sexta-feira, 12 de setembro de 2008


Depois de ponderar aturadamente sobre o assunto, creio ter chegado a altura de dar um repouso ao apARTES. A despedida dificilmente será definitiva e irreversível - a arte, e a música em particular nunca deixarão de merecer a minha devoção - mas, volvidos quase quatro anos de publicação, muitas centenas de horas de dedicação e mais de um milhar de resenhas escritas, com o inevitável (e gigantesco) prejuízo de outras esferas da minha vida, é agora o momento de repensar prioridades.

Agradeço humildemente a todos os que partilharam esta viagem comigo e que fizeram do apARTES um espaço reconhecido e lhe deram uma dimensão infinitamente superior à que imaginei quando o criei. A todos os visitantes e opinantes que por aqui passaram nestes quatro anos, o meu sincero tributo. A vossa paciência foi a minha recompensa.


Esta casa continuará a ser de todos.
A porta dos fundos fica aberta (acpinto@gmail.com).
E, talvez um dia, uma brisa sacuda o pó que há-de cair sobre os móveis.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Weezer - Red Album

6/10
DGC
Interscope
2008
www.weezer.com



Apesar da idealização quase instantânea que mereceram junto da comunidade melómana desde os primeiros trabalhos editados, os californianos Weezer experimentaram a hesitação própria de uma banda pouco preparada para o êxito. Depois de um par de álbuns chegarem ao mercado (Weezer, de 1994, e Pinkerton, o auto-renegado disco de 1996) e os consagrarem como um dos valores emergentes do rock alternativo americano, Rivers Cuomo e seus pares cessaram actividades, não só pelos inúmeros episódios de cisão no interior da banda, mas sobretudo pela insatisfação com o rumo trilhado até esse momento. Pinkerton e o arrependimento público da banda em tê-lo feito - o que acabou por atribuir ao disco, mais tarde, um estatuto de culto -, foi a derradeira lesão num colectivo a mãos com o ónus do mediatismo. A falsa partida dos Weezer deixara, contudo, a semente de um fenómeno de culto que, além de não perecer com o termo anunciado da banda, acabou por motivar uma expressiva onda de expectativas quanto a um regresso. Ele aconteceria quatro anos mais tarde, trazendo a banda a um som mais voltado para grandes arenas, sem abandonar a genética geek de pós-grunge descomprometido que, tanto gráfica como musicalmente, fora substrato essencial dos primeiros discos. A escrita de Rivers Cuomo mostrava-se consistente e a sua trupe retomava, com uma passada mais firme, o percurso interrompido sem aviso. A Green Album (2001), tido como um dos registos mais sólidos da discografia Weezer, seguiu-se Maladroit (2002), um vibrante exercício de aproximação ao lado mais "pesado" do rock melódico. Canções pop, servidas a guitarra eléctrica volumosa e com refrões orelhudos, eis a fórmula da segunda pele dos Weezer.

Depois de um pouco inspirado Make Believe (2005), a banda retoma a estratégia dos álbuns homónimos - depois diferenciados por terceiros em função da cor dominante da capa - para reafirmar-se. O formalismo pop não está em questão, ele é a matéria de subsistência da banda, mas até visualmente - vide a capa do disco - os Weezer parecem levar-se menos a sério. No lugar do fidelíssimo aspecto nerd de outrora, aparecem agora, em manifesta imbecilização do estatuto de estrela, quatro figurões de universos contrastantes, do hippie de última geração (a lembrar Devendra Banhart), ao engravatado republicano, ao cowboy bigodado de meia-idade e ao descontraído rock star. Mas mais do que a aparente desordem na indumentária, o disco também revela confusões estéticas pouco habituais nos Weezer. Atrás da idiossincrática harmonia de Cuomo - que, também aqui, produz óptimos momentos ("Troublemaker" ou "Pork and Beans", por exemplo) -, mora alguma irresolução entre a majestade rock e registos mais intimistas. Nenhum mal em exibir um lado mais introspectivo (que nem é totalmente novo), mas ao fazê-lo os Weezer arriscam um quinhão significativo de si mesmos. E a caricatura final, transformada em música, pode ficar tão irrisória (e ambígua) quanto a capa do álbum. O que, inevitavelmente, ofusca as (poucas) boas ideias.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Ry Cooder - I, Flathead

6/10
Nonesuch
Warner
2008


Reconhecido como um guitarrista do escol americano contemporâneo e um dos compositores mais inventivos da Califórnia, Ryland Cooder é também um dos mais acérrimos defensores do tradicionalismo. Nesse sentido, ele é um dos icónicos intérpretes dos sons herdados da história da música americana, mormente das heranças magnas do country poeirento e da folk envelhecida de Johnny Cash, de Pete Seeger ou de Bob Dylan. É nessa ramada genealógica que, como outros trabalhos da discografia de Cooder, se inscreve este I, Flathead (deliciosa referência travestida ao universo de Isaac Asimov...), assinado pelo alter-ego Kash Buk. Ao lado dessa identidade manifestamente "americana", o californiano deu-nos alguns belíssimos exercícios isolados de difusão da música do mundo - que, entre outros, mostraram ao mundo o indiano VM Bhatt, o cubano Manuel Galbán ou o malogrado maliano Ali Farka Touré -, então revelando ânimos exploradores que, paulatinamente, se foram alastrando às suas criações mais tradicionais. A trilogia agora encerrada com este disco, dedicada à California, é uma evidência dessas contaminações estéticas e também de um activismo sócio-político vivo, sinónimo de uma mente musical desperta para o mundo além da música. Em todo o caso, a despeito da competência do costume, I, Flathead soma pouco à extensa discografia de Cooder. Com uma ou outra excepção pontual, as canções refugiam-se tecnicamente nas zonas de conforto que o músico domina, sugerindo, ainda assim, uma viagem imaginativa (e escrita no booklet) de Kash Buk - ao som de honky tonks e boogies -, pela multiplicidade étnica e marginal da California e seus símbolos, os nipo-americanos, os nativos, os latinos e um surrealista mecânico extra-terrestre. A música não acompanha a diversidade simbólica e o exotismo da narrativa escrita, mas não deixa de contemplar momentos de sabor fino, a situar definitivamente a música de Cooder no habitat natural. E isso é, em quaisquer circunstâncias, um facto bem-vindo.

Posto de escuta Steel Guitar Heaven|Pink-O Boogie |Filipino Dancehall Girl

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Um peixe com asas para voar...

Já a rodar com o devido destaque nas rádios nacionais mais atentas ao fenómeno da música menos comercial feita cá no burgo, o novo single dos bracarenses Peixe:Avião conhece agora manifestação em vídeo. Chama-se "O Arame é uma Espera" e é o cartão de visita da estreia em disco de uma das mais suculentas revelações das safras contemporâneas da criação musical nacional. O álbum chega aos escaparates a 15 de Setembro, com a chancela da Rastilho. Fica aí o vídeo...

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Lindstrøm - Where You Go I Go Too

7/10
Smalltown Supertown
2008
www.myspace.com/
feedelity



Nos tempos que correm, o produto musical é um activo de formas cada vez menos padronizadas. O advento da era digital criou não apenas outros mecanismos veiculares de divulgação (com o MySpace à cabeça), mas também suscitou, por arrastamento, um interesse renovado nos formatos mais curtos (os 12" ou o EP, por exemplo). No orbe electrónico, essa evolução - e a consequente depreciação do conceito de álbum - assume contornos paradigmáticos. A discografia do norueguês Hans-Peter Lindstrøm é espelho disso mesmo, com inúmeras edições avulsas nos tais formatos curtos e outros tantos remixes desde 2003. Volvidos três anos do início de percurso, e depois do impacto mediático do trabalho conjunto com Prins Thomas (esse sim, em formato CD e LP), a conterrânea Smalltown Supersound seleccionou e compilou alguns trechos do numeroso histórico de Lindstrøm, no aclamado It's a Feedelity Affair (2006). Na prática, o tomo, mesmo sendo uma colecção de composições já editadas, constituiu o primeiro "álbum" do músico escandinavo, então exibindo ao mundo a dimensão quase épica de uma electrónica espacial, erguida numa orgânica de sintetizadores astrais e subliminarmente distante das fragrâncias sonoras divididas com Prins Thomas. Daí para cá, além da inscrição do seu nome na colecção de DJ sets Late Night Tales e do segundo capítulo com Thomas, Lindstrøm prosseguiu a disseminação do seu trabalho em edições soltas e remixes, até chegar a este Where You Go I Go Too.

Naquele que é, de facto, o seu primeiro álbum autoral, a escolha de um escalonamento tríptico, em cinquenta e cinco minutos, não deixa de ser sintoma de que Lindstrøm não gosta de alinhamentos com muitas faixas. Seja isso uma deformação técnica oriunda da habituação ao formato EP ou uma mera opção conceptual (ou estética), não deixa de ser arriscado, para um músico habituado a trechos de curta duração, esticar as suas composições no tempo (o tema-título tem quase meia hora!). Em todo o caso, o novo opus de Lindstrøm desvenda uma curiosa mutação da space disco que lhe corre nas veias, destapando uma afinidade desconhecida por estruturas progressivas, onde as mudanças rítmicas e a reinvenção são premissas fundamentais para reter o interesse do ouvinte nas melodias repetitivas e extensas. Das três peças, a mais conforme com o património Lindstrøm é a primeira - que dá o nome ao álbum. Curiosamente, é também a mais plana e previsível do trio e, mesmo que bem construída numa compassada (e psicadélica) escalada disco, tem poucas variações para se manter apelativa por tanto tempo. Segue-se "Grand Ideas", revisão de uma composição conjunta com Prins Thomas que, sem esse nome, figurou no alinhamento de um mix feito pela dupla para a BBC. Mais colorida e objectiva, a composição é um produto dinâmico e consequente, entre melodia e especulação rítmica, minimalismo e euforia. O disco fecha com o seu momento mais alto, "The Long Way Home", uma preciosidade de execução a lembrar o kraut rock, a derivar para as contemplações da electrónica left field e para o lounge, com o indispensável devaneio cósmico próprio de Lindstrøm. Não é um álbum de consumo imediato, nem de aceitação genérica; não se resume sequer à tipificação habitual de Lindstrøm. Mas, atrás do aparente excesso na extensão das faixas, mora afinal um disco suculento e, mesmo que de uma forma mais abstracta do que é costume em Lindstrøm, verdadeiramente gratificante.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Daedelus - Love To Make Music To

7/10
Ninja Tune
2008
www.ninjatune.net



O californiano Alfred Darlington é um académico da música que, depois do adestramento nas liberdades estéticas do jazz, se perdeu de amores pela descoberta da miríade de possibilidades criativas da electrónica e dos samplers. Como produtor ou como autor (com a assinatura Daedelus, desde 2001), em inúmeros selos e projectos musicais e colaborações com terceiros, foi paulatinamente erguendo um património musical conotado, na essência, com o orbe IDM, mas igualmente versado em padrões mais dançáveis da electrónica e, sobretudo, fiéis a uma verve cultora de várias influências da música negra (leia-se soul, funk ou hip hop). Esse traço pouco convencional (e de raro eclectismo) da música de Daedelus é uma das regras deste Love To Make Music To, o primeiro do músico pela Ninja Tune e, como noutros inquilinos do selo londrino, desvenda uma abordagem atípica, quase subversiva e sempre a extrapolar, os códigos sonoros do hip hop. Contudo, a atmosfera do disco não se fecha aí, antes usa essa referência como ponto cardeal de arranque e orientação da construção (ou sobreposição, ou colagem) de texturas muito concentradas, por vezes em eufórica proximidade do caos, e em que o garbo dos Coldcut vem constantemente à memória. E entre flutuações rítmicas, vozes convidadas, variações de beats e mudanças de estilo, Love To Make Music To revela-se uma obra com raro sentido de oportunidade, mormente na exploração de convergências entre a música electrónica e numerosos universos colaterais. A sugestão resulta numa linguagem que, tropeçando pontualmente na previsibilidade das estéticas nocturnas, dela se distancia pelo recurso equilibradíssimo a mutações nos ritmos e melodias. Se pecadilho houver de apontar-se a Love To Make Music To, ele reside na extensão do disco: cinquenta e cinco minutos. É muito tempo para mostrar música que, por ser tão densa em pormenores e, portanto, por implicar visitas concentradas, ganharia com um alinhamento mais contido. Em todo o caso, o novo Daedelus é, sem reservas, um dos mais refrescantes exercícios que a electrónica de colagens teve nos últimos tempos.

Posto de escuta MySpace

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Oneida - Preteen Weaponry

7/10
Jagjaguwar
2008
www.enemyhogs.com



Embora mais intuída do que ostensivamente manipulada nas composições ou assumida como fogo dominante, a afinidade do trio nova-iorquino Oneida pelas flamas utopistas do rock progressivo foi sempre uma matéria presente na sua discografia, ao lado do impressivo espírito de transgressão que atravessa uma identidade musical pautada pela liberdade estética. Depois de um octeto de álbuns em que apontaram propósitos estilísticos para a especulação noise em volta de um bizarro ideário de canção - o que lhes valeu, com onerosa responsabilidade, a entronização como anarquistas maiores das novas (e injustamente ignotas) safras americanas -, é chegado o momento de nova centragem, de pesar prós e contras de um percurso de consciente evolução, do primitivismo tímido da garagem para a esquizofrénica deflagração em palco. Não é estranho, portanto, que num introspectivo exercício de escrutínio das forças vivas (na criatividade) no seio do trio de Brooklyn, Kid Millions, Bobby Matador e Baby Hanoi Jane tenham encontrado um original prazer na musicalidade menos formal. Afinal, as energias improvisadas são um amor antigo que, por força das circunstâncias editoriais ou dos gostos do momento, foi sendo castrado (ou limado) em disco, mas nunca deixou de alimentar-lhes o ego nas actuações ao vivo. O registo dessa facção libertária da música dos Oneida impunha-se e, para esse efeito, nada melhor que um tríptico conceptual de discos sem qualquer tipo de atilho estrutural ou formatação predefinida. A série, sugestivamente baptizada "Thank Your Parents", conhece agora o momento inaugural - será continuada em Janeiro de 2009, com Rated O - com este Preteen Weaponry, álbum essencialmente instrumental, também ele dividido em três partes.

A tríade abre com um trecho de pura inventividade rítmica, substancialmente notada na (brilhante) incontinência da percussão de Kid Millions. Com um hipnótico e perturbador tecido sónico de fundo, algures entre o noise, o mantra instrumental de feitiçaria negra e a perversão melódica (chega a lembrar os Doors), é a bateria de Kid Millions - nervosa, derivativa, sempre consequente - que dita regras. Na segunda faixa, descansa a bateria em cadências mais "pacíficas" e crescem os efeitos sujos da guitarra, num fantasmático (e repetitivo) bailado de espectros, com o efeito atmosférico digno de uma peça progressiva, mas aquém da exigível inventividade. A dialéctica fecha-se, na terceira parte, num discurso agitado de ritmos espasmódicos, bem ao jeito de um número de improviso, misturando fantasias de guitarras e teclas; coisa para soltar, com a incerteza devida, o acto não premeditado de criação musical. E Preteen Weaponry, com as incongruências e falhas próprias de uma cerimónia repentista, é isso: um produto sem preconceito e sem regime. Como os Oneida, de resto.

Posto de escuta Sítio da Jagjaguwar

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Buffalo Killers - Let it Ride

7/10
Alive Records
2008
www.buffalokillers.com



De cada vez que surge um projecto musical alinhado com uma determinada corrente estética de revivalismo, se percebe com mais propriedade que arte e nostalgia são conceitos que, quando convergem, nos dão, com o reacendimento de memórias, a dimensão mais precisa do conceito de "clássico". O segundo disco do trio Buffalo Killers, de Cincinatti, é uma achega preciosa para essa discussão, por reportar reverencialmente à luminária do rock psicadélico dos 70's, num derivado mais contido (e por isso mais preciso) daquilo que, por exemplo, os Wolfmother fizeram recentemente. Se os australianos pecaram, nesse processo de revigoração, pelo excesso de pastiche do ideário Led Zeppelin, assim se expondo à não concretização de uma identidade própria, os Buffalo Killers fazem mais do que um mero tributo e, movendo-se no mesmo padrão estético, mostram competência para se emanciparam de um plano de referências que vai de Neil Young a David Bowie, de Rolling Stones a Allman Brothers, de Greenhornes a Black Sabbath, de Lynyrd Skynyrd a Peter Frampton. E, nesse ilustre novelo, cabe ainda uma ponta - a mais relevante - para a escrita descontraída e versátil dos BK, assente sobretudo nos riffs de guitarras (ora inflamadas, ora plácidas), na gravidade do baixo, na diligência da percussão e na expressividade vocal. Podem não ser a next big thing, nem sequer um facto absolutamente original, mas os Buffalo Killers certamente são parte da elite revivalista do rock "clássico". E Let it Ride é um bom apontamento para reescrever a história.

Posto de escuta MySpace

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Brazilian Girls - NYC




Embora este seja já o terceiro registo dos Brazilian Girls, são poucos os que tiveram oportunidade de saborear devidamente um dos melhores conceitos de música de fusão da corrente cena nova-iorquina. Os argumentos do agora trio americano - depois da saída de Jesse Murphy - fazem, sobre uma base estrutural de cariz electrónico, uma equilibradíssima reprodução do mosaico cultural e da amálgama sonora que é, hoje, a Grande Maçã, com derivações estéticas entre a pop, o jazz, a bossa nova (num prisma vanguardista) e quaisquer devaneios rítmicos mais dançantes. A essa mescla junta-se uma das vozes de maior carisma (e elasticidade) da actualidade, a da italiana Sabina Sciubba, a desdobrar-se em diferentes tons e idiomas - a moça desembaraça-se muito bem em inglês, francês, espanhol, italiano e alemão. Como os antecessores, NYC presta tributo a uma curiosíssima experimentação textural, num código musical que fica no limite da subversão melódica e que, não fossem as harmonias vocais de Sciubba, impeliria o ouvinte para os domínios da música de decifração custosa. E, embora o pareça, não é esse o caso aqui. Atrás do volumoso arsenal de percussões pouco "pacíficas", mesmo das alucinantes misturas químicas da electrónica, mora um romantismo subtil, um intimismo pouco comum neste tipo de produtos e um conceito firme de canção pop. Dir-se-ia, em abono da verdade, que o novo disco dos Brazilian Girls é um filho do cosmopolitismo contemporâneo e da transversalidade cultural cada vez mais em voga. E isso faz-se pesando, com a mesma respeitosa obediência, paladares de sofisticação retrógrada, um gosto ecléctico e uma verve voltada para a especulação vanguardista. É por isso que NYC, com evidente crescimento no capítulo da composição, mostra música de identidade ambivalente, de muitas eras e modas, de muitas escolas e ensinamentos mas, acima de tudo, entusiástica e moderna. E sem poiso estético (ou geográfico) fixo. O que é o mesmo que dizer que os Brazilian Girls, sendo genuinamente contaminados pelas miscelâneas sonoras de Nova Iorque, podiam inscrever-se nas novas turbas da world music. O título nem lhes ficaria nada mal...

Posto de escuta Amazon

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Conor Oberst - Conor Oberst

7/10
Merge Records
PopStock
2008
www.conoroberst.com



A ideia de assinar este disco com o nome de baptismo, ao invés do mais costumeiro e mediático epíteto de Bright Eyes, tem uma razão. O conceito Bright Eyes, uma das marcas mais significativas da moderna folk americana, assentou, nos últimos anos, em dois pilares fundamentais: o próprio Oberst e Mike Mogis, o instrumentista/produtor braço direito do músico/compositor do Nebraska na caminhada pelo orbe da música. E este, além de ser o primeiro registo sem Mogis, em cerca de uma década - pelo que faria menos sentido integrá-lo na discografia Bright Eyes -, é também o contributo mais pessoal de Oberst para o cancioneiro americano. Nesse sentido, pode presumir-se que, além da evidência do afastamento do parceiro de longa data, reside nestas canções a definitiva imposição de Oberst contra o incómodo (e injusto) rótulo de prodígio adolescente que lhe colam desde os doze anos. Atrás do enfatizado (pelos media do seu país) despautério de algumas aparições provocatórias em festivais americanos, inclusivamente marcadas por algum pretensiosismo ideológico pouco tragável, Oberst sempre foi um músico prolífico, talentoso e de verve genuína. Foi assim que, sem brusquidão, ergueu os Bright Eyes a um lugar raro na folk moderna, com uma identidade perdida entre a melancolia e a ansiedade ou o místico e a crítica. Ao mesmo tempo, aceitando o sustento das mais ancestrais raízes da música do seu país, Oberst foi capaz de construir um património musical carismático como poucos. E é neste Conor Oberst que a sua personalidade musical se mostra mais crua (leia-se "acústica"), apartada das cosméticas sinfónicas dos Bright Eyes.

O investimento nos arranjos é mais comedido, o que ajuda a situar as canções de Oberst num plano entre o protesto iluminado de um Dylan (outro dos rótulos com que Oberst tem lidado) e o melodismo rock de alguns momentos de Elvis Costello, além das inevitáveis referências a Neil Young, Tom Petty ou Ryan Adams. E claramente distante dos desmandos instrumentais do pseudo-orquestral Cassadaga. Aqui, as canções respiram a mais confortável das intimidades - ou intimismo melódico - e são servidas por uma lírica mais consciente do que antes, em volta de assuntos tão concretos quanto a inevitabilidade da morte, a escapatória das drogas e, claro, as paixões feitas desamores. E nenhum outro opus de Oberst tem este charme e credulidade, esta maturidade no acto de criação e esta consistência; e estes, por serem factos inesperados, tornam-se tanto mais interessantes.

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terça-feira, 29 de julho de 2008

Shearwater - Rook

8/10
Matador
PopStock
2008
www.shearwatermusic.com



Embora as suas fundações estejam, desde 2001, na sombra do colectivo Okkervil River, hoje por hoje um dos ícones mais sonantes da folk alternativa americana, o conceito Shearwater acabou por emancipar-se do mero estatuto do projecto paralelo onde Will Sheff e Jonathan Meiburg depositavam as canções que não cabiam no ideário da banda-mãe. A aparente divergência de opiniões ou prismas estéticos entre os dois músicos (ou o curto espaço de manobra para as composições de Meiburg nos OR) levou à divisão de águas, mormente depois do aclamado Palo Santo (2006): Meiburg desertou e fez dos Shearwater o seu poiso único, Shef chamou a si os Okkervil River. Se já no opus prévio, ainda com Will Sheff nos créditos, Meiburg assumira na íntegra a composição, Rook é o primeiro disco da marca Shearwater sem Sheff e, também por isso, se torna o documento da derradeira exposição e afirmação do conceito. E o disco é fiel ao cancioneiro da banda: estão cá o subtil cuidado no detalhe, a placidez melódica de Meiburg, a orquestralidade dos arranjos e uma finíssima discrição pastoral. A tudo isso, somam-se as certezas da voz carismática de Meiburg, sempre seguríssima e fluente entre a grandiosidade e o recato, o romantismo e a meditação. E Rook é isso mesmo, um genuíno exercício musical de leitura de almas, a olhar para dentro e a purgar gerações infinitas de inquietações colectivas e a repassá-las nos mais redentores ambientes musicais. Se estruturalmente se trata de um documento de folk de cariz acústico, aqui e ali espreitando atrevimentos rock com projecção orquestral, Rook encerra outras dimensões que vão muito além da simples declaração musical. Seja pelos enunciados fantasiosos das letras, pelo cicerone invulgar da voz de Meiburg ou pela linguagem puramente emocional dos instrumentos (ou pelos três em simultâneo), a verdade é que Rook tem o raríssimo condão de fazer o ouvinte "sentir" a música além daquilo que ouve. Nestas canções, intersectam-se, na ímpar forma de um baile de espíritos, a majestade do drama (quase sempre servido em cortante minimalismo acústico), o sonho vacilante, a fria melancolia, a paisagem invisível (e imaginada) e a redenção luminosa. E a mescla é tão humana e credível, tão musicalmente coesa e coerente, que é impossível não se ficar rendido à imponente epopeia de bolso que Meiburg escreveu.

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sábado, 26 de julho de 2008

CSS - Donkey

5/10
Trama
2008
www.csshurts.com



A instantânea entronização do colectivo Cansei de Ser Sexy como projecto mais mediático da moderna música brasileira foi um exercício de confirmação da improbabilidade. Corria o ano de 2003 (e os seguintes) e, atrás de um crescente burburinho, primeiro nas ondas cibernéticas e, depois, no seguimento de actuações nos palcos e festivais mais frequentados do Brasil (e além-fronteiras), paulatinamente se ergueu uma vaga sacralizadora de uma trupe de músicos tecnicamente pouco talentosos e cujas composições encerravam, em tosca simplicidade, um conjunto de sabores incomuns no cenário musical brasileiro. A afirmação da originalidade - se quisermos, de uma transversalidade estética com um único denominador comum: o substrato electrónico - prevalecia sobre a presumivelmente imprescindível valoração da técnica, como se, para ser-se reconhecido no orbe musical, nem fosse necessário ir além da fasquia mínima da execução instrumental. Aliás, seria exactamente essa rudimentar lapidação dos trechos, em último caso, a motivar amores/ódios à volta do sexteto (agora quinteto) paulista e a torná-lo um fenómeno ímpar na música urbana e um dos mais mediáticos descendentes da geração net fora da Europa.

Com a agenda absolutamente atestada nos últimos anos e o inevitável aprimoramento da execução instrumental dos elementos do grupo, é um facto que dificilmente podia esperar-se que Donkey repetisse a incipiência técnica do antecessor. A audição do álbum confirma essa premissa perigosa para os CSS: ao sumir-se a inocência técnica, ficaria hipotecado um quinhão decisivo dos factores de sucesso do primeiro disco. No caso das CSS, o refinamento técnico envolve ironicamente um desinvestimento no ingénuo diletantismo com que fizeram as canções que os trouxeram ao topo da música brasileira. Donkey é notoriamente um produto mais evoluído do ponto de vista instrumental, não restam dúvidas de que regista música feita com uma ciência mais apurada e longe da pubescente ética do primeiro disco. E é aí que muda o prisma de avaliação do trabalho das CSS. Se, antes, gostando ou não, se perdoava a impolidez e um certo atabalhoamento técnico dos trechos, em nome da atitude desconcertante e enérgica de "músicos" inexperientes (mas criativos) em demanda do seu espaço, com a maturação técnica é incontornável redobrar a exigência sobre as canções enquanto produto artístico. Nesse particular, por ter-se dissipado o elemento nuclear de singeleza que interessava na música das CSS, Donkey torna-se um disco redondo, previsível e inconsequente. Perdida a magia da descoberta quase juvenil da música e do rudimentar experimentalismo que escondia as fragilidades da composição, as canções expõem uma confrangedora efemeridade. Sair da puberdade é uma chatice.

Posto de escuta MySpace

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Radioheadphone...?

Com a chegada recente aos escaparates discográficos do álbum Ghostwriter, com chancela da PIAS, os Headphone prometem fazer transbordar o burburinho dos melómanos locais à sua volta para espaços fora das fronteiras do seu país. Recorrentemente conotados como descendentes da ética criativa dos Radiohead, os belgas têm no disco um documento de coesos paralelismos com Thom Yorke e companhia, bem além do mero pastiche e, sobretudo, pautados por prismas maturados e evoluídos do que deve ser uma canção pop independente. "She is Electric" é uma enigmática exploração do minimalismo melódico e vem servido por uma interessantíssima animação, a dar continuidade ao que já haviam sugerido no outro single, a canção-título do álbum. Um projecto a seguir com atenção, sem dúvida...

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Uma canção do diabo...

Juntamente com a crítica ao disco (ver abaixo), deixo-vos o vídeo de promoção de "The Devil's Crayon", magnífica peça do primeiro disco dos ingleses Wild Beasts, onde ficam expostas algumas das virtudes únicas do quarteto e a pertinência da combinação da voz de Tom Fleming com o falseto do vocalista principal, Hayden Thorpe. Uma das grandes canções da colheita de 2008, sem dúvida...

Wild Beasts - Limbo, Panto

8/10
Domino
Edel
2008
www.wild-beasts.co.uk



Não é todos os dias que a descoberta de um disco proporciona a excitação de privar com um produto de originalidade. No caso dos Wild Beasts, quarteto de caloiros-revelação do setentrião inglês, a erupção da surpresa sobrevém em duas formas. A primeira - que por ser "superficial" é uma saliência notória nas primeiras audições - deriva directamente da insistência no dramático falsetto de Hayden Thorpe (excelente voz, sem dúvida!), a fazer lembrar, como num sucedâneo em moldes pop, o trejeito canoro de uma opereta. Atrás dessa admirável sugestão da voz de Thorpe (que será, decerto, um dos factores decisivos para definir afinidades com o disco), desfilam as outras faces da surpresa, as pormenorizadas, faustosas e muito conscientes texturas instrumentais, algures entre a elevação barroca que celebrizou Rufus Wainwright, a ciência dos cânones do moderno psicadelismo (leia-se volubilidade estética entre o tribalismo, os meneios vaudeville, a dança de cabaret, o melodismo jazz ou a arquitectura "clássica" da ópera-rock) e, também, a doçura rústica das gerações hodiernas da folk e os cenários da pop etérea dos 80's.

Em concreto, o verdadeiro mérito da massa musical dos Wild Beasts nem sequer é a inovação - as coisas de que é feito Limbo, Panto não são propriamente inauditas. É, ao invés disso, o admirável engenho de erguer monumentos pop com o melhor de cada um dos mundos estéticos de referência e dar-lhes um cunho pessoal único e orgulhoso que os distingue. O que se escuta no álbum é de uma autenticidade rara, por mais que tentem encontrar, nas entrelinhas da música dos Wild Beasts, pedaços dos Smiths, de Sparks, dos Orange Juice, dos Triffids, dos Shins ou de Antony Hegarty. Teatral, subtil, eufórico, ambicioso e orquestralmente sumptuoso, Limbo, Panto não será um disco consensual, como nunca o seria um produto de quatro jovens nos primórdios dos vintes, amantes de Dickens, do bizarro, do melodrama cénico e do fauvismo (o nome da banda é uma importação da escola de arte francesa), mas tem tudo para dar aos Wild Beasts o heróico epíteto de revelação do ano. E pérolas como "The Devil's Crayon" (um dos indiscutíveis momentos magnos do ano) afastam qualquer preconceito de intelectualismo que queiram colar-lhes.

Posto de escuta MySpace

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Leila - Blood, Looms and Blooms




O percurso artístico de Leila Arab é indissociável do nome de Björk. Primeiro como teclista de suporte da mediática islandesa, depois assistindo-a na função de co-autora de algumas composições, a iraniana Leila foi ganhando visibilidade no povoado orbe da música electrónica, a ponto de estrear-se, como compositora em título próprio (e uma das raras autoras femininas do género a não usar a sua voz em gravação), há uma década, com Like Weather. Então apadrinhado pelo selo de Richard D. James (Aphex Twin), a Rephlex, o disco desvendava uma curiosa mescla entre orgânicas left-field - muito próximas das estirpes "intelectuais" e mais elaboradas da música electrónica - e um transversal eclectismo estético, mormente na construção das melodias. Com efeito, embora não se tratando, à época, de um facto pioneiro, podia falar-se de um processo pouco convencional (mas razoavelmente bem conseguido) de encontrar convergências entre as sempre especulativas (e densas) manobras de manipulação digital e a contingência de as arrumar numa estrutura de canção com voz. Ao segundo capítulo (Courtesy of Choice, 2000, XL), Leila arriscou alargar o espaço de experiências de pop vanguardista e diminuir-lhes a tensão introspectiva, mas a crítica não se rendeu à troca da técnica pela forma.

Blood, Looms and Blooms chega-nos oito anos depois desse passo em falso, também depois de intensa actividade junto de Björk, tanto em palco (grande parte dos concertos da tournée de Volta tiveram Leila na abertura) como em disco. E a mudança para o catálogo da Warp, domicílio editorial de gente como Flying Lotus, Jamie Lidell, Plaid, Autechre ou Battles, parece ter funcionado como um estímulo oportuníssimo para Leila. É justo dizer-se: o selo inglês é, entre outras coisas, um seguro baluarte para algumas das mentes mais transgressoras (ou imaginativas) da electrónica contemporânea e o passado (e sobretudo o background) de Leila, não obstante as contingências de ter uma discografia curta, era uma premissa abonatória da sua adesão à família Warp. E se dúvidas existissem ainda, Blood, Looms and Blooms está aí para as dissipar. O terceiro registo de Leila é o mais lúcido (e transparente) da sua carreira. Tecnicamente muito bem urdido e detalhado, a puxar à sedução pelo efeito-surpresa e pela profanação das convenções instituídas, o disco é formalmente desprendido (deixou de ser importante falar-se em "canções") e mostra uma verve capaz de soltar a rédea em padrões estéticos vários, de tocar tangencialmente outros tantos e não perder o sentido de coesão. Afinal, a linguagem musical é a de Leila (com as presenças vocais da irmã, Roya, de Luca Santucci, de Terry Hall e Martina Topley-Bird), tão intrigante e complexa como antes, tão fértil e cativante como sempre a conhecemos. E mesmo que, aqui e ali, Blood, Looms and Blooms se desvie da rota e cometa o pecadilho de ser extenso demais, não deixa de ser um enunciado das virtudes de Leila e uma boa forma de lhe dar a merecida notabilidade.

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segunda-feira, 21 de julho de 2008

Lykke Li - Youth Novels

7/10
LL Recordings
2008
www.lykkeli.com



Quanto mais se generaliza a fatalista (e necessariamente redutora) perspectiva de que o orbe pop é um mundo saturado e crescentemente insípido, mais se manifestam protagonistas capazes de a contradizer. A revelação mais recente chega-nos da distante Suécia (embora tenha vivido uma parte da infância em Lisboa), tem a frescura e a jovialidade de alguém com vinte e dois anos e a timidez de uma estrela anunciada com medo da fama, é cultora de gostos mutantes - que vão de Kate Bush, a Velvet Underground, a Amy Winehouse, ao hip hop de última geração (leia-se Clipse e Dizzee Rascal), aos Suicide e ESG - chama-se Lykke Li (diz-se Lica-Li) e assina um disco de estreia de pop simples, açucarada e com substrato electrónico. Gravado em Nova Iorque com a ajuda de Björn Yttling (dos conterrâneos Peter, Björn and John), Youth Novels é, atrás da copiosa panóplia de instrumentos convocados, um disco de princípios estruturalmente minimalistas. O diapasão das melodias é a voz melíflua de Lykke Li que, mesmo com espectro estreito e pouco dada a aventuras de tom, transmite harmonia e suavidade às magníficas texturas que a servem. Trata-se, sobretudo, de uma visão pragmática (e certeira) da proporção do binómio voz/arranjos - ainda passível de afinações, é certo - mas que se confunde com um saudável princípio de sobriedade estética. Depois, as canções derivam pontualmente do curso temático natural da ambivalência romântica (as luzes e sombras do amor) e, aí, mostram outras caras não menos sedutoras de Lykke Li, mais dançantes ou mais introspectivas (até cabem duas despropositadas faixas em spoken word), mais folk ou mais electro.

Em suma, Lykke Li é uma adição oportuníssima às safras recentes da música escandinava (Peter, Björn and John, El Perro del Mar, Taken By Trees ou Robyn), mas tem leituras dúbias: a economia orgânica, ao depositar nos méritos canoros de Li o vigor das composições, se resulta esplendidamente em alguns trechos ("Little Bit" ou "Breaking Up"), acaba por jogar em manifesto desfavor de outros. E, ao mesmo tempo, o entusiasmo de alguns momentos mais preenchidos (como a mediática "I'm Good. I'm Gone"), faz crer que na filosofia musical de Lykke Li também devem caber substâncias mais venturosas do que o minimalismo. Em todo o caso, Youth Novels é um debute muito promissor.

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domingo, 20 de julho de 2008

Wire - Object 47

7/10
Cargo
Compact Records
2008
www.pinkflag.com



Os londrinos Wire constituem um dos poucos exemplos da música europeia em que a longevidade - a fundação do colectivo data de 1976 - se confunde com evolução e relevância artística. Tendo partido das heranças mais rústicas do punk do final da década em que se formaram, os Wire desde cedo se demarcaram dos pares geracionais e do simplismo estético do género, ao optarem por feições mais criativas e arty e , em simultâneo, por subscreverem conceitos elaborados de melodia e canção. Foi, de resto, a especificidade dessa tendência, e, em consequência, a aparente impenetrabilidade da sua música, a empurrá-los para um pejorativo estigma de "intelectualismo" de que não se livraram, senão em momentos pontuais do percurso discográfico. O fôlego experimentalista em volta das linguagens mais directas do rock tornou-se o centro da verve de Colin Newman e companheiros e a fonte de algumas mutações de processos e identidade estética - a que, por norma, vieram a corresponder cisões no seio do grupo. Depois de um estupendo trio de discos, de 1977 a 1979, a inaugurar uma carnalidade minimalista e um conceito vanguardista e geométrico de rock tirado das algazarras do punk, o grupo conheceu o primeiro (e abrupto) termo de actividades, em 1980. Voltariam, cinco anos mais tarde, depois de avulsas edições a solo de Colin Newman, Bruce Gilbert e Graham Lewis, superficialmente contaminados pelo advento da música electrónica, para editar um quinteto de álbuns, até nova dissolução em 1992. Seguiu-se um longuíssimo interregno de sete anos, parado pelo lançamento de alguns EPs e novo álbum de originais, em 2003, o nervoso e cifrado Send. Outra pausa no ano seguinte, formalmente interrompida pela reedição dos três documentos de início de percurso, também pela chegada aos escaparates, já em 2007, do terceiro capítulo da colecção de EPs Read & Burn.

Agora chega-nos Object 47, 11.º álbum dos londrinos - embora seja a quadragésima sétima manifestação editorial (daí o título), entre singles, EPs, álbuns e compilações. Com os Wire espera-se sempre o inesperado e, à rigidez textural, à dureza e ansiedade do antecessor, o novo opus opõe detalhismo estrutural, maior acuidade melódica, fulgor (dentro dos limites de luminosidade dos Wire) e espaço para a electrónica. Mesmo sendo esta a primeira gravação dos Wire sem a guitarra de Bruce Gilbert (abandonou, com acrimónia, o projecto em 2004), Object 47 traz um punhado de canções de grande vitalidade e com as certezas de um código sonoro apurado ao sabor dos cenários conjunturais, mas sempre fiel a uma aura própria. É art-punk venturoso, é rock ligeiro, é pop sinistra e deadpan. E, de uma penada, sem soar anacrónico ou revisionista, Object 47 conforta-nos com a familiaridade de um som que é, afinal, a mais cabal síntese das aptidões "históricas" do grupo, sem invocar qualquer momento pontual do passado e, sobretudo, sem perder de vista o arrojo vanguardista e o gosto pela experiência dos Wire.

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quinta-feira, 17 de julho de 2008

Tiago Guillul - IV

7/10
Flor Caveira
Mbari
2008
www.florcaveira.com



Indicados nos últimos tempos por outros ou assumidos pelo próprio, têm-se multiplicado os comentários sobre Tiago Cavaco (Guillul, em hebraico) e os exercícios de rotulagem da sua música. Se até há bem pouco tempo, mesmo depois da edição em CD-R deste trabalho, em finais de 2007, o músico lisboeta gozava de um anonimato quase total e das pacatas condições de pastor baptista em S. Domingos de Benfica e blogger do "clássico" Voz do Deserto, a afirmação dos Pontos Negros - que haviam sido "descobertos" por Tiago - atraiu atenções para as propostas libertárias do selo "underground" Flor Caveira (que ele fundou) e, por arrastamento, para a música do seu fundador. A reedição de IV em formato CD, com um punhado de composições extra, é o corolário assumido de alguns lançamentos avulsos dos últimos anos e apresenta definitivamente ao mundo musical português um protagonista a merecer sair do "buraco" do desconhecimento. Há na música de Tiago Guillul mais substância do que a do natural objecto de culto em que se transformou. Construídas com a segurança de quem acumula alguns anos de experimentação e depois de ultrapassado o teor panfletário baptista dos primeiros ensaios musicais, as canções de Tiago Guillul são, hoje, produtos amadurecidos pelo tempo, certeiros na conjugação de sabores retro (a música punk e o romantismo rock dos oitentas são heranças mais ou menos assumidas) e de um certo folclore estético que lhes empresta imprevisibilidade e fantasia. A isso junta-se a utilização hábil da língua portuguesa e do escárnio como veículo de uma mensagem sempre perspicaz e bem dirigida. É aí, no virtuoso uso do português, que IV marca mais pontos, ao actualizar a relação entre música e remoque social, trazendo-a a fasquias pouco comuns cá no burgo. E desenganem-se aqueles que, trazidos à música de Guillul pelo epíteto de "pastor do novo rock cristão", pensam encontrar aqui um opúsculo do protestantismo. O que vale é a música, da religião sobram brevíssimas insinuações. E a música tem todos os condimentos de um clássico: é bizarra, fresca, inteligente, sarcástica e tem muita personalidade. Ainda vai converter umas quantas almas tresmalhadas dos ofícios do espírito...

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segunda-feira, 14 de julho de 2008

Beck - Modern Guilt

8/10
Interscope
XL Recordings
2008
www.modernguilt.com



Com um percurso marcado pela vontade de percorrer as várias etapas de uma metamorfose artística sem destino estético definido, Beck é um dos sujeitos menos conformistas e um dos ícones principais da nação pop contemporânea, mormente pela acuidade com que vem insistindo na redefinição dos paradigmas de canção. É graças a ele, sobretudo na década de noventa, que as arraigadas visões tradicionais do cancioneiro pop são expostas a contaminações exteriores ao seu cânone e a uma criatividade revisionista que acabou por lhes somar influências de outras órbitas estéticas. Foi assim que, paulatinamente, a identidade musical de Beck se impôs como um produto híbrido e virtualmente inclassificável, ainda que subjacente às estruturas populares de canção. Com influências importadas do psicadelismo, da electrónica, dos blues ou até dos costumes folk, a música do multi-instrumentalista americano foi, em alguns casos com reflexos figurativos evidentes nas capas dos álbuns, um produto musicalmente equivalente do neo-expressionismo (ou da sua hiperbolização, o movimento cinquentista da art pop). Essa definição, volvidos quatorze anos da impressiva estreia discográfica, continua a ser um dos poucos rótulos justos que se podem colar a Beck e, com especial propriedade, a este Modern Guilt.

O mais curioso é que, mesmo sendo este o décimo álbum de Beck, o disco finta habilmente a familiaridade dos ouvintes face aos ingredientes idiossincráticos do americano, moldando-os numa massa sonora surpreendentemente capaz de insinuar novidade e imprevisto numa linguagem sobejamente conhecida e sem segredos. E esse é o melhor encómio que pode escrever-se sobre Modern Guilt, o de revalidar a efectividade do nomadismo estético de Beck que, mesmo travestido de ressaca festiva, psicadélica e espiritual (cortesia da co-produção do ubíquo Danger Mouse) é capaz de construções melódicas niveladas com o escol de Beck ("Gamma Ray", "Chemtrails", "Youthless" ou "Soul of Man" são o quarteto altivo). Não obstante um substrato mais melancólico do que os seus antecessores recentes, Modern Guilt é penetrante e vigoroso, cheio de truques sonoros apetitosos e, porque vem resumido em trinta e quatro lacónicos minutos de música, torna-se uma experiência rápida e intensa. Quando cessa o último acorde, fica o suspiro para voltar ao ponto de partida e gozar voluptuosamente o melhor Beck desde Sea Change.

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terça-feira, 8 de julho de 2008

Um português pouco suave...

Há momentos televisivos que fazem mais, do ponto de vista retratual do português de gema, do que estudos sociológicos apurados em décadas nas cátedras da ciência. O instante que o vídeo abaixo captura foi retirado do último capítulo d' "Os Contemporâneos" e reporta um diálogo casual de esplanada. Em dois minutos e meio de conversa sobre o aumento da criminalidade, duas caricaturas bem lusas: Nuno Markl é o plácido leitor de jornal, a alegoria da complacência, dos "brandos costumes" e da indignação apática e silenciosa; Eduardo Madeira é o cidadão revoltado contra a "rebaldaria" no país, o idealista e defensor acérrimo "do Irão" e das virtudes justiceiras de uma realidade que conhece apenas através de "um primo" e que defende energicamente. Numa penada, fica feita a fotografia da incongruência do espírito crítico do português comum e da argumentação inculta e desabrida que normalmente é o seu altor e que, afinal, tem tanto de impetuosa como de leviana.

Tricky - Knowle West Boy

6/10
Domino
2008
www.trickyonline.com



Os últimos anos de Adrian Thaws têm invariavelmente assinalado a demanda do músico inglês para se libertar do oneroso peso de um rótulo. Desde sempre conotado, mesmo contra a sua própria vontade, com as esferas do trip hop, o reconhecimento de Tricky junto das massas críticas acompanhou a evolução desse movimento estético, erguendo-o à instantânea sacralização no início do percurso a solo (depois da ambígua relação com os Massive Attack), em época de êxito conjuntural do trip hop, para depois, com a visibilidade menor do género, o empurrar para o quase esquecimento que os sucessivos débâcles discográficos ajudaram a confirmar. É nesse torpor mediático que Knowle West Boy experimenta nova terapia de ressuscitação daquele que, em tempos idos, foi um dos provocadores de excelência dos anos 90. O disco põe termo a um cauteloso silencioso de cinco anos e, como os seus antecessores mais recentes, é um alvoroço de tensões interiores próprias de um espírito turbulento que, chegado aos quarenta, já não esconjura os demónios do caos urbano, antes os aceita e tenta refrear. Da ansiedade hipnótica e do nervo negro e angustiado de outros tempos, restam aqui meras sombras ("Past Mistake" é o descendente mais próximo). Tricky (e a sua música) é, hoje, um agente menos de causas e mais de efeitos; continua a ser um insurgente atento, mas está menos agudo. Ao invés de assumir-se, na sua improbabilidade criativa, como um líder de rebeliões, converteu-se num seguidor das tribos urbanas globalizadas da nova década, onde as mesclas sonoras que ele próprio inaugurou a contento de uma geração são uma vulgaridade e um discurso comum. E, perante o adensamento de propostas desse género e a ascensão de outras linguagens narradoras das crises metropolitanas desta era, sobram menos espaços úteis para os exorcismos de Tricky. Ainda assim, Knowle West Boy é a mais competente (e esquizofrénica) declaração de vitalidade de Adrian Thaws desde os "dourados" anos 90. Mas não parece ainda bastante para reatar uma chama conservada a meio-gás nos últimos anos.

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segunda-feira, 7 de julho de 2008

António Pinho Vargas - Solo

8/10
David Ferreira Investidas Editoriais
2008
www.antoniopinhovargas.com



Nas palavras do próprio António Pinho Vargas, Solo não é um produto jazz. Exposto assim tão cruamente e um pouco em contraponto com as essências antigas de um percurso de muitos anos, o novo disco do compositor português é, num registo individualizado na intimidade do piano, de facto, uma obra menos jazzística e mais "clássica". Trata-se, afinal, de redescobrir o passado trilhado nos caminhos do jazz e não só, de nele recolher uma colecção de composições, de lhes juntar dois inéditos e, com isso, dar um sentido de coesão e congruência ética a alguns dos episódios avulsos mais marcantes de um trajecto de fina liberdade estética. Ao mesmo tempo, as gravações de Solo proporcionaram ao músico/compositor gaiense um saudado regresso aos palcos, depois de anos de ausência, por força da dedicação a outras causas, sendo o episódio mais recente a edição da ópera Os Dias Levantados - que fora originalmente uma comissão do Festival dos Cem Dias, integrado na EXPO98. À luz desta recente centragem de esforços na música erudita, Solo ganha sentido adicional enquanto exercício de retorno e revivificação de uma obra consistente e muitas vezes esquecida ou subvalorizada pelas pressões mediáticas dos mercados discográficos. O duplo-álbum tem, então, mais do que a mera dimensão da circunstância editorial, a importância de conduzir o ouvinte a um maravilhoso e plácido promenade à inventividade e às múltiplas identidades musicais de António Pinho Vargas. E ao mostrar as composições sem artifício e despidas de arranjos, ao oferecê-las no mínimo revestimento, Solo tem não só o condão de converter-se no opus mais pessoal e íntimo da discografia de APV, mas sobretudo tem a versatilidade de se desviar da mera compilação nostálgica, emprestando a trechos isolados uma "segunda pele", um senso de novidade - até de improviso - que lhes oferece harmonia e sentido de conjunto. Revisitadas assim nesta despida metamorfose, nas transparências e na singeleza melódica do piano solo, as composições de APV alcançam a rara e genuína tangibilidade das coisas humanas livres. E essa tocante delicadeza do músico ao piano, essa predilecção por mostrar o imo da música, essa imperfeição tão mundana é a mesma que serve de subtítulo a um disco imprescindível. Porque a imperfeição pode ter uma beleza esplêndida.

sábado, 5 de julho de 2008

The Presets - Apocalypso

7/10
Modular
2008
www.thepresets.com



Julian Hamilton e Kim Moyes tornaram-se, nos últimos três anos, um dos vértices mais imponentes da música australiana no mundo. O debute discográfico enquanto The Presets - com o aclamado Beams (2005) - atirou-os para a ribalta do orbe da electrónica pop, abrindo portas para alguns dos festivais mais importantes do género, ao mesmo tempo que desvendava uma identidade musical substancialmente distante das abordagens generalistas dessa estética. A par do indispensável culto das praxes techno geneticamente ligadas ao anos oitenta - afinal, a confessada luminária dos Presets - Hamilton e Moye subscreviam, aí, um certo desinvestimento nos coloridos da melodia, em favor de afinidades com tensões, sombras e alguma negrura emocional. Nesse particular, Apocalypso reinventa os conceitos algo rústicos do antecessor, repisando os propósitos de uma electrónica marginal e que excita mais pela provocação cáustica do que propriamente pela brandura melódica. Ao mesmo tempo, debaixo das tensões que coordenam a relação da música com o espaço, há uma escrita afinada e capaz de emprestar elasticidade ao estilo do disco, bem ao jeito dos produtos mais "negros" dos Depeche Mode. O resto, o que os distingue do mero seguidismo de referências, é a apurada mistura de zumbidos e concentrados electrónicos para fazer mosh, os devaneios industriais, os climas ambivalentes entre a letargia gótica e o cataclismo dançante, os sintetizadores e maquinaria saturados, a atitude de resvalo rock e o hedonismo elegantíssimo. Corrosivo, mas viciante.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Fleet Foxes - Fleet Foxes

8/10
Sub Pop
Popstock
2008
www.myspace.com/
fleetfoxes



O debute discográfico dos Fleet Foxes chega aos escaparates nacionais envolto numa aura curiosa. Depois de duas curtas demonstrações das linhas com que se cose, em EP's convertidos em objectos de culto junto das franjas mais alternativas da comunidade melómana, o quinteto de Seattle mostra-se num registo que mereceu rara sacralização de algumas das mais solenes publicações especializadas de música a nível internacional, sobretudo por se tratar um produto estreante. Mediatizados em larga escala, pelo menos em território americano, como um dos mais estimulantes projectos da folk corrente, em alguns casos até visados (justamente, diga-se) como herdeiros contemporâneos de um certo barroquismo "clássico", os Fleet Foxes souberam integrar-se nessa corrente musical algo órfã de descendências modernas, recuperando-a para o primeiro plano da música americana e dos gostos dos melómanos. Fleet Foxes é, como podia esperar quem conheceu os EP's prévios, um exercício colector (e nostálgico) de influências de vários quadrantes dos anais do rock clássico e da folk tradicional. A pureza melódica é uma trave-mestra, sobretudo nos esplendorosos jogos vocais do álbum e na ambição das construções instrumentais e dos arranjos. Nas memórias invocadas pelo disco, e são muitas, cabem cerimoniosos fragmentos dos "inventores" da folk emocional - leia-se Neil Young, Bert Jansch, mesmo Donovan ou o incontornável quarteto de mestres Crosby, Stills, Nash & Young - e do melodismo sessentista dos Beatles ou dos Zombies; cabem também preitos à alma Motown, ao proto-psicadelismo dos Love, aos enleios vocais dos Beach Boys, ao esoterismo da Incredible String Band e às fantasias progressivas dos Jethro Tull. A surpresa mora na sublime junção de semelhante família de sons que, mais do que meramente adir partes num concentrado denso de neoclassicismo, produz uma colecção de canções genuínas numa identidade própria feita de simplicidade, de beleza pastoral e barroca, de orgulho na tradição, mas capazes de respirar ares actuais e intemporais. E isso é muito mais do que subir ao sótão e tirar o pó ao baú de recordações.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Deolinda - Canção ao Lado

8/10
iPlay
2008
www.deolinda.com.pt



Desencontrado das correntes artísticas que vêem o fado como uma inspiração fatalmente eivada de taciturnidade e do peso emocionalmente denso da saudade, o projecto Deolinda reconhece-se na canção tradicional portuguesa, pelo menos enquanto referência estética, mas inunda-a de luminosidade, de júbilo e de energias positivas. O que propõe Canção ao Lado, exercício de debute do quarteto lisboeta, é uma saudável desmistificação de uma das mais finas tradições musicais lusas, a fazer lembrar as especulações pioneiras dos Madredeus, de há uns anos atrás. Aqui, escuta-se fado feito de melodias alegres e de cantares soltos, com letras revestidas pela leve comicidade de uma ou outra caricatura social de um Portugal de qualquer tempo. Em termos instrumentais, no minimalismo textural do disco, não deixa de ser curioso perceber como se produz fado sem recorrer à guitarra portuguesa, "falsificando-lhe" os trejeitos em duas guitarras clássicas, a que se une o contrabaixo. Depois, há Ana Bacalhau. Apartada dos caprichos psicóticos que deliciosamente mostrara nos Lupanar, ao jeito da saudosa Anabela Duarte e dos Mler If Dada, encontra agora na Deolinda o respaldo de placidez e doçura melódica que lhe permite explorar a imponência dos registos mais harmónicos do seu versátil espectro vocal. No mais, Canção ao Lado é um pequeno prodígio: canções brilhantes ("Fado Toninho", "Movimento Perpétuo Associativo" e "Fon-Fon-Fon" são um trio que apetece repetir), uma lógica de subversão do fado tradicional que soma mais do que subtrai e, last but not least, um humorismo disfarçado de arrazoado panfletário que é raro ver-se por estas bandas. Belíssima estreia, sem dúvida.

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quarta-feira, 25 de junho de 2008

The Great Lesbian Show - You're Not Human Tonight

7/10
Zounds
Sabotage
2008
www.lesboscorp.com



A inconstância parece ser um conceito caro aos lisboetas Great Lesbian Show. O alinhamento do ensemble foi alvo de inúmeros ajustes desde a formação no longínquo ano de 1992, emprestando uma dose significativa de incerteza à sua sobrevivência - facto confirmado com a cessação de actividades, seis anos depois da fundação e ainda sem um registo discográfico para a posteridade, e a ulterior transição para um novo arranque em 2001. Além disso, as contingências do estrito mercado editorial adiaram sucessivamente um debute discográfico anunciado, amputando a banda da amplitude comercial de uma afirmação paulatinamente conseguida em palco. Apenas em 2004 os escaparates mostraram Psykitsch Kaleidoscope, primeiro registo dos GLS que, após de três anos de penosa suspensão e indiferença das editoras, veio dar a conhecer o dissonante e insano cocktail de experiências rock de Ondina Pires (ex-Pop Dell'Arte) e seus pares. You're Not Human Tonight, embora gravado sem a urgência do antecessor e contando com uma produção mais "profissional" (de Jorge Ferraz), é um idêntico manifesto de libertinagem rock. É difícil encontrar, no panorama actual da música lusa, um disco mais diletante e despretensioso do que este, não só por convocar referências estéticas de vários quadrantes (aparentemente imiscíveis) mas, sobretudo, por ser fiel a uma ética compositiva faça-você-mesmo rara cá no burgo. A experimentação, muitas vezes disfarçada de improviso incontinente, continua ser o combustível da surreal irreverência do quinteto e de uma identidade mutante que vai do rock fumoso à electrónica sorumbática, do ruído casual à dissonância, da garagem ao clube nocturno, da charanga profana ao pecado punk. Mesmo faltando "a" grande canção a este You're Not Human Tonight - o que continuará a ser um óbice para a chegada dos GLS a outros públicos - são notórios a maturação e o crescimento artístico da banda, bem como a gestão mais apurada do desconcertante turbilhão de energias criativas que mora no quinteto lisboeta. E, se prescindirmos de qualquer requisito de congruência na apreciação do disco - coisa despropositada quando se aprecia um trabalho dos GLS porque não é essa a identidade deles - o disco ganha formas de experiência auditiva mais compensadora do que parece à primeira escuta.

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The Ruby Suns - Sea Lion

8/10
SubPop
Popstock
2008
www.myspace.com/
therubysuns



A prontidão da comunidade melómana a arrumar qualquer agente artístico sob um rótulo que o identifique com um determinado padrão estético, tem vindo a acolher os neo-zelandeses The Ruby Suns com a designação de "mini Polyphonic Spree". Se, muitas vezes, esse tipo de considerações apressadas tendem a desvirtuar a identidade musical dos visados, com que os reduzindo a um mero pastiche ou seguidismo estético, neste caso a comparação não vem totalmente a despropósito. Os Ruby Suns partilham, na essência, o paradigma estilístico do colectivo de Tim DeLaughter, pelo menos na evocação ecléctica de uma miríade de referências e, mais ainda, na experimentação com o som e as texturas e numa certa especulação psicadélica importada dos 70's. Destas premissas deriva um curioso conceito de canção - ela é a meta aqui - que, não deixando de ser fiel ao cânon da pop colorida contemporânea (leia-se Arcade Fire, Beirut, The Shins ou New Pornographers), revela também entusiasmo pelo desafio às formas mais consensuais. Ao mesmo tempo, atrás das inúmeras casualidades sonoras, das vibrações e da amálgama de estilos e culturas que enchem os trechos, há lugar para uma invulgar espiritualidade, dir-se-ia que própria de boémios utopistas. E é precisamente nessa porção onírica que a iconoclastia dos Ruby Suns ganha sentido e formosura, ao subverter conceitos e fórmulas, sem forçar a mescla dos ingredientes, assim desvendando canções harmoniosas e surpreendentes, quase naïf nos concentrados cénicos que insinuam e mágicas no deleite escapista de experimentar. Sea Lion é, por isso, uma excursão a um universo musical aberto a mestiçagens e encenações várias e à consequência da transculturalidade e, sobretudo, onde acontece uma família de canções de fino recorte. Verve indie à descoberta do mundo.

terça-feira, 24 de junho de 2008

Sigur Rós - Með Suð í Eyrum Við Spilum Endalaust

8/10
Beggars XL
2008
www.sigurros.com



O crescimento mediático do colectivo islandês Sigur Rós é imagem representativa das duas faces de um percurso fiel a uma estética singular (e, por isso, marginal aos discursos dominantes). Se, por um lado, a recorrência (e consequente depuração) de uma linguagem musical própria foi factor de angariação de fãs aderentes a esse microcosmo estético particular (forjado no lado "ambiental" da melancolia), assim se fundando a identidade inconfundível da banda, não é menos verdade que, depois de um quarteto de álbuns estruturalmente muito semelhantes, o risco de cristalização do conceito estaria presente. Antecipando a proximidade da estagnação, os Sigur Rós perceberam a necessidade de reinventar-se e da oportunidade de somar outras valências à fórmula musical que inventaram. Hvarf-Heim, prenda acústica do Natal do ano transacto, constituíra primeiro momento do fôlego revisor que, tranquilamente, trouxe o quarteto nórdico ao exercício de transição que é Með Suð í Eyrum Við Spilum Endalaust. Não se trata de fazer um motim contra o passado, tampouco de dispensar os ensinamentos do sucesso armazenado, mas há no quinto opus de estúdio dos Sigur Rós uma vontade de atalhar por outros caminhos. A esse desejo de romper o saudável hermetismo de discos anteriores, não são estranhas a produção de Flood (dos Nine Inch Nails) que, sem beliscar a toada minimalista e ambiental da banda, lhe confere expansão, e a escrita mais transgressora da banda - os corolários moram na pseudo-psicadélica na "Gobbledigook" (foi você que pediu Arcade Fire?), na luminosa "Inní mér syngur vitleysingur", ou na primeira aventura em língua inglesa ("All Alright"). Em tudo o resto, a substância maior é aquele imo de dolência deprimida que os Sigur Rós musicam como ninguém e que faz deles verdadeiramente especiais. E música como a que se escuta no impronunciável Með Suð í Eyrum Við Spilum Endalaust (a tradução livre seria: "com um zumbido nos ouvidos, tocamos sem fim") não só guarda a essência quase épica do universo Sigur Rós, como lhe abre o espírito a outras luzes. A lágrima escorre sobre um sorriso.

terça-feira, 17 de junho de 2008

Coldplay - Viva La Vida or Death And All His Friends

8/10
EMI
2008
www.coldplay.com



Com mais de trinta milhões de discos vendidos e a consequentemente sólida afirmação no panorama editorial como um dos activos mais relevantes da pop contemporânea, os Coldplay tinham, à partida para a tarefa de conceber um quarto álbum, duas vias alternativas: ou seguiam o caminho mais conformista (que, neste caso, é sinónimo de generalista) e limitavam-se a repisar os códigos musicais dos registos anteriores, ou ousavam investir em causas menos divulgadas antes e mais experimentais, assim se expondo ao risco de desagradar o extenso bando de séquitos mais incondicionais do melodismo simples e, ao mesmo tempo, revigorar a maturidade artística da banda. Ao escutar Viva La Vida or Death and All His Friends é notório o desinvestimento nos refrões faustosos que fizeram a imagem da marca do quarteto britânico e a aposta firme numa toada de subliminar experimentalismo nos instrumentais e, sobretudo, na forma como as melodias se definem. O novo opus é, afinal, o testemunho da integridade artística de Chris Martin e seus pares e da emancipação das suas artes face à pressão de uma editora em crise (EMI), num mundo cada vez mais orientado pelo pastiche das fórmulas bem sucedidas e pela plutocracia dos resultados comerciais e menos remunerador da reinvenção, da criatividade e da ousadia. Pode dizer-se que Viva La Vida or Death and All His Friends tem a natureza de um exercício objector (não chega a ser revolucionário), no sentido de caminhar no sentido oposto àquele que poderia esperar-se de uma banda sabedora do preço (e peso) que tem no mercado pelo simples facto de existir e se mostrar, mas claramente à procura de evitar os vícios da comodidade e da habituação ao sucesso. Assim se percebe porque disseram os músicos, em entrevista recente, que este disco não é para fãs de Coldplay. Não só a escrita baralha aqui a herança melódica do grupo com o risco da experiência, como a produção de Brian Eno e Markus Dravs (o obreiro da magia alquímica dos Arcade Fire) empresta um equilíbrio sem mácula à mistura, expondo as composições a especificidades técnicas menos comuns no cardápio Coldplay, como sons orquestrais e electrónicas do espaço. A cosmética não enfraquece as virtudes que se conheciam nos londrinos, antes as agita e descentra, aprofundando a feição meditativa e "adulta" que a banda sempre teve, atrás dos êxitos mainstream mais ligeiros. E em Viva La Vida or Death and All His Friends a superficialidade é coisa rara numa colecção de canções que demonstra inequivocamente que melodia pop e essência artística não são mundos inconciliáveis.

domingo, 15 de junho de 2008

Foge Foge Bandido - O Amor Dá-me Tesão/Não Fui Eu Que Estraguei




Por detrás do projecto Foge Foge Bandido está quase uma década de acidentais encontros de Manel Cruz com a sua própria verve. Não é segredo para ninguém que o antigo vocalista dos Ornatos Violeta e mentor dos subsequentes (e já extintos) Pluto, é um dos mais fecundos inventores de música que o panorama artístico nacional conheceu nos últimos anos e esta edição é testemunho de uma identidade criativa que vai bem além daquilo que publicamente mostrou. Recolhendo, no desregrado baú dos esboços inacabados e das ideias preteridas de outros tempos e de agora, a matéria para encher um duplo álbum com 80 (!) trechos, entre canções com estrutura e verbetes casuais (aqui chamados de "separadores"), Manel Cruz oferece-nos uma extensa síntese, não só dos caminhos incertos (e até experimentais) que o levam ao acto de criação de música, mas também dos desvarios deixados de lado pelo critério de escolha das melhores ideias. O Amor Dá-me Tesão/Não Fui Eu Que Estraguei tem, assim, o pendor de uma compilação atípica, porque não deriva do catálogo editado do músico. O que aqui se reúne, além de canções inteiras, são esquissos guardados na gaveta, experiências e sons casuais. Nesse sentido, embora servidas em conjunto com um livro de 140 páginas que lhes empresta dimensão física e conceito, as propostas do duplo álbum nada têm de "conceptual" e menos ainda de estrutura narrativa. Aquilo que aqui se escuta é, partindo do legado incontornável que Manel Cruz inscreveu nos Ornatos Violeta, o prazer do compositor ao inventar outras sugestões nas texturas, subliminarmente mais especulativas e sem preconceitos formais e estéticos. Aí, nesse deleite transformista, aquilo que uma colecção tão vasta de pedaços musicais perde em harmonia ou sentido estético - coisas para as quais não terá sido sequer pensada/destinada - lucra em surpresa. E é esplêndido redescobrir Manel Cruz e, mais do que isso, visitar algumas das faces menos divulgadas de um músico cujo talento inquestionável se encontra aqui (e se expõe) num fôlego mais diletante.

Posto de escuta MySpace

sexta-feira, 13 de junho de 2008

N.E.R.D. - Seeing Sounds

6/10
Star Trak
Universal
2008
www.n-e-r-d.com



Embora o contributo de Pharrell Williams e Chad Hugo para a notória revivificação do universo hip hop e a consequente caminhada para o mainstream, a partir da segunda metade da década de noventa, não seja facilmente quantificável, certamente a história virá a fazer justiça ao par de produtores americanos enquanto forças motrizes da primeira linha desse movimento. Ao emprestar originalmente alguma excentricidade estética às austeras premissas estruturais do cânon hip hop, então somando-lhe o colorido exótico de sons espaciais e futuristas e a irreverência de percussões novas, o par Williams/Hugo ergueu, sob a alcunha The Neptunes, um conjunto de novos postulados texturais para o hip hop. A notoriedade do duo nesse orbe foi crescendo paulatinamente, à medida que os Neptunes produziram gente com o peso simbólico de N.O.R.E. (ex-Noreaga), Kelis, Ol'Dirty Bastard, Jay-Z, Snoop Dogg, Mystikal, P. Diddy, Busta Rhymes ou Usher. A latente consagração do "som Neptunes" criou motivos para a curiosidade do mundo melómano face à possibilidade da dupla saltar para a frente da mesa de misturas e, mais do que dar a conhecer uma química de arrumação de sons original, mostrar composições próprias. Com Shay Haley, Williams e Hugo formariam os N.E.R.D., aí encontrando o espaço criativo para, não só aproveitar as inovações técnicas entretanto consagradas, mas levá-las a outros níveis de emancipação e ambição, nomeadamente à conjugação de um código sonoro a apalpar convergências entre o hip hop, o funk, a música soul e o rock.

E depois de um primeiro disco algo discreto (In Search Of..., de 2001) e de um sucessor mais consistente (Fly Or Die, de 2003), e do hiato para aventuras a solo de Pharrel Williams e algumas colaborações e produções pontuais em trabalhos de terceiros, os três voltam a juntar-se para recuperar o fôlego da experiência e retomar o caminho sugerido pelo par de registos anteriores. Uma vez mais, a meta chama-se canção pop e as luzes e cores de inspiração misturam influências de origens várias, como é timbre dos N.E.R.D. e das linguagens que subscrevem. A nota dominante, além do eclectismo de Seeing Sounds, é um irrepreensível equilíbrio entre as anotações verdadeiramente retro que se espalham pelo disco e o complemento vanguardista que brota dos instrumentais. Todavia, ao contrário da inventividade que habitualmente sai das mentes de Williams, Hugo e Haley, as canções ficam longe do triunfalismo da produção de cátedra e resvalam, com excepções pontuais ("Everyone Nose", "Spaz" e "Yeah You" são os pontos altos), para uma mediania que embacia os méritos dos N.E.R.D..

Posto de escuta Everyone NoseISpazIYeah You

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Matmos - Supreme Balloon

7/10
Matador
PopStock
2008
www.myspace.com/
matmos1



Adeptos de travessuras surrealistas da era digital, Martin Schmidt e Drew Daniel fazem do conceito Matmos um dos expoentes mais originais do concentrado universo da electrónica left field corrente, sobretudo no tocante à investigação das virtudes ambientais e melódicas, se quisermos o lado mais ligeiro e "populista", de um género musical cuja complexidade estrutural normalmente afasta as massas. Foi no berço IDM (e no nicho da musique concrète) que Schmidt e Daniel encontraram embalo para um percurso de rara congruência estética, fazendo das raízes minimalistas um substrato sempre presente, e, partindo desse esteio estruturante, evolver para um registo sonoro de impressivos coloridos sintéticos, com traço melódico e fôlego experimentalista. O processo de crescimento produziu dois momentos magnos, um de minimalismo, construído apenas a partir da acústica de uma sala de operações, A Chance to Cut is a Chance to Cure, de 2001, e, outro, um manifesto de música concreta em The Rose Has Teeth in the Mouth of a Beast, o penúltimo e sétimo disco, de 2006.

A proposta orgânica de Supreme Balloon é comprimida em regra única: a orgânica do disco é construída exclusivamente com sintetizadores, sejam eles de qualquer era ou origem. Esse purismo analógico da obra tem uma leitura imediata, ao definir um legítimo (e nostálgico) recuo dos Matmos ao quinhão mais significativo das suas fundações, desligando o duo de San Francisco das recentes derivas pelo "concretismo musical", assim emprestando às especulações e obliquidades harmónicas das composições um pendor mais maquinal e, sobretudo, o exotismo de desvendar curiosos fetiches entre os prazeres antigos das "velhinhas" teclas de um Roland ou de um Korg, tão em voga nos 70's e 80's, e os computadores e tendências modernas. Atrás disso, vêm alguns harpejos encantadores, pontuais delírios 8-bits, insinuações cósmico-espaciais e um ou outro rifão mais "cerebral". Ao escutar Supreme Balloon percebe-se que a mudança formal, não só não contaminou a criatividade da dupla, como lhe acrescenta outros ângulos e dimensões, abrindo espaço para ocasionais instantes de nostalgia dos primeiros passos da electrónica (leia-se Kraftwerk, Jean-Michel Jarre, Vangelis) ou, em referências mais desfocadas, aos cosmos bizarros de Terry Riley e Keith Fullerton Whitman (o artífice da música concreta também aparece nos créditos do disco). Nesse sentido, o novo trabalho dos Matmos tem mais de memória do que de invenção pura e, a despeito da excelência do corte de alguns momentos ("Rainbow Flag" ou "Polychords" dão nota disso) e da limpidez e coerência dos ambientes, paira no ar uma sensação de breve discrepância entre a assinatura esdrúxula da dupla americana e o necessário ascetismo (ou limitação técnica) da electrónica clássica. A passada analógica parece curta para a ousadia da verve de Schmidt e Daniel. Em todo o caso, Supreme Balloon é um documento recomendado a espíritos curiosos e antiquários da electrónica.