quinta-feira, 5 de junho de 2014

Mão Morta - Pelo Meu Relógio São Horas de Matar

8,1/10
Nortesul, 2014

A obra dos bracarenses Mão Morta é transversalmente atravessada pela concepção do indivíduo enquanto parte ínfima de uma imensa (e opressiva) engrenagem universal que é, afinal, a sua mãe original e o seu capataz. Para materializar essa reflexão existencialista, Adolfo Luxúria Canibal e seus pares colocaram-se no centro de um paradigma estilístico muito pessoal, com um pé no surrealismo negro como metáfora da decadência humana e outro na distorcida redenção de um bizarro escapismo hedonista. A mistura deu-nos momentos de ácida descrença no animal humano, servidos em órbitas estéticas que, partindo de um sedimento rock, conheceram algumas derivações pontuais por outras concepções. Em todo o caso, foi precisamente quando as ideias poisaram na distorção incisiva das guitarras que nasceram alguns dos momentos mais inspirados do grupo.

Quis a evolução dos factos que, volvidos trinta anos de carreira, os Mão Morta encontrassem na circunstância da pátria lusa um terreiro apropriado como nunca para desdobrarem o panfleto do seu pessimismo. A crise financeira é aguda, o país agoniza, a contestação subiu a níveis pouco vistos. Voluntariamente, os Mão Morta juntam a sua voz à coluna dos contestatários neste Pelo Meu Relógio São Horas de Matar. Esquecida a desproporção populista do vídeo de promoção do primeiro single ("Horas de Matar") - que, atrás do sensacionalismo inevitável, presta o pior serviço aos propósitos do disco - o álbum é um monólito de coesão rock, com um alcance político em que a poesia de Adolfo Luxúria Canibal é lapidar:  "enxovalhado no trabalho / maltratado na doença / humilhado no salário / aviltado na dignidade/ resta pouco para gostar de mim / e ainda menos para amar" ouve-se na crua "Hipótese de Suícidio".  Depois, em "Nuvens Bárbaras", uma dose par: "o futuro já não é uma fonte de esperança / só nos resta a indigência / ou morrer de morte certa / como heróis de pechisbeque / neste grande fogaréu / de aparato e opulência / em que farra o capital". Palavras assim pesadas para música com músculo não são mais do que canções de intervenção, mas passadas pelo crivo tétrico dos Mão Morta. E no Portugal minguado e acomodado em que vivemos, erguer-se um disco destes tem dois méritos: firmar, em cunho rock, a independência intelectual e o arrojo dos Mão Morta - as traves mestras de um percurso consistente e sem concessões - e, en passant, atirar-nos à cara a incómoda verdade de continuarmos a ser, no melhor e no pior, um povo de brandos costumes.

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