sábado, 16 de fevereiro de 2008

DJ Dolores - 1 Real

8/10
Ziriguiboom
2008
www.crammed.be



Quase três anos decorreram desde que Aparelhagem deu ao sergipano Hélder Aragão (aka DJ Dolores) visibilidade internacional, além das fronteiras do Brasil. Esse trabalho desvendava uma curiosíssima mescla de variáveis tradicionais da música do Recife - sobretudo os embalos contagiantes do maracatu (ele próprio um produto híbrido das culturas afro-indígenas) - com elementos de síntese e as programações, breakbeats e samples. A mistura é recuperada neste 1 Real (não nos deixemos enganar pelo título aparentemente prosaico), um disco povoado por ambientes festivos, genuinamente dançantes e muito bem arrumados. Há lugar para um certo tribalismo com sabores de África ou da Jamaica (o reggae-dub é luminária repetida), para a sedução latina e para métricas da embolada, do afoxé, do carimbó e do caboclinho guerreiro, também para toadas de funk e rock maquilhados, violinos (belos arranjos!) e guitarras, baixos trance, pandeiros e batuques, acordeões, metais, ocarinas, ferrinhos... Ao lado desses ingredientes imprescindíveis a qualquer festa ou charanga do Nordeste, desfila um manifesto de modernidade, tanto no recurso a samples e composições de várias órbitas estéticas (são exemplo a vénia à chanson française - com a voz de Marion Del'eite - em "Shakespeare" ou o protótipo tango-dub de "Números"), como nas magníficas construções rítmicas que são o garante de coesão e harmonia do disco. 1 Real resgata a voz de Isaar (já tinha colaborado com Aragão no álbum anterior) e junta-lhe Hugh Cornwell (dos Stranglers) e os conterrâneos nordestinos Silvério Pessoa, Mónica Feijó, Cláudia Beija e Tiné, vocalista da Academia da Berlinda. Tudo junto, o registo torna-se um belíssimo exercício de exportação da cultura nordestina - Aragão está habituado a maiores encómios além-fronteiras do que "em casa" - e, mais do que isso, soma virtudes às do antecessor, confirmando DJ Dolores como um dos ícones mais sólidos da música brasileira consumida no resto do planeta.

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terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

If Lucy Fell - Zebra Dance

7/10
Rastilho
2008
www.iflucyfell.com



Depois de se terem apresentado ao universo musical com um muito competente - e generalizadamente bem acolhido - álbum de estreia (You Make Me Nervous, de 2005), então desvendando um rock tenso e musculado, pautado por um certo nervo experimentalista e, sobretudo, por uma identidade quase artesanal na hora de domar energias e dispô-las em "canções" corrosivas e esquizofrénicas, os lisbonenses If Lucy Fell chegam ao crítico (e sempre empolado) momento do segundo disco. A matriz técnica de Zebra Dance não difere substancialmente do antecessor, todavia percebe-se uma amplitude maior das composições, mormente na forma como crescem além do metalcore - afinal, é aí que moram as fundações da banda e o começo do percurso artístico dos seus integrantes - e definem uma linguagem mais refinada. E isso, neste caso, pode ser sinónimo de cadências aqui e ali menos ofegantes, de uma melhor estruturação dos enlaces instrumentais, de um desempenho vocal mais firme e, inclusivamente, de composições menos previsíveis e com pausas para descanso. Nesse particular, Zebra Dance acaba por criar a ilusão de ser um disco menos duro mas, ao invés disso, sob essa fantasia de aparente abrandamento, descobre-se música tão pujante e visceral quanto antes. A diferença está na "massa", decididamente menos difusa (a adição das teclas de "Shela" Pereira, dos Riding Panico não é fenómeno estranho a isso), com tiques mais próximos de outras órbitas, como sejam alguns breves ensaios progressivos e, mais evidentes ainda, outros números contaminados por afinidades (bem disfarçadas atrás da extática farra de electricidade e distorção) com o laconismo técnico dos cânones math.

Em qualquer um desses revestimentos, sobressai o ímpeto contestatário e a excitante inflamação da música dos If Lucy Fell e, sobretudo, a verve cada vez mais pulsante do grupo, bem ao jeito de um turbilhão de ideias suficientemente rico para poder atrever-se a mutações de estilo - e, também às oportuníssimas interferências de Joaquim Albergaria (a voz dos Vicious Five faz uma perninha em "La Decadence") e dos Dead Combo (na sublime coda do álbum, a críptica "She Dies") - sem perder o quinhão mais importante da sua identidade. E se, no mundo animal, a dança das zebras não é mais do que um atávico ardil para enganar olhos predadores, a Zebra Dance destes intrépidos lisboetas está aí para despir camuflagens humanas. Somos todos presas e predadores. Mas ao ouvir os If Lucy Fell e o seu imparável banzé, hoje por hoje uma das mais entusiasmantes manifestações musicais da Lusitânia, não é difícil sentir-se um apelo voraz e primário pela caçada. Por mais que a zebra dance para confundir...

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segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Sascha Funke - Mango

7/10
Bpitch Control
2008
www.myspace.com/
saschafunke



Depois de um álbum de estreia que o apresentou discretamente à cena electrónica berlinense (Bravo, de 2003), Sascha Funke viu crescer o seu reconhecimento artístico à custa de intensa actividade em remisturas e inúmeras edições avulsas em formato 12''. Tendo, portanto, granjeado elogios mais ou menos generalizados da crítica especializada, mormente pela sua natural apetência para conjugar o lado mais técnico e estruturado da techno minimalista com talhes de fino recorte ambiental/pop, não é estranho que se tenha erguido uma exigente vaga de expectativas em torno do segundo tomo. Se o debute anunciara vincado equilíbrio entre a frieza das cadências rítmicas - repetitivas, como convém ao género - e uma curiosa noção de melodias e ambientes mais emocionais (nesse particular, o recurso ao sintetizador como indutor de melancolias "suspensas" marcou pontos), o sucessor sublinha fórmulas e redesenha a profundidade das atmosferas. Mango é, sobretudo, um exercício de continuidade face ao antecessor e, nesse sentido, encerra poucas novidades identitárias. Estão cá o mesmo minimalismo rítmico, os mesmos coloridos do sintetizador e das programações e um sentido de work-in-progress - uma intencional e genuína incompletude - que, se é comum às várias descendências da escola berlinense e fez escola, no caso de Mango chega a confundir-se com menor arrumo e precisão nos arranjos, em manifesto prejuízo da coesão do álbum. Ainda assim, o segundo longa-duração de Sascha Funke tem alguns motivos de interesse ("Mango", "Double Checked" e "Chemin des Figons" fazem a tríade de eleição) e que comprovam os méritos do músico como um dos intérpretes mais relevantes da electrónica europeia contemporânea.

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Novembro - À Deriva

7/10
Lisboa Records
2008
www.novembro.com.pt



O primeiro disco dos Novembro confirma as premissas que se conheciam da música do quarteto lisboeta, mormente desde a magnífica antecipação que foi "Solidão a Dois", assombrado cartão de visita do álbum que agora nos chega. O manancial inspirador do colectivo tem raízes no tradicionalismo e na cultura popular da música nacional, no fado da guitarra portuguesa, nas derivações esdrúxulas de um António Variações ou da Sétima Legião (aparentemente a referência estética mais notada) e, em simultâneo, em sabores de genuína contemporaneidade, como as programações e uma produção manifestamente actual. Trata-se, sobretudo, de um belíssimo casamento entre alentos artísticos modernizadores de um legado de que Miguel Filipe (o "líder" conceptual do projecto) gosta e a vénia indispensável a essa afeição. Por isso, À Deriva não tem pejo de combinar - e fá-lo sempre com um sentido de coesão bastante significativo - o choro da guitarra portuguesa e a urbanidade depressiva da eléctrica (ouça-se o excelente exemplo de "Plenitude") ou uma secção rítmica com qualquer coisa de costume folclórico e discretos sons de síntese. A mescla resulta quase sempre hipnótica e envolvente e, em complemento do substrato musical algo místico, vem apoiada em letras pontuadas por um imaginário densamente poético. No final, embora ressalte a sensação de que o álbum sairia beneficiado com um alinhamento mais curto, sobram argumentos para considerar os Novembro um dos candidatos mais sólidos a revelação do ano na música lusa. E À Deriva, na linha do que, por exemplo, vêm fazendo os A Naifa, é produto de uma geração de novos músicos preparados para coser um futuro com linhas de ontem. E, mesmo com algumas cisões, isso não se faz sem nostalgia.

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quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Dead Meadow - Old Growth

7/10
Matador
2008
www.deadmeadow.com



Embora esteja em actividade há mais de uma década e, inclusivamente, tenha figurado numa das famosas sessões do saudoso radialista John Peel, o trio americano Dead Meadow mantém-se um dos segredos mais bem guardados do stoner rock psicadélico. É verdade que esse género não é muito dado a grandes feitos mediáticos ou a públicos de grande escala e, em virtude disso, talvez se perceba como ainda tão pouca gente reparou neles, sendo este o quinto registo de uma discografia de surpreendente consistência, ora a piscar o olho aos cânones labirínticos e místicos do rock psicadélico dos 70's, ora a buscar ímpetos e desejos melódicos em referências mais actuais. Ao escutar a argúcia deste Old Growth - e, nele, desvendar todas as premissas da essência dos Dead Meadow - menos sentido faz o quase anonimato de Jason Simon e seus pares. As composições revelam um equilíbrio intocável entre construções melódicas e afinidades com o rock progressivo (os crescendos instrumentais são substância recorrente), entre fraseados vocais e instrumentais, entre a primazia da guitarra e a escora firme da percussão. Depois, não há nos Dead Meadow o despropositado sentido de urgência do stoner tradicional; eles descolam-se desse paradigma conceptual e preferem construir visando o detalhe, a contemplação, a auto-consciência do cultivo de uma certa fidalguia rock e, sobretudo, a noção de que a técnica não deve ser obstáculo à simplicidade estrutural das composições. E é essa a virtude maior de Old Growth, mostrar-nos música visceralmente simples, genuína na circunspecção e melancolia (nisso importa ânimos dos blues) mas, ainda assim, pejada de deliciosas minudências técnicas, servidas entre camadas de distorção ritmicamente estruturadas e doses infalíveis de solos. O instinto e a técnica a par, portanto, assim nos números musculados como nos momentos de maior placidez acústica. Um disco e uma banda dignos de francos encómios e que, em razão da sua completude, coerência e atributos, merecem ser resgatados dos baús do esquecimento e trazidos ao conhecimento da imensa legião de prosélitos do rock enquanto produto musical evoluído e sem espartilhos formais.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Bob Mould - District Line

5/10
Anti
2008
www.bobmould.com



O nova-iorquino Bob Mould fez nome como frontman dos Hüsker Dü, seminal colectivo do pós-punk americano da década de oitenta e, desde a dissolução do projecto, esteve ainda envolvido nas fundações dos Sugar (entretanto extintos) e em edições regulares em nome próprio. Esse percurso individual conheceu três fases: uma primeira, de natural e vigorosa descendência rock dos Hüsker Dü, a que se seguiram, numa segunda etapa, breves incursões pela música experimental e electrónica (o álbum Modulate, de 2002 é o paradigma dessa mudança), para, num terceiro acto, se registar o reencontro com a persona dominante do seu conceito musical, o rocker pensativo e eléctrico. Depois de Body of Song, de há três anos, ter recuperado esses confortos antigos, District Line é a continuidade lógica de um processo que, trazendo o músico/compositor ao seu habitat ingénito, acaba também por expô-lo ao risco de conformismo e previsibilidade. E é, de resto, essa a mácula do novo opus, um registo competente - como outros na discografia de Mould - mas sem grandes rasgos de renovação de princípios criativos. Ao invés disso, o alinhamento do álbum resvala, aqui e ali, para os terrenos deslizantes do mainstream e segue previsível, e muitas vezes confrangedor, como uma ociosa manobra em piloto automático. E isso são coisas pouco conformes com o seu passado icónico. Mas não deixa de ser curioso escutar Mould na máscara disco de "Shelter Me".

Hot Chip - Made in the Dark

6/10
DFA
EMI
2008
www.hotchip.co.uk



Tendo-se tornado um dos mais bem sucedidos exemplos de projecto musical que transborda as funções de produção/remistura e se torna um conceito musical emancipado e com identidade própria, o quinteto londrino Hot Chip evoluiu paulatinamente de uma fórmula musical com raízes na face mais esdrúxula da electrónica (esse substrato persiste na música que assinam hoje) para qualquer coisa que, à falta de melhor definição, se pode descrever como uma visão curiosa da electro-pop. Nesse particular, o colectivo inglês marcou pontos com o segundo álbum The Warning, chegado às lojas em 2006, então desvendando uma muito interessante gestão das bizarrias electrónicas de início de percurso, em prol de uma escrita escorreita, amiga do ouvido, de traço bem definido e claramente apostada na aprovação pela culture club. "Ready For the Floor", single de antecipação do novo disco, já dera mostras desse firme propósito, anunciando uma vivacidade pop que, todavia, pouca correspondência encontra nas demais composições do alinhamento. Pena que essa contagiante identidade acabe por se diluir na aparente sumptuosidade sonora do disco; de facto, atrás da cosmética e das mais ou menos notórias concessões a assuntos pop óbvios, existem momentos de menor inspiração, quase perdidos sob meias-luzes neón de cabaré em fim de noite. É o caso sintomático do tema-título (e não só), pseudo-balada downtempo, em manifesta incongruência com o fulgor de outros momentos do disco. É, afinal, nos instantes em que as energias criativas se libertam mais efusivamente que este Made in the Dark vinca a sua personalidade electro-pop e melhor convence, aí assegurando empatias imediatas com os incondicionais da banda que, ainda assim, não deixam de encontrar aqui matérias para torcer o nariz. Não se tratando de um exercício fracassado - o quarteto "Ready for the Floor", "Shake a Fist" (com um sample de Todd Rundgren), "One Pure Thought" e "Don't Dance" salva a honra do convento - Made in the Dark fica bem aquém do que se esperava dos inventivos Hot Chip.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

These New Puritans - Beat Pyramid




O ano transacto trouxe-nos, com impacto mediático mais ou menos generalizado, uma nova geração de descendentes britânicos dos movimentos rave do final da década de oitenta, com os londrinos Klaxons a assumirem o protagonismo liderante desse fôlego renovador, então dando azo ao rótulo de nu-rave (alegadamente, a expressão terá sido mesmo sugerida por Jamie Reynolds, alma criativa dos Klaxons). Embora não esteja ainda afastada a hipótese dessa nova corrente não corresponder a mais do que uma moda conjuntural e, consequentemente, a um passageiro frenesim de edições, continuam a surgir novas filiações. Os membros mais recentes da família nu-rave são os These New Puritans, bizarro quarteto de Southend que, além do citado enquadramento contemporâneo, se fazem às heranças dos saudosos The Fall, por exemplo, e as mesclam com finos recortes de electrónica de embalo dançante. Beat Pyramid, debute discográfico produzido por James Ford (dos Simian Mobile Disco), é definitivamente um trabalho enraizado também nas tendências pós-punk, com um interessantíssimo jogo de anti-melodias (aí quase trazem à memória coisas dos Joy Division) e uma postura irreverente e experimental, por vezes a roçar um pretensiosismo que, a bem da banda, se deve confundir com alguma ingenuidade artística. Em todo o caso, a fórmula aparentemente ainda descoordenada e algo excêntrica com que abordam a tarefa de compor música acaba por produzir alguns momentos de bom efeito ("Numerology aka Numbers", "Swords of Truth", "Infinity Ytinifni" ou "Elvis") a despeito da super-abundância de ideias que, aqui e ali, parece perturbar a afirmação de um discurso mais objectivo. Mesmo assim, uma estreia bastante interessante de uma banda a ter debaixo de olho para o futuro. Se os conceitos algo "brutos" (no sentido de púberes) que aqui desvendam conhecerem a maturação natural que é de esperar com o crescimento do colectivo, podemos estar em presença de uma banda cuja ambição desmedida pode encontrar feitos proporcionais. Por enquanto, ficam as boas indicações.

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terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Sons & Daughters - This Gift




A curta carreira dos escoceses Sons & Daughters, se ainda não permite ilações muito extensas sobre os feitos a que este quarteto poderá almejar no futuro, abre espaço para uma interessante inferência: há nesta banda um vigor curioso e, seguramente, uma energia que os afasta de familiaridades com outros conterrâneos (como os plácidos Belle & Sebastian). Decisiva para esse distanciamento, é a voz (e a postura) de Adele Bethel, descendente mais ou menos assumida das linhagens poeirentas de riot girls, com aquele jeito próprio de quem, com a mesma genuinidade, adoça fantasias e crava garras. Nesse particular, depois do interessante Repulsion Box com que debutaram nos mercados internacionais pela mão da Domino, notam-se agora sinais de depuração de fórmulas, tanto no domínio das energias difusas da voz de Adele - claramente mais ajustadas às composições - como na maturação da matriz pop eléctrica que o grupo subscreve. E é de pop que se trata aqui, sem cosméticas desnecessárias, sem desperdícios e, sobretudo, com um contagiante impulso dançante que, à partida, não pareceria casar muito bem com texturas eléctricas e pouco polidas. A verdade é que, não sendo uma obra magna, o disco acaba por revelar méritos escondidos nas primeiras audições e torna-se uma interessante audição, a despeito da aparente (e, em alguns casos, real) previsibilidade que envolve algumas faixas do alinhamento. Assim os Sons & Daughters sejam capazes de alinhar pelas sugestões do suculento avanço "Guilt Complex" e, certamente, teremos banda para "rebentar" proximamente.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

British Sea Power - Do You Like Rock Music?

7/10
Rough Trade
2008
www.britishseapower.co.uk



Subscritores de um tipo de rock de subliminar excentricidade e, sobretudo, com medidas largas na amplitude, coisa a que as convenções costumam chamar de "orquestral" - não pela dimensão instrumental proposta mas pela projecção que o composto música/arranjos insinua (aí, chegam a merecer comparações distantes com os Arcade Fire) - os ingleses British Sea Power chegam ao terceiro registo da sua carreira seguros dos ensinamentos dos capítulos anteriores. Não é que o som deles seja uma novidade extasiante. Não o é, de facto, mas ressalta de Do You Like Rock Music? uma tendência já conhecida deste intrépido quarteto: a predisposição para cerrar fileiras em volta de um ideário próprio e, ao que parece, cada vez mais imune a modas passageiras e manifestações de conjuntura. Além dessa (muito) salutar vontade de afirmar, aos poucos, um discurso pessoal (e intransmissível), os British Sea Power dão, aqui, uma belíssima demonstração do apuro a que essa linguagem própria chegou em matéria de composição. Se já lhes eram reconhecidos méritos de espontaneidade e melodismo, mesmo que em feições muitas vezes pouco convencionais, parece agora clara a aposta num rock mais pujante e enérgico, a recordar a herança tensa dos Echo & The Bunnymen (talvez a referência mais notória) que, retendo o genoma melódico do grupo, abre espaço para renovar a personalidade das vocalizações (e das canções) e, com isso, erguer peças mais vigorosas e com outra pompa. E, depois de escutar Do You Like Rock Music? não parece apenas retórica a pergunta que os quatro de Brighton escolheram para baptizar o disco. Afinal, o próprio álbum é uma cabal resposta do que pode valer o rock contemporâneo, marcando nítida clivagem com muitas das coisas que se vão fazendo hoje e, com isso, mostrando que é de gente como os British Sea Power que nasce um rock genuíno, sem compromissos de época e talentoso.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Black Mountain - In the Future

7/10
Jagjaguwar
2008
www.blackmountainarmy.com



Depois de um debute discográfico pouco mais do que discreto há três anos (com álbum homónimo), então desvendando claríssima propensão nostálgica do rock canónico dos anos setenta, sobretudo uma libertina admiração pelos psicadelismos Led Zeppelin e suas descendências, os Black Mountain estão de volta. Se o primeiro opus funcionara como anúncio de um propósito estético da (então) dupla canadiana (Stephen McBean e Amber Webber) - embora os outros poisos de McBean (Pink Mountaintops, Jerk With a Bomb) pudessem servir de referência prévia - este In the Future parece somar outras cambiantes e andamentos ao cardápio Black Mountain. Ao invés de meramente dar seguimento às sugestões previsíveis e a um certo laconismo conceptual que marcava o antecessor, o novo trabalho eleva a fasquia técnica, ao sublinhar renovadas ambições progressivas (chegando, inclusivamente, a trazer à memória o brilho virgem com que os sintetizadores tomaram o rock dos 70's) e, depois, manifesta um muito saudável sentido apocalíptico de ritmo e estilo. As sucessivas gradações do alinhamento (e mesmo em cada faixa) de momentos timidamente crepitantes e íntimos para as detonações e/ou ambientes mais expansivos não só confirmam a consistência do disco como o tornam bastante apelativo. E com um dinamismo que não existia no primeiro álbum. Mais do que isso, mesmo com um ou outro desvio na inspiração, percebe-se agora que a nostalgia do primeiro registo não era mais do que um imprescindível tirocínio para desenhar um futuro próprio que começa agora. E que vai numa firme passada de crescimento.

A corrida aos Óscares começou...

Num ano em que a sétima arte e suas manifestações paralelas vivem uma crise sem precedentes face à greve de argumentistas, foi ontem anunciada a lista oficial de nomeações para os Óscares. Se a habitual antecâmara dos Globos de Ouro - com os vencedores anunciados no passado dia 13 de Janeiro - levantou um pouco o véu, estreitando espaços para grandes surpresas, o rol de nomeações impõe, ainda assim, algumas reflexões curiosas. Desde logo, nas categorias de representação, uma nota de destaque para Tommy Lee Jones, cuja performance como veterano da guerra do Vietname Hank Deerfield lhe rendeu a primeira nomeação como actor principal, depois de duas nomeações em papéis de suporte (em JFK, de 1991, e em O Fugitivo, de 1993; o segundo foi distinguido com a estatueta). Ainda nessa categoria, a personificação de Michael Clayton valeu a George Clooney também a primeira nomeação como actor principal, depois da vitória do ano transacto, como secundário, em Syriana. Johnny Depp terá a sua terceira oportunidade, depois das nomeações de 2003 (Piratas das Caraíbas) e 2004 (À Procura da Terra do Nunca), com a brilhante interpretação do barbeiro vingativo no novo musical de Tim Burton, Sweeney Todd. Outro estreante nestas andanças dos Óscares é o nova-iorquino Viggo Mortensen que viu a Academia distinguir o insensível Nikolai de Promessas Perigosas. No topo das apostas para levar a estatueta para casa, depois da consagração nos Globos de Ouro na classe dramática, está o já premiado Daniel Day-Lewis (vencedor em 1989 em O Meu Pé Esquerdo e nomeado em 1993, Em Nome do Pai e 2002, Gangs de Nova Iorque), pela reprodução de Daniel Plainview, o magnata do petróleo de Haverá Sangue, de P.T. Anderson.

Em funções de suporte, ao lado das previsíveis nomeações de Javier Bardem (vencedor do Globo de Ouro, em Este País Não é Para Velhos, já nomeado em 2000 como actor principal), Casey Affleck (O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford), Phillp Seymour Hoffman (Jogos de Poder, vencedor em 2005 como actor principal em Capote) e Tom Wilkinson (Michael Clayton, nomeado em 2001 como actor principal), surge a surpresa de Hal Holbrook, em O Lado Selvagem, de Sean Penn.

Nas senhoras, a australiana Cate Blanchett confirma as recentes predilecções da Academia e, depois de uma estatueta (actriz de suporte em O Aviador, de 2004) e duas nomeações (Elizabeth, 1998, e Diário de Um Escândalo, de 2006), repete dupla nomeação: papel principal em Elizabeth - A Idade do Ouro e de suporte em I'm Not There, a representar Bob Dylan. A veterana Julie Christie, já laureada pela Academia, conhece novo fôlego mediático como Fiona, uma doente de Alzheimer no drama Away From Her, de Sarah Polley. Entre essas duas deve decidir-se a atribuição da estatueta, embora não deva ser desconsiderado o trio de outsiders: Laura Linney em The Savages, Marion Cotillard, a Edith Piaf de La Vie en Rose (ganhou o globo de ouro para papéis principais em musicais) e da jovem Ellen Page, a mãe adolescente de Juno.

Na categoria secundária, além da super-favorita Cate Blanchett, as já esperadas distinções das debutantes Saoirse Ronan (Expiação), Amy Ryan (Gone Baby Gone), Tilda Swinton (Michael Clayton) e a menos consensual presença de Ruby Dee (Gangster Americano) que, aos oitenta e três anos, merece primeira atenção da Academia e terá, in extremis, superado Julia Roberts (Jogos de Poder) na corrida para a nomeação.

Para o título de melhor filme de 2007, a surpresa foi a inclusão de Juno, a par com um quarteto de nomeações mais do que esperadas: Michael Clayton, Haverá Sangue, Este País Não é Para Velhos e Expiação. O burburinho dos bastidores prevê um duelo taco-a-taco entre os três últimos. Essa peleja deve também repetir-se, apenas a dois, no Óscar para a Melhor Realização entre P.T. Anderson (Haverá Sangue) e os irmãos Coen (Este País Não é Para Velhos). A correr "por fora", estarão Tony Gilroy (Michael Clayton), Jason Reitman (Juno) e Julian Schnabel (O Escafandro e a Borboleta).

As decisões finais serão anunciadas a 24 de Fevereiro.
A lista integral de nomeações, pode ser consultada aqui.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Cat Power - Jukebox

5/10
Matador
Popstock
2008
www.myspace.com/
catpower



O formato de revisão de canções assinadas por outros já não é estranho à americana Chan Marshall que, com este segundo exercício nesse estilo (depois de The Covers Record, de há oito anos atrás), parece confirmar tendência para pontualmente prestar homenagem a canções e protagonistas que marcaram o seu percurso e integram as suas afinidades musicais enquanto na pele da persona Cat Power. Para este trabalho, além de um alinhamento que contempla originais celebrizados por Bob Dylan, Frank Sinatra, Hank Williams, James Brown, Joni Mitchell, Billie Holliday ou Janis Joplin, a cantautora fez-se acompanhar do quarteto The Dirty Delta Blues, propositadamente reunido para as últimas actuações em solo americano e que junta Jim White (baterista dos Dirty Three), Gregg Foreman (teclista dos Delta 72), Erik Paparozzi (baixista dos Lizard Music) e Judah Bauer (guitarrista dos Blues Explosion). Com semelhante trupe de músicos, não espantam os paladares blues que dirigem grande parte do disco, mesmo quando, num ou noutro instante, Cat Power se refugia num registo formalmente mais recatado e intimista e, também por isso, mais distante das coordenadas originais. De resto, por comparação com o primeiro disco de versões de Marshall, este Jukebox dá mostras de um critério mais largo na hora de a priori escolher referências; essa circunstância, todavia, acaba por revelar-se a posteriori uma falha irónica, em função da mediania e monocordismo da maior parte das versões, mesmo aquelas que, na forma original, são estruturalmente bem distintas. Mas "Silver Stallion" (dos The Highwaymen, o super-grupo de Johnny Cash, Waylon Jennings, Willie Nelson e Kris Kristofferson) ou "Lost Someone" (de James Brown) salvam o dia...

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Macacos do Chinês - Plutão (EP)




Eles estão sediados na Amadora, tendo despontado na parte final do ano transacto com algumas actuações ao vivo muito meritórias (ficou célebre a presença no Super-Mercado II, série de concertos no Santiago Alquimista, em Lisboa, ou a presença no Atlantic Waves, organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian no Cargo, de Londres, em Novembro), então chamando a atenção para uma fórmula sonora pouco comum entre portas na pátria lusa e que esquadrinha habilmente algumas das coordenadas do grime londrino. Nesse domínio, além de marcarem distâncias para o habitual "conformismo" de muitos dos projectos nascidos das cartilhas hip-hop cá no burgo, Miguel Pité (assina como Skillaz), André Pinheiro, Pedro Silva, (Apache), Alexandre Talhinhas (Al:x - conhecemo-lo dos Cooltrain Crew) e Tiago Morna propõem um interessantíssimo híbrido de sons, pleno de expressividade urbana e conjugando inúmeras nuances técnicas. Assim, neste EP de apresentação, com apenas três temas, sobressai a ponderação com que as palavras se apõem sobre as texturas rítmicas, quase sempre dominadas (como não podia deixar de ser) pela cadência de beats robustas e precisos condimentos cénicos. O resultado é uma fresca fusão (onde até cabe, em "Inspiração", um curioso sample de Tchaikovsky), vem embalado para o mediatismo pela imparável afirmação e trabalho desbastador de consciências de gente como os (agora consagrados) Buraka Som Sistema, e que deixa sólidas pistas para uma afirmação mais completa, em álbum a editar brevemente. E este som genuinamente mestiço - que a própria banda chistosamente apelida de "cozinhado no meio de um caldo Knorr, sabor a cachupa com cozido à portuguesa e caril" - promete conquistar muitos tímpanos. Iguarias destas e tão bem aprontadas, ainda por cima com um nome de poda fina como Macacos do Chinês, não aparecem em qualquer menu. Deguste-se Plutão, pois então...

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Vampiros inofensivos..

Está aí à porta o debute discográfico dos nova-iorquinos Vampire Weekend e, enquanto não chega o disco - o lançamento nacional está agendado para o próximo mês - recorda-se aqui a canção de apresentação. Chama-se "Mansard Roof", foi editado em formato single no final de 2007 pela XL, e desvenda uma linguagem pop fresca, com um traço muito oportuno de irreverência (quase a fazer lembrar alguns momentos do percurso de Paul Simon) e, sobretudo, um genuíno sabor a simplicidade. Vale a pena escutar e esperar o álbum homónimo. E, sem confusões, coisas vampirescas aqui só mesmo no nome que baptizou o quarteto.

Sia - Some People Have Real Problems

7/10
Hear Music
2008
www.siamusic.net



Mesmo tendo um percurso reconhecido durante alguns anos na sua Austrália natal como vocalista do colectivo Crisp, foi apenas com a partida para Londres que Sia Furler ganhou espaço na cena musical europeia. Uma vez fixada na capital britânica no final da década de noventa, Sia privou com protagonistas de escol do país, mormente como voz de suporte de Jamiroquai e, já depois de primeiras (e discretas) tentativas a solo, emprestando a sua voz a colaborações com William Orbit, os Massive Attack e, com impacto mediático acrescido, nos três últimos registos dos Zero 7. Não é surpresa, portanto, que o terceiro título de estúdio em nome próprio - editado pela Hear Music, subsidiária discográfica da cadeia de lojas Starbucks (depois dos lançamentos de Paul McCartney e Joni Mitchell) - dê mostras do significativo crescimento da sua música. Neste Some People Have Real Problems, fazem-se mais óbvias as afinidades vocais de Sia com os cânones clássicos da soul que desde sempre foram padrão inspirador, ainda que (bem) temperadas pela dose certa de urbanidade e rebeldia que, em paralelo com Amy Winehouse, a distinguem de muitas cantoras da nova geração. Ao mesmo tempo, o disco desvenda intenções pop mais transparentes, diga-se que com as mesmas coordenadas de Regina Spektor ou Leslie Feist, e estruturalmente algo distantes do pragmatismo electrónico dos álbuns anteriores. Texturalmente mais ricas e, sobretudo, servidas por magníficos arranjos, as novas canções representam o salto qualitativo mais adequado aos méritos que se anteviam nas suas composições e, seguramente, elevam Sia a um patamar não atingido antes. Nesse sentido, a despeito de uma capa manifestamente desconforme do ditame musical que o disco encerra (a frivolidade gráfica não tem correspondência no conteúdo musical), Some People Have Real Problems é, de longe, o melhor (e mais íntegro) exercício da carreira de Sia. E isso quer dizer que, finalmente, temos canções (e produção) na medida certa para uma das intérpretes mais competentes e imaginativas da música contemporânea.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Matt Costa - Unfamiliar Faces

6/10
Brushfire
2007
www.mattcosta.com



Tendo granjeado espaço mediático ao abrir os concertos da digressão de 2005 de Jack Johnson e, mais recentemente, numa edição radiofónica da BBC ao lado do amigo, o ex-skater Matt Costa chega agora à segunda edição discográfica com expressão nos principais canais de distribuição, depois do discreto debute, no ano transacto com Songs We Sing. O novo opus recalca os argumentos acústicos do antecessor e, por arrastamento, revela sensivelmente o mesmo embaraço estético que nele se identificava, mormente na dificuldade em definir uma linguagem una, algures entre uma miríade de influências que vão dos Beatles a Belle & Sebastian ou de Stephen Malkmus aos Fleetwood Mac ou, luzes mais distantes, dos Decemberists a Paul Simon (não deixa de ser curioso que um compositor californiano vá buscar algumas coordenadas de inspiração ao Reino Unido!). Apostando sobretudo na guitarra acústica como o substrato dominante das composições, aí revelando proximidades formais com Jack Johnson e com as feições mais luminosas da pop, ainda assim Unfamiliar Faces desvenda um código musical mais coeso do que Songs We Sing e a bem-vinda predisposição para, aos poucos, emancipar uma assinatura própria de entre as inúmeras referências. E combinações tão bem urdidas quanto as radio-friendly "Mr. Pitiful" e "Unfamiliar Faces" ou, num registo diferente, "Trying To Lose My Mind" ou "Bound" são sinais de um artífice capaz de erguer belas canções. Aguardemos, pois, os desenvolvimentos naturais.

Posto de escuta Sítio da 7Digital

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

The Magnetic Fields - Distortion

6/10
Nonesuch
2008
www.houseoftomorrow.com



Quando o mundo acordou para a música de Stephen Merritt (ele é, de facto, o esteio criativo dos Magnetic Fields) e seus pares, mais propriamente no final da década de noventa - com a seminal tríade de 69 Love Songs - já eles contavam cerca de uma década de actividade a mostrar-nos competentes fórmulas de pop independente, discreta e hábil no acolhimento de ensinamentos da cartilha Jesus and Mary Chain/Joy Division e das subliminares influências do mosaico electrónico dos 80's. Nesse particular, embora com um ritmo de edições tornado inconstante pelo recorrente envolvimento de Merritt noutros projectos, os Magnetic Fields souberam fazer-se descendentes "naturais" desse legado originário do outro lado do Atlântico, então somando-lhe outros substratos e, sobretudo, a curiosa ambivalência de mesclar o lado esperançoso do romance e o seu equivalente fatalista. O auge desse processo construtivo foi precisamente a ambiciosa colecção 69 Love Songs, de 1999, onde se desvendava uma escrita algo subversiva, híbrida no jogo de emoções e, acima de tudo, cativante no enlace entre elementos acústicos e orgânicos, aí relembrando o despojo e o negrume reverberante do shoegaze e a melhor das dimensões orquestrais que a pop pode ter.

Distortion aparece, como o nome anuncia, com o desafio de distorcer um pouco mais a matriz, não só na acepção literal de sublinhar a intensidade das distorções - nesse sentido, o disco pode muito bem ser considerado o mais "eléctrico" dos Magnetic Fields (instrumentalmente díspar da pop de câmara do antecessor i) - mas também no sentido de hiperbolizar a subversão da melodia que Merritt tanto aprecia. Se poucas dúvidas restariam da generosidade e da eficácia da sua escrita, Distortion desvenda arestas com uma encriptação mais fechada, essencialmente na forma como se desfia a porção instrumental das canções, envolta em manobras cosméticas que, se subtraem pureza acústica, acabam por emprestar-lhes um tom mais negro e ruidoso. Erguido sob o confesso propósito de personificar algo que "soe mais a Jesus and Mary Chain do que eles próprios" (as palavras são de Merritt...), Distortion revela-se, afinal, obra com valências além do mero pastiche, sugerindo, aqui e ali, paralelismos cacofónicos com qualquer coisa de art rock. Envolto numa nuvem de ruído e claramente mais "sujo" do que qualquer dos exercícios prévios de Stephen Merrit, o oitavo disco dos Magnetic Fields está subjacente a um conceito interessante e, a despeito de uma ou outra canção com méritos, fica na sombra de instantes mais inspirados. Ainda assim, não deixa de ser curioso perceber que a verve do prolífico Stephen Merritt se mantém activa e com uma bitola acima da mediania.

Posto de escuta MySpace

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Six Organs of Admittance - Shelter From the Ash

7/10
Drag City
AnAnAnA
2007
www.sixorgans.com



Embora tenha ganho visibilidade como segundo guitarrista dos neo-psicadélicos californianos Comets on Fire, colectivo a que se juntou em 2003, Ben Chasny já antes tinha instituído o bem mais plácido projecto Six Organs of Admittance, aí prestando tributo a inegáveis afinidades com o lado acústico da folk de feição mais progressiva, na linha das inesquecíveis excentricidades dos trovantes da Takoma, desde o mágico fingerpicking de John Fahey, ao virtuosismo técnico de Leo Kottke e às eufonias pastorais de Robbie Basho. Aos ensinamentos dessa trindade "clássica" da folk americana, sobretudo na propensão para colocar a experimentação técnica e as construções progressivas de melodia ao serviço das dimensões mais ambientais da música acústica, Chasny foi sendo capaz de adicionar um misticismo próprio, as mais das vezes alinhando, com a imaterialidade acústica de um som de vocação algo "atmosférica", um paganismo vocal muito próximo da espiritualidade de oração. Aprimorada essa fórmula no antecedente The Sun Awakens, de 2005, por muitos considerada a obra magna do catálogo Six Organs of Admittance, o décimo registo continua a gravitar na mesma órbita, embora desvende uma lógica textural mais polida no psicadelismo e, acima disso, uma ou outra incursão mais apaixonada pelo vanguardismo e, em paralelo, pela afirmação mais eléctrica das guitarras (a esse pormenor não será estranha a recente colaboração com os génios do drone Om). Nesse particular, Shelter From the Ash encerra riscos maiores na composição, essencialmente na definição das porções eléctricas como substrato pendular dos trechos e como elemento crucial para a matriz de crescendo das melodias. E a verdade é que, mesmo sem chegar ao deslumbre que, aqui e ali, se adivinharia, Shelter From the Ash se revela mais uma oportuníssima construção de Ben Chasny e seus pares.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Mary J. Blige - Growing Pains

6/10
Geffen
2007
www.mjblige.com



O conturbado percurso de vida de Mary J. Blige antes de ascender ao estatuto de estrela planetária, hoje visto como o turbilhão emocional alimentador da sanha que marcou os primeiros registos discográficos, de resto em linha com muitos outros protagonistas da cena r&b, acabou por ter um efeito dúbio na carreira da cantora do Bronx. Se, numa fase inicial, a crítica se rendeu à música de Blige enquanto catalisador oportuno desse passado descaroável, apressadamente a entronizando (e pelas piores razões possíveis) como principal figura da então "nova vaga" de cantoras soul com poiso no hip hop, não foi menos rápida a fazê-la tombar do pedestal onde precipitadamente a tinha colocado, assim que alegadamente se percebeu que a "guerreira" negra de cabelos loiros, ícone híbrido da cultura de rua e da mulher urbana, estava curada das drogas e cicatrizara feridas de amores falidos. Em paralelo, além dessa regeneração de equilíbrios na vida privada, a música de Mary J. Blige dava paulatinamente sinais de um desprendimento subliminar face às raízes hip hop e de (saudável) deriva por saberes vizinhos da soul ou da pop que, em termos mediáticos, conheceu apogeu na regravação, com os U2, do clássico "One" da banda irlandesa (incluída no álbum The Breakthrough, de 2005).

Chegada ao oitavo registo de estúdio, com uma renovada segurança na sua vida pessoal - e decididamente muito longe da personalidade tortuosa que expunha com arrepiante sinceridade em What's the 411?, de 1992 - e a firmeza vocal que sempre a fez especial, Growing Pains mostra Mary J. Blige a aprofundar as vizinhanças pop do álbum antecessor, mas não fechando os ambientes do disco a outros sabores que, afinal, sempre estiveram no seu cardápio. Assim, convivem serenamente e dão o toque de destrinça, num alinhamento dominado pela placidez pop-soul (também por isso mais circunscrito do que outros trabalhos), o beat de rua de "Work That", fiel às modernas escalas do som urbano que também servem "Grown Woman" (com Ludacris) ou "Roses". Como que a dizer que a emendada estrela mundial está mais segura de si e menos depressiva, mas as raízes não estão esquecidas. E se há diva na R&B capaz de mostrar o romantismo introspectivo e, ainda assim, manter íntima consciência do músculo da urbanidade e dos cultos de rua, ela é Mary J. Blige. Mesmo quando a inspiração não está nos píncaros.

Jazkamer & Smegma - Endless Coast

7/10
No Fun
AnAnAnA
2007
www.myspace.com/
smegmatheoriginal



Quem acompanhou mais de perto as manifestações recentes do muito efervescente nicho do free jazz vanguardista americano, terá certamente ouvido falar do colectivo Smegma, cujas origens remontam à década de setenta e às fundações da mítica Los Angeles Free Music Society, o espaço de excelência para a afirmação de estetas mais radicais e voltados, sobretudo, para a especulação e/ou o improviso. A banda viria a mudar-se de armas e bagagens para Portland, já na década seguinte, mas, não tendo renegado minimamente o traço genético de experimentalismo e ousadia criativa das suas origens, sobreviveu às recorrentes contaminações que envolveram alguns dos seus parceiros "geracionais" e é, hoje, uma das poucas vozes subsistentes do movimento pioneiro da LAFMS. Orgulhosamente (auto?) proscritos de qualquer demanda de protagonismo mediático ou sequer de qualquer interferência estética exterior aos seus próprios postulados de incondicional libertinagem de estilos e formas, os Smegma foram acumulando uma sólida discografia de confrontação, em casos pontuais aceitando convergências criativas com outros artífices do noise ou da música livre (os casos mais sonantes são os do nipónico Merzbow, dos compatriotas Wolf Eyes ou do emblema do bizarro zappiano Wild Man Fischer).

Não é estranha, portanto, a aproximação ao trio norueguês Jazkamer que, com cerca de uma década de existência a recriar conceitos do noise mais extremista (aí erguendo pontes com alguns padrões estéticos mais próximos dos cânones metal), fez transbordar a expressão das suas competências além da esfera escandinava e é, presentemente, um dos bastiões com mais substância na cena experimentalista europeia. Da joint-venture absolutamente disforme (ou amorfa, se preferirmos) de Endless Coast, nasce um quinteto de peças sem qualquer pejo em prescindir de regras, ainda que partindo de uma essência mais ou menos importada do free jazz - o que é o mesmo que dizer que a única premissa é não haver premissa nenhuma - e marcadamente desafiante. Embora conceptualmente o trabalho não diste muito do património passado dos Smegma - aí ficando esclarecido o papel de regência neste processo - a interferência dos Jazkamer revela-se uma suculenta adição, sobretudo na forma como se interligam texturas instrumentais e ruídos de ocasião ou quando, coisa menos frequente, o disco deriva para ambientes mais "pesados" e concisos. Nada melhor, para rematar o dadaísmo especulativo dos Smegma (nisso eles lideram o escol), do que o glacial determinismo dos Jazkamer. O desfecho é entrópico, é vândalo como não podia deixar de ser, e só peca por, em certos instantes, não desatar irremediavelmente o caos. Mas, vistas bem as coisas, às tantas a explosão não estava nos planos...

Posto de escuta Sítio da Boomkat

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Os melhores do ano

O ano que agora finda não foi particularmente inspirado em termos musicais. Marcado pela recuperação de espaço mediático de algumas das estéticas electrónicas normalmente vetadas pelos grandes públicos e, sobretudo, pela febre dos regressos ao palco de míticas bandas do passado, 2008 trouxe-nos, como sempre acontece, boa música, algumas decepções e outras tantas revelações. Espreitemos, então, os melhores do ano desta casa. A primeira nota de destaque, mormente pelo simbolismo de regeneração da escola de sons mais ou menos “perdida” do rock matemático, é a natural consagração da estreia em disco dos americanos Battles como título máximo do ano. Eles não só deram novo fôlego e expressão a uma feição rock mais angular e técnica como, em paralelo, a apresentaram às novas gerações, garantindo a sobrevivência de um género que, por ser pouco dado a seguidismos e modas de momento, é normalmente posto à margem dos canais de distribuição dominante. Do outro lado do Atlântico, o misterioso Burial fez coisa parecida com o seu segundo álbum e merece a segunda posição do pódio, embora noutra órbita, desvendando dimensões novas do dubstep, assim confirmando virtudes do género bem além do habitat natural underground londrino. No último lugar da trindade de excelência, suplantando por muito pouco o magnífico quarto álbum dos conterrâneos The National – claramente os incontestáveis ganhadores do orbe pop-rock – surge a grande revelação da música americana para este ano, os Yeasayer e um disco de estreia esteticamente ambicioso e voltado para as novas coordenadas da folk.

Nos lugares seguintes da tabela, dois esteios da música escandinava: os dinamarqueses Efterklang – que finalmente parecem ter encontrado o complemento de criatividade mais oportuno para o pragmatismo técnico que já se lhes conhecia – e o debutante sueco Alex Willner (The Field), adepto incondicional do minimalismo techno. A estes, seguiu-se a bizarria de Noah Lennox (Panda Bear) que, aproveitando uma pausa dos Animal Collective, nos ofereceu um disco recheado de belas especulações pop. Ainda no domínio dos chamados “projectos paralelos”, o canadiano Spencer Krug (Sunset Rubdown), editou o melhor dos seus discos individuais, demonstrando que a sua verve (e a sua carreira) não depende dos Wolf Parade. O último par de discos dos primeiros dez do ano é encerrado por dois projectos europeus. Sascha Winkler, artisticamente chamado Kalabrese, é o underdog do ano e um valor seguro para anos vindouros, com um impressivo primeiro álbum a merecer escuta atenta. A fechar, os germânicos Einstürzende Neubauten, senhores doutos do rock industrial europeu que, ao fim de trinta anos de carreira, ainda são capazes de reinventar-se.

Cá pelo burgo, o ano de 2008, trouxe uma tardia consagração comercial a Jorge Palma (foi preciso o homem escrever um disco mais comercial para muitos portugueses o ouvirem pela primeira vez!) e confirmou a solidez do estatuto de David Fonseca. JP Simões, o compositor português que deu luz aos Belle Chase Hotel e ao Quinteto Tati, escreveu um dos melhores discos do ano, numa clara homenagem à sua predilecção pela geração setentista da música brasileira. Este foi, também, o ano de afirmação definitiva de três projectos: os Micro Audio Waves que, depois de algum reconhecimento além-fronteiras, viram finalmente a sua música a merecer alguma exposição e o reconhecimento devido, os lisbonenses Hipnotica, cada vez mais um valor firme das tendências mais abstractas da música lusa, e Old Jerusalem, o espaço solitário com que o cantautor portuense Francisco Silva nos vem deliciando. Nas revelações, destacando-se da miríade de edições avulsas que subitamente invadiram o mercado nacional, merecem referência os experimentalistas Tropa Macaca, projecto de Ju-Undo e Símio Superior, com uma belíssima estreia em vinil, o conceito The Partisan Seed, onde o ex-Kafka Filipe Miranda desvenda posturas intimistas e DJ Ride, com uma impressiva primeira aparição, a prometer altos voos num futuro próximo. A finalizar, e porque os últimos podem ser os primeiros, o destaque maior do ano nacional foi o regresso do homem dos sete instrumentos, Júlio Pereira, num sublime exercício de redescoberta das raízes da música lusa e respectivas convergências com espaços e referências sonoras de outras partes do planeta.

E assim se fez música em 2007.

Os dez mais (internacionais):

1.º Battles, Mirrored
2.º Burial, Untrue
3.º Yeasayer, All Hour Cymbals
4.º The National, Boxer
5.º Efterklang, Parades
6.º The Field, From Here We Go Sublime
7.º Panda Bear, Person Pitch
8.º Sunset Rubdown, Random Spirit Lover
9.º Kalabrese, Rumpelzirkus
10.º Einstürzende Neubauten, Alles Wieder Offen

Os dez mais (nacionais):
1.º Júlio Pereira, Geografias
2.º Tropa Macaca, Marfim
3.º JP Simões, 1970
4.º Micro Audio Waves, Odd Size Baggage
5.º Hipnótica, Better Communities For Better Days
6.º DJ Ride, Turntable Food
7.º Mário Laginha Trio, Espaço
8.º Old Jerusalem, The Temple Bell
9.º Blasted Mechanism, Sound in Light
10.º The Partisan Seed, Visions of Solitary Branches

Para consultar a lista completa dos trinta melhores discos do ano, clique aqui.

domingo, 23 de dezembro de 2007

Robert Plant & Alison Krauss - Raising Sand

7/10
Rounder Records
2007
www.robertplantalisonkrauss.com



O facto de os protagonistas desta dupla virem de órbitas musicais normalmente pouco "conciliáveis" (mesmo em termos ideológicos), alimentou a curiosidade dos melómanos sobre a convergência artística que o "histórico" produtor/compositor da música americana (e das mais finas estirpes da folk do seu país) T. Bone Burnett imaginou e passou à prática. Além de ter operado a improvável aproximação entre Robert Plant, voz dos anais rock com os Led Zeppelin (o colectivo está na iminência de um regresso anunciado), e Alison Krauss, estrela multi-premiada da country/bluegrass, Burnett reuniu à volta deles uma trupe de músicos do escol americano que, entre ele próprio e outros, juntou o seminal artesão de experiências vanguardistas Marc Ribot (colaborador regular de John Zorn), o lendário guitarrista Norman Blake (tocou com gente como Steve Earle, Bob Dylan, June Carter, Joan Baez, Johnny Cash ou Kris Kristofferson), o instrumentista Mike Seeger e o baterista Jay Bellerose.

De Burnett já se conhecia o alento ocasional de pedagogo e historiador das potencialidades da folk, com orgulho nas raízes e, sobretudo, com o firme propósito de inspirar atalhos futuros. Mais do que ser um mero colector ou um reverente admirador/intérprete, o mestre sempre deu mostras de buscar soluções contra qualquer tipo de estagnação criativa no género e, desta vez, nada melhor do que convocar um agrupamento de músicos e vozes para servir uma homenagem à tradição musical americana. Trata-se, afinal, de erguer uma consistente colecção de revisões de canções celebrizadas por Gene Clark, Sam Phillips, Tom Waits, Townes Van Zandt, Roly Salley, Allen Toussaint, os Everly Brothers ou Little Milton. A música é intencionalmente poeirenta e oldie, como bem convém ao melhor estilo blues-country, num registo amplo o suficiente para passar pelo sujo assombramento ("Rich Woman"), pelo romantismo ("Sister Rosetta Goes Before Us") ou pela deriva atmosférica ("Trampled Rose") com a mesmíssima eficácia. Depois, as vozes de Plant e Krauss conseguem, aqui e ali, instantes de pura magia, mormente quando são chamadas a mostrar-se fora dos padrões habituais ou, como no bem sucedido tema de abertura, se ancoram mutuamente. Do delta do Mississipi a New Orleans, do Texas ao Kentucky, Raising Sand é uma interessante síntese da história recente da música americana e, embora nem todas as peças sejam uniformes nos atributos (salve-se dessa incerteza a produção, sempre excelente), não deixa de ser uma oportuníssima declaração.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Dirty Projectors - Rise Above




O conceito por detrás deste disco pareceria, por si só, um devaneio curioso e desafiante do trajecto experimentalista dos Dirty Projectors. Senão, vejamos: Dave Longstreth, guru desse quarteto nova-iorquino, propunha-se regravar, fazendo uso apenas das reminiscências da sua memória, o álbum Damage, clássico punk que, em 1981, deu a conhecer os Black Flag (e, com eles, o então "novato" Henry Rollins). Volvida mais de uma vintena de anos da edição desse registo e da pertinência do discurso panfletário (e eivado de cólera vocal de Rollins...) subscrito pelos Black Flag, Rise Above é reflexo de uma admiração moldada pelo tempo e, por isso, bem distante das matrizes hardcore em que se inspira. A proposta aqui, como poderia antecipar-se pelas raízes nova-iorquinas dos Dirty Projectors e pela tendência recente da escrita de Longstreth (evoluiu da folk "clássica" para escalas melódicas mais errantes), é um puro deleite de experimentação. Chame-se-lhe rock especulativo de câmara ou deriva math rock com corais, a verdade é que estamos perante um exercício tenso e anguloso, com impaciência rítmica e múltiplas esquizofrenias, no mesmo jeito com que os Deerhoof vêm trabalhando, nos últimos anos, uma nova arquitectura da canção rock.

Depois, mais do que meramente contemplar a luminária de Rollins e companhia, Longstreth mostra-nos uma genuína reciclagem de formas e conteúdos, onde a "sagrada" hostilidade dos Black Flag e o pragmatismo instrumental da matriz punk se convertem numa tensa fantasia de abstracções. Ao invés da catarse explosiva de Damaged, dir-se-ia que Longstreth ensaia outro tipo de purgação, assumidamente mais luminosa. Nesse festim cabem o psicadelismo, as gradações de estilo (entre o pastoral, a pop, a matemática rock, o tribalismo africano, a música de câmara, as cordas e as distorções...), a afeição pela anomalia, as descontinuidades nos tempos, a excitação com o irregular. No final, não só fica feita uma celebração ímpar (sobretudo, pelo contraste estético) da importância inspiradora do punk, como sobra um documento genuinamente pós-modernista, algo grotesco e obtuso, sem receio de assumir-se bizarro, mas não menos compensador por isso. E um ou outro excesso pontual, se afasta mentes menos prevenidas e adeptas de produtos mais conformistas, há-de fazer as delícias daqueles que subscrevem incondicionalmente a cartilha da aventura.

Posto de escuta MySpace


segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Sunset Rubdown - Random Spirit Lover


8/10
Jagjaguwar
Sabotage
2007
www.sunsetrubdown.net




Ramificação directa dos mediáticos Wolf Parade (algumas vezes iniquamente desconsiderado com o rótulo de projecto "secundário"), o quarteto Sunset Rubdown começou por ser uma invenção individual de Spencer Krug, crescendo depois para o formato de banda, como noutros casos da cena musical de Montreal - onde cada vez mais (e melhor) se aproveitam sinergias criativas (o próprio Krug está nos Wolf Parade, nos Sunset Rubdown, nos Frog Eyes e nos Swan Lake). Assim se reuniu, nos últimos anos, uma família de intérpretes que, conhecendo nos Arcade Fire o topo do reconhecimento internacional de uma estética cheia de particularidades e derivações, vai construindo um cancioneiro pop para o novo século. No caso dos Sunset Rubdown, e marcando distâncias para o pendor mais pragmático dos Wolf Parade, a coisa assume proporções quase vaudeville, sobretudo na forma como são exploradas as dimensões mais teatrais (e hiperbólicas) de melodia, ora com a tentação das vertentes progressivas e arty do rock, ora no recato dos registos mais minimalistas. Em qualquer dos casos, Random Spirit Lover é um produto manifestamente tenso e nervoso, obcecado com o detalhe e as sucessivas mutações e nunca deixaria de ser um álbum de absorção lenta. Demora a chegar-se à intimidade com um discurso tão variegado e de arquitectura tão minuciosa e ambivalente entre a delicada transparência e a labiríntica opacidade. Mas, uma vez dados os ouvidos ao dédalo - com a paciência para desfiar pormenores e preciosidade melódicas "encobertas" - a surpresa faz-se regra a cada variação tonal, a cada camada de som que se acrescenta às outras e a cada flutuação da voz. Isto é pop sem receio da ambição, a tentar os máximos do épico (pelo menos tanto quanto pode ser-se épico nos dias de hoje) e, com subtileza, elegância e elevação técnica, o resultado é glorioso. Basta deixar que a perplexidade das primeiras audições dê lugar ao conforto de perceber que, por detrás da imensa pompa instrumental e da encriptação da música, há circunstâncias novas para desvendar em cada peça e em cada visita.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Flykkiller - Experiments in Violent Light

7/10
Flykkllr Records
2007
www.flykkiller.com



Depois da emersão de uma parte significativa da cultura underground de Londres para o espaço mediático com a emancipação do movimento dubstep, não estranha a novel curiosidade dos públicos (e críticos) por outras descendências da electrónica que moram na capital inglesa. A última sensação dessas actividades "marginais" são os ainda anónimos Flykkiller, projecto de convergências entre o produtor Stephen Hilton, parceiro de David Holmes no quarteto The Free Association, e a vocalista de origem polaca, Pati Yang. Aceitando electrónicas multiformes (na estética e nos tempos) como esteio estruturante das composições, o debute da dupla revela ímpetos experimentalistas em redor de um ideário beats com referências importadas do underground rap, a que se somam, com curioso sentido de oportunidade, poeiras e interferências de electrónicas esparsas, breves cuts de "classicismo" de cordas à Craig Armstrong, aparições pontuais de instrumentações acústicas, ruídos ocasionais, mandamentos pop e uma ou outra derivação pela world music ou pelo chill out. Com tamanha panóplia de substâncias na mescla, o risco de erguer uma linguagem desconexa ou "desorientada" era uma circunstância crítica mas, em boa verdade, Experiments in Violent Light não só não dá mostras de deslizes na consistência, como ainda suplanta cepticismos quanto à eventual imiscibilidade orgânica dos ingredientes, sobrando uma rara sensação de completude e coerência. A par disso, o disco sugere ambientes vários de exotismo e sensualidade, de negro e sinistro, de tangências ao psicadelismo e à cenografia (pormenor particularmente evidente no último terço do alinhamento, onde algumas breves cedências à previsibilidade chill out penalizam o opus). No final, uma electrizante remistura do tema-título pelo "padrinho" David Holmes recoloca Experiments in Violent Light na rota certa. Uma revelação interessante.

Posto de escuta MySpace

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Mazgani - Song Of the New Heart

7/10
Naked
Independent Records
2007
www.myspace.com/
mazgani



Quando a prestigiada publicação Les Inrockuptibles fez nota de destaque sobre a música do iraniano Sharyar Mazgani, há coisa de um par de anos, então incluindo-o num rol de músicos-revelação a observar nos anos seguintes, poucos seriam os melómanos portugueses a conhecer a sua música e a saber da ligação de quase duas décadas do compositor a Portugal. De então para cá, o músico radicado em Setúbal viu crescer à sua volta um ainda injustamente pequeno (tendo como referência a dimensão artística e a qualidade do conceito) culto de admiradores - a vitória no festival Termómetro Unplugged de 2005, já com a companhia de Sérgio Mendes (guitarra), Rui David (bateria) e Victor Coimbra (baixo), foi apenas uma etapa na consagração que se previa - rendidos a um som de nostalgias folk, com o norte nos cânones "clássicos" de Nick Drake ou dos primórdios de Leonard Cohen (assumidamente uma das bússolas do iraniano), mas com oportuníssimas divagações pelos ensinamentos das escolas rock contemporâneas, sobretudo na forma como, na guitarra, o acústico se enlaça com o eléctrico para o desenho das melodias. O resto é ténue pó de melancolias e uma voz assombrada pela intimidade, tão capaz de mostrar-se levitante e utópica como, de seguida, render-se ao ónus das evidências e deixar-se resvalar para o grave arrastado. Em qualquer dos registos - aí fazendo jus ao título do disco - as eufonias de Mazgani são de puro romantismo, de redenção e espiritualidade, cruzando esperança e saudade. E isso é feito com subtileza e sentido de proporção e, mesmo sem desvendar uma fórmula musical especialmente inovadora, acaba por permitir a descoberta (para aqueles que ainda não o conheciam) de um intérprete para seguir com efectiva atenção no futuro próximo.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Sigmatropic - Dark Outside

6/10
Tongue Master Records
2007
www.sigmatropic.gr



Apesar de estar sediado num país (Grécia) distante dos principais círculos de distribuição de música na Europa, o projecto Sigmatropic despertou a atenção da comunidade melómana quando, há quatro anos, reuniu na mesma edição (Sixteen Haiku & Other Stories) uma ilustre trupe de convidados para emprestarem a sua voz a uma colecção de textos musicados e escolhidos na obra do poeta ("nobelizado" em 1963) Giorgos Seferis. Do impressivo rol de ajudantes constavam nomes como Robert Wyatt, Cat Power, James Sclavunos, Howe Gelb, Lee Ranaldo, Mark Eitzel e Laetitia Sadler. Alguns repetem conivências neste Dark Outside, conferindo ao disco uma diversidade vocal muito interessante e, mais do que isso, demonstrando inesperadas paridades com as coordenadas musicais de Akis Boyatzis (o guru-compositor dos Sigmatropic), especialmente quando a órbita das composições os obriga a distanciaram-se do conforto do habitat natural. Musicalmente, a proposta é a natural descendência da obra de debute, dando mostras de evolução da linguagem electro-folk e, em consequência disso, da tecedura mais consistente das canções. Ao mesmo tempo, e marcando um certo contraponto com o antecessor, Dark Outside é banhado por uma luminosidade não escutada antes, tanto no talhe melódico como na presença ocasionalmente menos taciturna das vozes (Anna Karakalou, nova voz residente do projecto, não brilha menos do que Robert Fisher, Howe Gelb ou Carla Torgerson). Único senão: no meio de uma família de vozes tão fecunda, o monocordismo (ou a previsibilidade) da voz de Boyatzis - particularmente notório em "Position One" ou "Monologue" - destoa e acaba por estorvar a afirmação de qualidade que os momentos altos ("A Song in My Wallet" ou "White") do disco faziam adivinhar. Ainda assim, Dark Outside conjuga substâncias suficientemente interessantes para merecer uma escuta de cortesia.

Posto de escuta MySpace da Banda

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Phosphorescent - Pride






Apressadamente entronizado pela crítica especializada como um dos mais fidedignos herdeiros de algumas das ramificações genealógicas da folk americana "tradicionalista", Matthew Houck tem no conceito Phosphorescent um espaço de curiosas manifestações musicais. Mais do que meramente fazer jus a esses rótulos que quiseram colá-lo ao legado Dylan, a música de Houck desvenda não só os reflexos de um aturado processo de transcrição dessas referências para a modernidade, mas também uma imensa vontade de afirmar um cunho próprio. Nesse particular, e num registo que pede meças às órbitas mais inspiradas de Will Oldham, marcam pontos uma voz de belas inflexões e com peso melódico impressivo e a profundidade estrutural das composições. De resto, Pride - terceiro tomo de Houck - é um disco que aposta em duas dimensões da emoção, aquela que se refugia na íntima e melancólica balada sem artifícios técnicos, ou, a outro nível, aquela que se ampara em revestimentos levemente mais psicadélicos (aí se reconhecendo algumas afinidades, ainda que distantes, com os Animal Collective - ouça-se o tema de abertura) ou de espiritualidade tipicamente sulista. O resultado é ambíguo, simultaneamente vulnerável e possante, distante do típico registo de cantautor e com momentos de belíssima construção melódica com arranjos. E os ápices de criatividade acontecem quando, em impressivas multiplicações de si mesmo e da sua voz, Houck se desassombra com os seus próprios fantasmas e personalidades solitárias e nos encanta ao mostrar faces diferentes de uma mesma verve. A soberba tríade "A Picture of Our Torn Up Praise" / "Wolves" / "My Dove, My Lamb" eleva faíscas acima das competências do resto do alinhamento mas isso não macula o desempenho global do opus. Todavia, fazendo bitola da mágica sedução desse trio de peças, fica a sensação de que há em Houck um impressivo filão de recursos à espera de ainda melhores obséquios. E que está na calha, para os anos vindouros, um disco ainda melhor do que este.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Black Dice - Load Blown

5/10
Paw Tracks
2007
www.blackdice.net



Embora não haja um segredo tecnicamente depurado na sonoridade dos Black Dice, tampouco uma dinâmica passível de grandes flutuações, a música deste trio nova-iorquino traduz uma expressão artística que pouco tem de "estacionária". Normalmente erguidas sobre um lastro melódico mínimo (muitas vezes, ele não é imediatamente perceptível), as composições aceitam, depois, o propósito transgressor de buscar interferências gravitantes de ruídos e distorções multiformes e abrasivas. Essa filosofia subversiva punha acento tónico, especialmente numa série de edições avulsas anteriores ao primeiro longa-duração do grupo, no recurso à distorção, então mostrando uma semente de noise rock pungente (ao jeito dos momentos mais ácidos de John Zorn, por exemplo) que, paulatinamente, o trio foi deixando cair em favor de uma catarse mais electrónica. Se o eufemismo sintético conheceu ápice de inspiração em Beaches & Canyons, apressadamente entronizado há cinco anos como um acto de criação maior, de então para cá a fórmula motivou alguns reveses, ora perdida no assombroso emaranhado de probabilidades estéticas que criou, ora indecisa na preferência entre a acidez do passado e o escapismo electrónico de hoje. Load Blown, quarto longa-duração dos Black Dice, mesmo afastando parte significativa dessa irresolução ao confirmar o empolgamento da banda com o psicadelismo corta-e-cose electrónico (e a aparentemente definitiva dispensa das distorções avant-core da génese do grupo), não ajuda a repor equilíbrios, recuperando composições editadas pela banda nos EP's Manoman (DFA, 2006) e Roll Up/Drool (Paw Tracks, 2007) e juntando-lhes cinco peças novas. O conjunto soa a família disfuncional, muitas vezes confundindo repetição com preguiça e bizarria com hipérbole. Não pode dizer-se que seja um disco inconsequente, não o é em essência, mas fica a anos-luz da transcendência de Beaches & Canyons e nem sequer toca o "pragmatismo" melódico do antecessor, Broken Ear Record. "Scavanger" - muito ao estilo de Panda Bear - ou "Gore" são os fragmentos de criatividade que ressaltam da mediania geral.

Posto de escuta MySpace da banda

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Subtle - Yell & Ice

8/10
Lex Records
EMI Music
2007
www.subtle6.com



Activa há cerca de uma década, a etiqueta Anticon foi a invenção colectiva de uma trupe de músicos decididos a oferecer espaço editorial a um género musical com pouca divulgação nos canais mainstream e que, entre inúmeras derivações estéticas e tangências experimentalistas com outros géneros - aí se tornando o palco de genuínos híbridos musicais - acolheu aquilo a que as convenções chamam de underground rap como axioma dominante (ou, para todos os efeitos, como "rampa de lançamento" para outros horizontes). Não demorou até que, num mercado global (e, a uma escala mais pequena, nos Estados Unidos) habitualmente "amarrado" a convenções estéticas e, por isso, guardando uma reserva de gente sequiosa de sensações rap novas, começassem a despontar a ousadia e as abstracções dos protagonistas da Anticon, então solenemente apresentados ao mundo num colectivo com o mesmíssimo nome da editora e um tomo único, com o pomposo (e ambicioso) título de Music For the Advancement of Hip Hop. Corria o ano de 1999 e esse testemunho "progressista" conjunto de gente como Alias, Jel, Odd Nosdam, Sole, Doseone ou Pedestrian deu uma impactante pedrada no charco, sacudindo espíritos ociosos e, sobretudo, demarcando-se das tendências mais ligeiras (e previsíveis) para que o universo rap (ou como, depois, se rebaptizou ao serviço de géneros mais levianos, o orbe hip hop) paulatinamente se havia voltado. Lançada a novel onda de criatividade, a solo ou em grupo, os membros da editora (e suas afinidades artísticas e projectos paralelos), ergueram um catálogo diversificado, um verdadeiro caleidoscópio de manipulações do underground rap (maioritariamente) e algumas especulações e proximidades com fórmulas do indie rock ou da electrónica. cLOUDDEAD (Doseone + Odd Nosdam + Why?), Themselves (Doseone + Jel + Dax Pierson) , 13 & God (Jel + Doseone + Notwist) ou Subtle (Doseone + Jel + Dax Pierson + Alexandre Kort + Marty Dowers + Jordan Dalrymple), ou mesmo os projectos individuais Dosh, Why? ou Bracken, tornaram-se faces notadas da editora e da sua postura, dando mostras da imparável verve dos seus membros-fundadores e amigos e, acima disso, definindo uma linguagem artística singular que, fruto de ambições pessoais dos músicos ou do apetite crescente dos mercados discográficos, se foi dispersando por outras editoras.

Também assim sucedeu com os Subtle, uma espécie de ampliação do conceito Themselves que, além de Doseone (vocais), Jel (percussão) e Dax Pierson (teclas), acolheu o guitarrista Jordan Dalrymple, o violoncelista Alexander Kort e o clarinetista Marty Dowers. O "crescimento" instrumental deu outra amplitude ao traço costumeiro da tripla, depressa afirmando um colectivo com vontade de ensaiar outras invenções. A fórmula conheceria, em pouco tempo, a consagração merecida - depois de anos a ficarem-se pela "palmadinha nas costas" da crítica especializada - com o magnífico For Hero: For Fool, do ano transacto. Se esse disco se soltara definitivamente de quaisquer amarras estruturais (nesse particular, marcando diferenças as inflexões vocais de Doseone), cruzando uniformidades rap com cores e bizarrias da electrónica ou do rock experimental, Yell & Ice é uma breve (nove trechos) colecção de revisões de alguns dos temas emblemáticos do antecessor. Mais do que fixarem objectivas na mera tarefa de remisturar as construções, os Subtle desmontam as canções em partes, baralham-nas, somam novas vozes (Tunde Adebimpe, dos TV on the Radio, Chris Adams, de Bracken, Yoni Wolf ou Dan Boeckner, dos Wolf Parade), cortam excertos, alongam, desconcertam. Pelo meio, com títulos novos como se impunha (tal a quase impossibilidade de associar novas proles e os originais que as inspiraram), cabem também peças integralmente originais. Assinado com os predicados do costume, o novo opus não só não destoa do cancioneiro Subtle (e da maravilhosa baixela de sons com ele imediatamente conotada), como fica muito próximo do brilhantismo encriptado e escuro de For Hero: For Fool. Óptimas notícias, portanto. Fica o aviso: fulgurante e irresistível vício à vista...

sábado, 1 de dezembro de 2007

Belleruche - Turntable Soul Music

5/10
Tru Thoughts
2007
www.belleruche.com



Inerente ao conceito de turntablism está, na essência, um mapa genético de manipulação de sons que, em última instância, mais não é que uma via de artificialismo na criação musical. Seja pelo recurso a samples importados de discos de veneração, aos jogos malabares com as batidas para a inserção de loops ou outra qualquer forma de trabalho manual, a expressão foi criada em meados da década de noventa, para fazer destrinça entre a mera função de passar música e o DJ que usa o misturador como um instrumento. Ao trazer esse conceito para o seu referencial estético e, mais do que isso, ao colá-no à expressão soul para baptizar o seu primeiro registo discográfico, o trio londrino Belleruche coloca-se perante um enigma de critério. Cruzar a alma soul - aqui muito bem representada num registo vocal (de Kathrin DeBoer) à procura de confortos "intemporais" (Nina Simone é luminária instantânea) - com construções manipuladas é coisa a que dificilmente se dá sabores de novidade, de tal maneira se estafaram esses argumentos com as modas passageiras do trip hop. Amarrado a essa limitação à nascença, Turntable Soul Music acaba por soar deslocado no tempo e, pior do que isso, desvenda uma incapacidade gritante para dar novo fôlego às fórmulas gastas (os Break Reform entram-nos na memória quase imediatamente e, mais longe, um espectro Massive Attack). As canções tocam, aqui e ali, uma negligente e confrangedora previsibilidade, vivendo de melodias (e melancolias) preguiçosas, raramente abrindo espaço para a surpresa ou o instante de inspiração. Salva-se um ou outro trecho - a nervosa "Bump" ou a paradigmática "Balance" vão acima do serviço mínimo - mas fica a sensação de que, o álbum se fica pela cortesia de recuperar um género sem conseguir induzir-lhe uma faísca de revitalização.

Posto de escuta MySpace da banda