terça-feira, 29 de abril de 2014

The Afghan Whigs - Do To the Beast


7,6/10
Sub Pop, 2014

Os últimos anos deram-nos inúmeros exemplos de reunião de colectivos icónicos que, não tendo sido esquecidos pelo tempo, foram ultrapassados por ele e sobretudo, na maior parte dos casos, saíram vergados dos choques de egos inflados a ocorrerem no seu seio, com o crescimento mediático. Perceber que o curso dos dias ajuda a curar essas desavenças e a reaproximar pessoas que partilharam ideias musicais durante anos é uma parte da explicação para esta vaga de ressurgimentos que, num nível mais profundo, parece radicar na urgência de regenerar símbolos de outros tempos, precisamente numa era em que a música, salvo raras excepções, parece órfã de protagonistas com passado musical consistente e capazes de aglutinar em si essa responsabilidade regeneradora, ainda que momentaneamente. De facto, estas reuniões dificilmente serão regressos efectivos, mas servirão o propósito de acordar velhos monstros e trazer à cena musical o quinhão de simbolismo histórico que parece faltar-lhe. Os Afghan Whigs juntam agora o seu nome à vaga, depois de dezasseis anos sem gravações e de uma separação alegadamente amistosa em 2001. Descendentes bastardos da onda grunge da década de noventa e nunca efectivamente parte dela, Greg Dulli, Rick McCollum, John Curley e Steve Earle ergueram um dos mais coerentes cancioneiros do rock americano, em que o psicadelismo autodestrutivo, a neurose sexual, a tensão obscura dos amores e algumas excentricidades lúgubres se equilibravam mutuamente e se foram abrindo aos poucos a curiosas afinidades com a soul, culminadas na excelência de 1965, último registo da banda antes do término de operações.

Neste retorno, apenas com Dulli e Curley do quarteto original, a caminhada é retomada onde tinha parado, mas sem nostalgias bacocas. Do To the Beast não acusa os dezasseis anos de silêncio atrás de si, tampouco a causa dos Whigs envelheceu ou perdeu pertinência; a verdade é que o rock contemporâneo tem pouco disto. Há dezasseis anos e depois de tímidas incursões, eles escancararam finalmente as portas da soul à força de guitarras e deram-nos um dos mais inspirados cruzamentos dos dois mundos. Agora, na contagem de espingardas do toque a reunir, pesa um pouco mais o rock, mas mora aqui a mesmíssima relação de afectos de outrora. E é suportada numa produção - aí sim, o toque de modernidade - que reforça o pendor dramático dos mundos mentais de Dulli e posiciona a música dos Whigs nos actuais padrões do consumo melómano, sem lhe beliscar os traços idiossincráticos. E não deve surpreender que a tensão de Do To the Beast fique aquém daquela ensaiada consistentemente no catálogo dos Afghan Whigs; no propósito de esquadrinhar os recantos soturnos da sua alma, Dulli encontrou um homem à porta dos cinquenta anos e longe das trincheiras da revolta do passado. A anestesia do tempo é coisa tramada. As frustrações desistem, já não se viram para fora e convertem-se em despojadas confissões.  E as canções não ficam a perder.

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