultados comerciais e o reconhecimento da crítica especializada.

Atlas é o terceiro título da discografia e alicerça-se na assinatura distintiva de Martin Courtney e companhia, a mesmíssima proposta musical que é toscamente arrumada - por ser muito mais do que isso - sob o epíteto de surf rock. Não há como negar que há um sopro de Verão neste álbum, como nos que o antecederam, mas agora levado por uma produção mais limpa, com menos manobras artificiais. Esse detalhe enobrece o já eloquente melodismo das canções, apoiado na simplicidade estrutural das guitarras, na precisão do baixo e no equilíbrio tímido da percussão. Depois, a fidelidade ao refinado bom gosto das melodias, mesmo nos instantes de pura melancolia, dá ao disco a identidade Real Estate. Não vai reinventar a roda, é certo, mas é suficientemente bom para saudar a chegada do sol, sem ceder às autoplagiadas tonterias da pop mainstream.

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segunda-feira, 24 de março de 2014

Dead Combo
A Bunch of Meninos



7,8/10
Universal, 2014

Se há mérito reconhecível nos Dead Combo, ele é o de terem erguido, com solidez e consistência, um discurso musical muito pessoal. A música de Pedro Gonçalves e Tó Trips é um planeta de sons deles e que nem as sucessivas imiscuições registadas por vários convidados, numa discografia que abraça sensivelmente uma década, vieram deturpar. E isso nem sequer é sinónimo de imobilismo, já que, nesse caminho, foi tornando-se óbvio o pulsar nómada de uma música que começou por ser genuinamente portuguesa na alma e que cresceu bem além da formatação emocional que lhe esteve na origem. A Bunch of Meninos, quinto registo de estúdio da dupla, segue o rasto dos que o antecederam e fá-lo sob as certezas de uma linguagem que o tempo aprimorou e que, mesmo não contendo novidades na estrutura, é sempre capaz de insinuar uma sensualidade renovada.

Como não podia deixar de ser num disco dos Dead Combo, A Bunch of Meninos acata a mesma súmula de legados musicais que abençoou o casamento da guitarra de Tó Trips com o contrabaixo de Pedro Gonçalves (e todas as demais matérias que a eles se juntam...) e que vão da cultura poeirenta dos westerns ao desalento fadista, da  rusticidade rock ao saracoteio latino. A mistura é, como se suspeitava, equilibradíssima e só tem cabimento no universo sem par dos Dead Combo, com composições que colhem inspiração na diversidade e que, também por isso, são incrivelmente férteis a conceber ambientes e cenários. Música com este calibre cenográfico não se faz todos os dias, sobretudo cá no burgo. E entreter-se com as tradições lusas, ir buscar coisas a toda a parte do mundo e, no final, soar tão naturalmente português, não é coisa para ser feita por meninos...

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quinta-feira, 6 de março de 2014

Sunn O))) + Ulver - Terrestrials


6,7/10
Southern Lord, 2014

A inflexão estética que os noruegueses Ulver foram gradativamente ensaiando acabou por trazê-los a cenários que dificilmente se anteveriam quando, no começo do seu percurso, se viram inscritos - em contraponto com a vontade manifestada pela banda que sempre repudiou o rótulo - no povoadíssimo orbe do metal escandinavo, por força de uma afamada trilogia de álbuns que, a despeito das incongruências entre si, os situava num registo a meio termo entre o misticismo/fantasia da folk barroca do norte da Europa e as cadências musculadas e angustiantes do death metal. De então para cá, num trajecto de cerca de uma década de edições, o colectivo rechaçou definitivamente a colagem a um género estanque, dando mostras de um fôlego experimentalista assinalável e da vontade de crescer além de qualquer fronteira estética, vincando uma indisfarçável (e confortável) aproximação a outras órbitas, desde a especulação com o ruído à electrónica ambiental e do sinfonismo à música de câmara. Essa deriva ecléctica não faria adivinhar convergência com as paisagens de catastrofismo grave e arrastado dos Sunn O))), espaço monolítico em que Stephen O'Malley e Greg Anderson debitam progressões lentas e graves de guitarras em baixíssima frequência (chamam-lhe doom).

Gravado num encontro de uma noite entre os músicos em 2008, Terrestrials testa o nexo impossível entre dois universos díspares: a inventividade sem forma dos Ulver e o dramatismo monocórdico dos Sunn O))). O produto final é um híbrido com tanto de interessante como de inconsequente. O idiossincrático fatalismo dos Sunn O))) é convertido numa mera bússola de graves (como se fora o baixo das peças), camuflada pelas texturas tonalmente mais opulentas dos Ulver e pela panóplia de cordas e metais que elas convocam. E nem é pecadilho haver mais de Ulver do que de Sunn O))) na mistura, afinal a música professada pelos noruegueses tem espírito de motim e nunca deixaria de tomar de assalto a languidez da negrura de O'Malley e Anderson; o problema é que, por revolver-se na sua própria vagueza e sobretudo por não encontrar um clímax no infinito adorno que constrói, a música de Terrestrials se resume a um mero circunstancialismo sem orientação.

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terça-feira, 4 de março de 2014

St. Vincent - St. Vincent


8,2/10
Loma Vista, 2014

Uma verve tão inventiva quanto a de Annie Erin Clark dificilmente sossegaria sem encontrar o seu próprio quintal no universo musical. Depois de alguns anos passados na numerosa trupe dos The Polyphonic Spree e emprestando a sua guitarra a digressões de Sufjan Stevens, a emancipação artística sob o epíteto St. Vincent foi a óbvia evolução.  De então para cá, deu-se a progressiva maturação de uma linguagem musical marcada por uma finíssima excentricidade sonora e o uso inteligente da palavra, definida pela própria como a "sublimação musical de um ataque de pânico ou de uma crise de ansiedade".  Salvo o natural exagero, essa pode, de facto, ser a melhor definição da estética de St. Vincent, um verdadeiro caleidoscópio de emoções passadas à forma de música sob vários filtros instrumentais (guitarra, electrónica, violinos, trompetes, violoncelos, clarinetes, e outros) e com uma voz adaptável a múltiplos registos. Com uma mistura assim polivalente e imprevisível, qualquer rótulo é inevitavelmente imperfeito, sobretudo por estarmos em presença de uma das intérpretes mais engenhosas da conjuntura musical contemporânea que, com três discos editados em nome próprio e o interessante trabalho partilhado com David Byrne, há dois anos (Love This Giant), pode não ter a frescura da novidade de outrora, mas mantém uma incrível fertilidade.

St. Vincent é mais um capítulo da construção do cosmos sonoro muito particular que Annie Erin Clark ergueu para esvaziar-se das inquietudes próprias de um espírito consciente de si, desiludido pelas suas fragilidades e pela ansiedade de sentir-se parte da experiência maior da existência humana. Partindo dessas certezas, o nervo destas novas canções abre um optimismo inesperado, igualmente ansioso, é certo, mas mais luminoso - o que não é avanço pequeno para St. Vincent. No resto, as canções assentam em dois esteios idiossincráticos de Annie Erin Clark: as texturas meticulosamente trabalhadas em cima de fantasias sonoras e artifícios pirotécnicos que tendem para o supérfluo - que lhe têm valido inúmeras críticas de pretensiosismo - e os conteúdos líricos não menos extravagantes. Um gosto adquirido, portanto. E com música do quilate deste St. Vincent a polarização prosseguirá: o que uns adorarão, outros olharão com desdém. E é a própria Annie Erin Clark que volta a acertar na definição inscrita no press release: "um disco festivo que pode tocar-se num funeral". Mais palavras para quê?

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