quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Boavista e Chelsea: O anátema do autocarro


 A propósito do mais recente Porto – Boavista, reergueu-se uma discussão que sempre se levanta quando uma equipa grande não consegue desmontar o dispositivo defensivo de uma equipa com menos recursos. Quando as intenções ofensivas dos “ricos” esbarram na timidez táctica dos "pobres", fala-se recorrentemente do autocarro. O rótulo define uma ordenação táctica em bloco baixo, com pouca ambição ofensiva, com linhas muito juntas e que coloca, na maior parte dos casos, nove jogadores a defender, deixando a um, isolado na frente do bloco, a incumbência de fazer a transição. Assente normalmente numa matriz 5-4-1 (ou na variante 4-5-1), é um esquema que acantona o colectivo que defende em 40 metros e disposto em duas linhas perfeitamente definidas e com uma distância mínima entre si. O espaço para circulação de bola é ínfimo, o bloco – quando bem organizado – é cerrado e só desequilíbrios individuais ou acções colectivas muito bem ensaiadas podem criar alguma instabilidade. Foi exactamente perante isto que o Porto jogou. Do outro lado, estava o Boavista menos talentoso que vi, como é compreensível num colectivo que andou desterrado nas divisões secundárias nos últimos anos e tenta agora revitalizar-se.

Dizer que o onze de Lopetegui não ganhou porque o Boavista apostou no autocarro é uma falácia. Qualquer equipa grande tem que preparar-se para resolver enigmas deste género. No caso concreto do Boavista, não é justo esperar-se mais. Não há matéria para muito mais. Formada quase exclusivamente por novos jogadores no clube, a maior parte dos quais sem experiência em níveis competitivos mais exigentes, resta a Petit ir a jogo com os argumentos que tem. O autocarro pode não ser bonito e não beneficia certamente o espectáculo, mas é justo condenar alguém que, perante uma enorme disparidade de forças, se limita a fazer o que é humanamente possível?

Alargando a discussão à generalidade do planeta futebol, quando a relação de virtudes é muito distante, acredito que é tão legítimo defender porfiadamente como querer atacar sem peia. No choque entre as duas filosofias está o cerne da questão e que, afinal, redunda num mesmo objectivo: colocar o adversário perante a maior dificuldade possível, em função dos argumentos técnicos e tácticos de cada um. O Porto não foi capaz de meter o Rossio na Betesga por demérito próprio, é certo, mas sobretudo pela abnegada abordagem dos bravos boavisteiros. Ao Porto de Lopetegui faltou empertigar-se e o basco não está isento de culpas nisso. Ao mudar meia equipa para esta partida, passou ao balneário um sinal de duvidosa eficácia: não eram precisos os melhores para ganhar. E isso deixa sempre reflexos emocionais nos jogadores. Dessa acomodação na superioridade presumida, nasce a letargia. E, depois de ela instalar-se, vem ainda esbarrar na oposição firme de um adversário que, sendo notoriamente mais fraco, se posta muito recuado no terreno, tapando caminhos e fechando espaços. Para tornear isso, o Porto precisaria dos melhores predicados técnicos dos seus futebolistas, de paciência e de uma noite inspirada para desbloquear caminhos. Mas os desequilíbrios individuais não aconteceram e a inspiração colectiva também não. Escamotear isso e desculpar-se na estratégia adversária – a mais eficiente para os recursos disponíveis e nas circunstâncias do jogo – é um argumento sem cabimento.

Mais criticável é quando o recurso ao autocarro acontece numa equipa grande. Aí, com outros pressupostos e condições, não é desculpável o pragmatismo que se tolera a uma equipa pequena. Nesse sentido, as críticas de Pellegrini a Mourinho, no seguimento do recente Man City – Chelsea (1-1) são certeiras. Já nem é a primeira vez que o Happy One recorre ao autocarro. Voltou a fazê-lo, apostando num empate que teoricamente lhe servia e prescindindo quase em absoluto do momento ofensivo do jogo, pelo menos enquanto as equipas estiveram onze contra onze.  Fazer isto com os jogadores que Mourinho tem à disposição é, aí sim, um acto de lesa-futebol. Ter argumentos para discutir o jogo, para olhar o adversário nos olhos e jogar no campo todo e optar por não o fazer, pensando apenas em anular o oponente e na conveniência de um empate, é opção censurável. De uma equipa grande, espera-se mais do que o mero resultadismo; espera-se competência táctica nos quatro momentos dinâmicos do jogo (defesa, ataque, transição defensiva e transição ofensiva) e uma identidade culta nesses princípios. O compromisso com essa identidade, em todos os desafios, obriga a mais do que meramente anular o adversário. A cultura de posse, de gestão de ritmos de jogo, de circulação, de procura de espaços e a dinâmica táctica activa (não apenas reactiva) devem ser pressupostos presentes em todo o tempo. E, depois, a qualidade dos intervenientes ajudará a defender bem e a atacar melhor, com o suporte desse bom desempenho defensivo. Prescindir de parte importante desses definidores de identidade numa equipa grande é deixar de o ser, é pensar pequeno. Foi assim que Mourinho fez contra o City.

Portanto, criticar o recurso ao autocarro por si só e sem esta análise de circunstância é um erro. Numa equipa com limitações técnicas e tácticas e com insuficiente maturação de conceitos, é natural e aceitável a aposta no bloco baixo, no pragmatismo defensivo e rigor posicional quando, do outro lado, está um opositor com valências mais apuradas. Se isso acontece num colectivo de topo, mesmo com adversário da mesma igualha, tem naturalmente outra interpretação crítica e menos aceitação por quem aprecia o fenómeno futebolístico.

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quarta-feira, 10 de setembro de 2014

FKA Twigs - LP1

8,2/10
Xl Recordings, 2014

E subitamente o mundo da música acordou para FKA Twigs. Dela, nascida Tahliah Debrett Barnett há vinte e seis anos, apenas se conheciam pontuais aparições como dançarina, em videoclips, e dois EP's que a apresentaram também como criadora musical. Quem a descobriu nessas primeiras manifestações, encontrou uma proposta de desconstrução R&B que não procurava o conforto da ortodoxia. A melodia da voz, quase sempre cândida e contida, mas coerente e linear, poisava então numa massa sonora aparentemente disconexa e especulativa e que, estranha e sedutora consequência, se revelava o verdadeiro indutor de emoções. LP1 é um exercício de continuidade dessas premissas, buscando o mesmíssimo ritmo lento, a cadência espástica (e arrítmica) da máquina digital e levando-a ao encontro de uma voz que é, afinal, pop. Por ser tão elástica, a fórmula acaba por desenhar várias experiências emocionais, com um sublinhado melancólico, é certo, mas nunca vergadas a qualquer mesquinhez depressiva. Os paralelos com James Blake fazem sentido. E essa identidade estética atravessa o disco de uma ponta à outra, compondo um universo de sons com uma incrível harmonia, mesmo quando aposta nos limites da electrónica para desafiar a canção.

É por isso que ver em LP1 um trabalho meramente experimental é ter vistas curtas e não perceber-lhe a essência. Atrás da inventividade de FKA Twigs e da hipérbole digital do disco assume-se um sentido estético, uma linguagem sonora que já não é laboratorial, é antes um produto maturado, consequente e com sentido. Do choque entre o detalhismo robótico das texturas - que pode ser difícil de acomodar para alguns - e o laconismo delicado da voz, sobra uma sensualidade improvável. E a certeza de haver aqui boas canções. Ser capaz de erguer essas certezas na berma do abismo do exagero é obra!

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